Pelé se tornou o rei do futebol por sempre surpreender, uma das características inerentes aos gênios. Mas os gênios também possuem uma particularidade: a ingenuidade diante de certas coisas do mundo.
Pelé, cada vez que se manifesta sobre racismo no futebol, deixa de ser exemplo e reforça – espero que sem saber – o discurso dominante da discriminação. Pelé colabora com a ideia de que o racismo representa um problema social menor, que deve ser tratado na esfera privada. Assim o fez no caso do goleiro Aranha.
Tinga e Arouca também foram vítimas de racismo |
De que maneira tratar um assunto, presente na raiz da formação da sociedade brasileira, como um tema entre quatro paredes? Foi desta forma que, durante décadas, prevaleceu a retórica de que não havia racismo no país. Racismo era um problema norte-americano, pois aqui vivíamos sob a miscigenação democrática. Era o caminho mais eficiente da dominação, que se cristaliza pela invisibilidade. Ninguém fala, muitos negam, todos amenizam, a chaga permanece viva.
As palavras do rei do futebol são contraditórias. Ele defende punições, mas afirma que tocar no assunto é aguçar ainda mais a violência. É o argumento distorcido da invisibilidade. Quando, então, vamos colocar o dedo na ferida? Quando vamos, de fato, aplicar a legislação e punir os responsáveis?
Pelé, enquanto jogador, sofreu inúmeras agressões. E calou-se. É claro que o contexto histórico era outro, da quase ausência de reação, da impunidade absoluta para os selvagens. É famoso o episódio em que o então jogador do Santos, ainda menino e desconhecido, foi barrado em um clube da cidade, onde os negros só entravam pela porta dos fundos.
Em 1963, o Santos enfrentou o Boca Juniors, em Buenos Aires. Pelé foi chamado várias vezes de “negro sujo” e “macaco” pelos torcedores argentinos. Xingamentos já haviam ocorrido na Suécia, durante a Copa de 1958, vencida pelo Brasil.
As agressões ao goleiro Aranha indicam como estamos despreparados para lidar com o racismo. O futebol é termômetro da sociedade brasileira, sob quaisquer ângulos de análise. Existem pilhas de estudos, inclusive na área de História, que apontam o futebol como rio onde deságuam todos os tipos de violência presentes no país.
A discriminação contra o goleiro do Santos, até o momento, parece ser mais uma chance perdida de realmente alterar o estado de coisas. A punição ao Grêmio, pelo histórico da Justiça Desportiva, será amenizada. O rigor é seguido do barulho, que dá lugar aos panos quentes quando o tempo esfria.
Daniel Alves ironiza torcida do Villareal |
Ao mesmo tempo, a superficialidade se manifesta na caça às bruxas. Ou melhor, uma bruxa, vestida de bode expiatório. A torcedora gremista foi caçada no melhor estilo inquisitório medieval. Ela deve ser punida pelo crime que cometeu? Sim.
No entanto, o que vemos é a confusão entre justiça e linchamento. Não é a primeira vez este ano, apenas para ficar no passado recente. Ou nos esquecemos de mortes e pessoas amarradas em postes? O percurso é muito semelhante: o tribunal virtual é rápido em condenar, veloz em se esconder das consequências. A torcedora gremista ainda estava na arquibancada quando abriu a temporada de caça.
A garota foi ameaçada de morte e de estupro. Depois, transformou-se em celebridade-vilã da semana e, por conveniência, ninguém procurou saber quem eram os demais torcedores. Será que o goleiro Aranha possui superaudição capaz de detectar um único xingamento numa arquibancada lotada?
Agora, a casa da moça foi incendiada. Esta novela é repeteco da TV, que só termina com a morte da vilã? Historicamente, todas as sociedades adeptas do olho por olho, dente por dente, terminaram em barbárie. E nenhuma delas colocou em pratos limpos suas sujeiras sociais, como o racismo.
Entre palavras equivocadas do rei e reações animalescas de seus súditos, infelizmente, só sobraram botinadas e gols contra.
Caro Mestre, as linhas que o senhor escreve são muito claras, a temática é algo importante para todos os momentos sobre as relações e humanas.
ResponderExcluir