sexta-feira, 19 de abril de 2019

Adilson não está sozinho



Marcus Vinicius Batista

Adilson Durante Filho é a bola da vez, símbolo e sintoma de como as relações raciais se estabelecem e se desenvolvem onde vivemos. Ao fazer um discurso racista contra os pardos via áudio, o então secretário-adjunto de Turismo de Santos e conselheiro do Santos Futebol Clube se tornou presa moribunda num momento histórico no qual o politicamente correto passa por crise de identidade, legitimado pelas lideranças políticas e econômicas, com a esquizofrenia de muitos setores da sociedade, de forma explícita, na sala de jantar ou no grupinho de rede social.

O caso, embora não tenha esperança de que servirá de aprendizado para ninguém, estimulou o arroto de doses de hipocrisia e merece algumas considerações em diversos níveis, do pontual ao individual, do macro ao microcosmos social.

Eis aqui algumas ideias:

1) Adilson Durante Filho cometeu um erro de racista principiante. Foi arrogante além dos limites que a KKK tupiniquim suportaria. Confiou demais nos parceiros de virulência. Ele não atacou os negros, e sim os pardos. O ataque aos negros também seria recebido com repulsa, mas uma parcela da sociedade fingiria que não é com ela. Fingiria porque se esconde dentro do conceito de pardo, sem vivenciá-lo no cotidiano, se fantasiaria de “cidadão de bem” com aquele papo furado da “minha avó é parda, meu pai também”, para parecer mais simpático publicamente à diversidade racial.

A diferença parece ser sutil, mas funciona como cortina de fumaça que, infelizmente, colabora para a permanência das ideias racistas na dinâmica social e cultural brasileiras. Os hipócritas, assim, conseguem entrar na onda de rejeição e podem, inclusive, se colocar como vítimas em potencial, o que camuflaria o cinismo de quem discrimina ou de quem se cala.

2) O pardo é quase uma entidade espiritual no processo social brasileiro. Embora a palavra tenha peso histórico, o pardo é construção social conveniente, um mecanismo de defesa para suportar o racismo branco, uma manta que cobre e esconde a discriminação que sobrevive pelo silêncio, pela conivência, pela ignorância e pelo debate carente de aprofundamento estrutural, que se limita a arranhar a superfície.

O pardo também apanha na rua, também toma geral da polícia, se encaixa no estereótipo do bandido, é chamado de “mau caráter”, mas o termo permite – pela manipulação individual e coletiva – certa proteção quando associado à posição social. Pardo cultiva, nas relações raciais brasileiras, status superior ao negro, fruto inclusive da aura de miscigenação como elemento democrático, não como um símbolo de violência ontem, hoje e sempre.

3) O pardo, no racismo brasileiro, é conceito incapaz de simbolizar a vida prática. Neste país racista, pardo serve para negar a negritude. Como consequência, auxilia na negação do racismo.

De forma involuntária, acelera as ações da “turma do deixa disso”, quase sempre brancos interessados em evitar exposições. Jogue alguém aos leões, sem mexer no estado de coisas.

Na semana que vem, Adilson será passado. Até o próximo caso.

4) A reação política do prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa, foi previsível, como qualquer político com razoável inteligência faria – olhe para Brasília e entenda que não é regra geral. O prefeito deu ao então secretário-adjunto a honra de pedir o boné, mas não perdeu a oportunidade de falar de si mesmo, na sutileza do narcisismo político e do autoelogio. Nenhuma surpresa, é protocolo político.

Outro ponto: é louvável e direito do prefeito se considerar pardo. Respeita sua história e origens familiares. Só tenho dúvidas se muitos de seus amigos políticos o enxergam assim.

5) Quando Adilson vomitou o palavrório racista, ele o fez porque é muito provável (muito mesmo!) que teve caixa de ressonância. Há audiência cativa para este tipo de violência. Como diz minha esposa, semelhante atrai semelhante. Como praticam os algoritmos, as redes sociais funcionam como bolhas de opinião, onde os pares se encontram e dividem prazer em seus achismos, preconceitos, discriminações, visões doentias de mundo.

6) Como figura política, Adilson colecionou adversários, para não dizer inimigos. O vazamento do áudio não aconteceu por preocupação social, por denúncia contra o racismo ou por um lampejo de cidadania. O vazamento ocorreu para destruir uma reputação, para retirar uma pedra do caminho, dentro de certos interesses políticos. Só nos resta saber – se é que importa – se o rastro dos pedacinhos de pão nos levará à Vila Belmiro ou à Prefeitura de Santos.

7) Adilson Durante Filho vive numa cidade historicamente conservadora, que se manifesta há décadas por atos racistas, entre outros processos de discriminação. Uma cidade onde, nos anos 40, sambistas negros eram presos por vadiagem, onde a polícia oprimia os desfiles carnavalescos.

Santos é uma cidade na qual um prefeito negro eleito, Esmeraldo Tarquínio, foi proibido de ocupar o cargo e perseguido pela ditadura militar por muitos anos. É a mesma cidade onde um jogador novato, chamado Pelé, foi proibido de entrar pela porta da frente de um clube de elite. Depois, campeão do mundo, ele foi recebido como se nada tivesse acontecido. A lista de fatos é, infelizmente, bem maior do que esta reflexão poderia comportar.

8) O conselheiro do Santos Futebol Clube vive num mundo onde negros e pardos são as estrelas do show, mas são tratados como empregados ou até escravos modernos. O futebol funciona como reflexo social, um ambiente onde o racismo se pratica em todos os níveis, dentro e fora do campo.

Os excrementos racistas proferidos pelo conselheiro não mudarão o modo de ver o futebol. No último episódio de racismo envolvendo o clube pelo qual Adilson torce, sobrou para a vítima. O goleiro Aranha testemunhou o clube lavar as mãos, parte da torcida desconfiar dele, a imprensa colocar panos quentes até que a história fosse abafada. Para muitos, ficou parecendo chilique do goleiro.

9) Adilson Durante Filho pediu desculpas publicamente e buscou se retratar. Não fez mais do que a obrigação. Quando membros da elite se veem em saia justa ou provam da violência social e psicológica que costumam perpetuar, sempre penso nos dois motivos que levam alguém a pedir desculpas.

O primeiro é o reconhecimento real do erro, do entendimento de que o outro foi machucado, da humildade de enxergar que um ato de violência foi cometido. A segunda razão é pedir perdão como autopreservação, como sinal de medo pela punição, de perder as posições que ocupa, de se proteger para manter a estrutura confortável em que vive, jamais pelo olhar sobre o outro, por se colocar no lugar dele.

Em qual destes caminhos Adilson Durante Filho preferiu colocar seus pés, sua reputação?

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