Não me surpreendo com a comoção urgente em torno dos ataques racistas contra a jornalista Maria Júlia Coutinho. A Internet, com foco nas redes sociais, funciona também como instrumento para exercícios de intolerância, das mais variadas ordens. Ofensas e desqualificação do outro são regras no território onde os valentões de teclado se escondem.
Se a intolerância é um exercício de estupidez, agredir uma apresentadora de TV da maior emissora da América do Sul ultrapassa os limites da imbecilidade. O racismo ganhou, obviamente, contornos de cruzada moral, virou bandeira de ocasião, provocou reações – muitas delas – politicamente corretas e, como historicamente se esperava, atiçou o espírito de corpo de jornalistas e outros profissionais de mídia.
Em dez anos que leio e estudo discriminação racial, que inclui um trabalho de pós-graduação sobre o tema nas escolas públicas, testemunho sempre a mesma ciranda. Vi professores negros usando vocabulário ameno para sobreviver nas redes de ensino. Vi docentes exigindo Dia Nacional da Consciência Branca. Vi professores qualificados como professores negros, e não somente como professores. Ou você já identificou alguém como professor branco, médico branco, dentista branco, amigo branco?
Vejo ainda uma minoria de docentes negros nas instituições privadas. Vejo alunos negros nas salas de aula de cursos de baixo ou médio prestígio acadêmico (ou que dão menos dinheiro). E esbarro diariamente em funcionários negros, quase todos de baixa hierarquia e quase sempre invisíveis aos olhos de quem deveria agradecê-los.
A repetição pós-caso novo de racismo traz, de imediato, os indignados de plantão, que repetem a ladainha de democracia racial e do país mestiço. Em muitos casos, se recorre a argumentos simplistas e de autopreservação, como apontar parentes, amigos, ex-namorados negros como prova de que o sujeito não é racista. Não ser racista é ser humano, independentemente da cor da pele de quem quer que seja!
O segundo passo do espetáculo é criar e difundir a campanha da semana nas redes sociais. “SomostodosMajú” é a bola da vez, como foi com Neymar – um apresentador de TV ganhou dinheiro à beça vendendo camisetas com um slogan. Causa-me fadiga observar mais uma campanha para envolver pessoas em bolhas de plástico, sem efeito político real, com impacto nas instituições.
A mobilização é retórica, no discurso indignado da vida editada do planeta Zuckerberg. No microcosmos cotidiano de cada indivíduo, a vida segue no mesmo ritmo, preconceituosa, de palavras leves para um crime. O quintal do vizinho é sempre mais machista, homofóbico, racista, entre outros adjetivos plantados no solo alheio.
O mundo está muito além das redes sociais e da forma como a televisão o conta, de olho na matemática da audiência. Não desmereço de maneira algumas as reações (caso um sabe onde dói o calo da hipocrisia), mas o passado recente e remoto nos indica que a campanha dará lugar a outra, e à outra, e mais outra.
Continuaremos racistas enquanto sociedade, sem admitir que o somos. Como disse o sociólogo Octávio Ianni, o brasileiro tem preconceito contra o próprio preconceito. Apontamos o dedo para o lado na prática do moralismo burro, incapazes de nos olharmos no espelho e tratarmos nossas feridas culturais.
Por mais que intelectuais, inclusive com cargos importantes em TV, escrevam obras que negam o racismo no país, a rotina diária das relações sociais e trabalhistas escancaram como somos um país que segrega. A crueldade, aliás, reside exatamente neste ponto: negamos que somos uma nação impregnada de preconceitos, creditamos ao outro a construção de estigmas e, quando a situação aperta, preferimos não tocar no assunto.
A própria história da TV brasileira se construiu pelo olhar branco e de costas para a diversidade dos Brasis. Refiro-me a todos os canais, de todas as épocas. Maria Júlia Coutinho é exceção na TV nacional. Os negros são exceções na mídia brasileira, como são na elite educacional, na política, em diversos esportes, entre as lideranças religiosas (tirando as religiões afro-brasileiras).
A TV brasileira, como qualquer linguagem de mídia, é ressonância da dinâmica social brasileira. O centro nervoso – e o olhar cultural decorrente disso – é o eixo Rio-SP e, a partir daí, se tem a criação de um Brasil via TV, com seus padrões estéticos europeus e a redução da diversidade. Um alienígena, caso ligue um aparelho de TV, jurará que se fala português na Dinamarca.
Maria Júlia Coutinho respondeu com elegância, não vestiu o manto de vítima, e a empresa em que trabalha deu a ela respaldo jurídico. O Poder Judiciário saiu com cinismo da inércia e abriu linha de investigação. Teremos réus quase em tempo real, aposta ganha. Mas me fica a dúvida: e os milhares de casos de racismo que ocorrem todos os dias? Por que muitos delegados registram discriminação racial como agressão para evitar o crime inafiançável ou minimizam (quando não tripudiam) a fala das vítimas?
Recentemente, o goleiro Aranha - quando atuava no Santos – acusou a torcida do Grêmio de racismo. As câmeras de TV eram a prova cabal do crime. Uma jovem foi a única indiciada. Aranha foi o herói da semana. Parte da imprensa, cartolas, jogadores e até muito torcedores do Santos tentaram dias depois transformar o goleiro em vilão, buscando apagar ou distorcer suas palavras e atitudes. Sempre os panos quentes.
O racismo no Brasil vai além das fronteiras da TV e de uma de suas apresentadoras. O racismo é um tumor que persiste no organismo social brasileiro. Nasceu com ele, desenvolveu-se com ele e achou um cantinho para viver por mais de cinco séculos. Temos estrutura jurídica para investigar, julgar e condenar os selvagens, porém praticamos a seleção natural, separando quem tem direito à lei e quem tem direito ao não institucionalizado. Discriminação racial e social caminham de mãos dadas.
Azar daqueles que se expuseram seu racismo em redes sociais e produziram provas contra si mesmos. Se fossem mais espertos, teriam se escondido atrás de instituições de todos os poderes, inclusive da imprensa. Nestes lugares, o racismo não é pauta, é tão invisível quanto suas vítimas. Exceto quando uma pessoa famosa é alvo da idiotice inerente ao intolerante.
Só seremos melhores quando etnia e raça deixarem de aparecer na mesa de debates. Não é ignorar o problema, mas desconhecê-lo por que – num Brasil utópico – ele deixou de existir, tornou-se um conceito incompreensível.
Maria Júlia está certa, repito, mas só alcançaremos o patamar descrito acima quando nos indignarmos com Josés, Joaquins, Aparecidos, Severinos e outros nomes, em quaisquer funções sociais.
Se a intolerância é um exercício de estupidez, agredir uma apresentadora de TV da maior emissora da América do Sul ultrapassa os limites da imbecilidade. O racismo ganhou, obviamente, contornos de cruzada moral, virou bandeira de ocasião, provocou reações – muitas delas – politicamente corretas e, como historicamente se esperava, atiçou o espírito de corpo de jornalistas e outros profissionais de mídia.
Em dez anos que leio e estudo discriminação racial, que inclui um trabalho de pós-graduação sobre o tema nas escolas públicas, testemunho sempre a mesma ciranda. Vi professores negros usando vocabulário ameno para sobreviver nas redes de ensino. Vi docentes exigindo Dia Nacional da Consciência Branca. Vi professores qualificados como professores negros, e não somente como professores. Ou você já identificou alguém como professor branco, médico branco, dentista branco, amigo branco?
Vejo ainda uma minoria de docentes negros nas instituições privadas. Vejo alunos negros nas salas de aula de cursos de baixo ou médio prestígio acadêmico (ou que dão menos dinheiro). E esbarro diariamente em funcionários negros, quase todos de baixa hierarquia e quase sempre invisíveis aos olhos de quem deveria agradecê-los.
A repetição pós-caso novo de racismo traz, de imediato, os indignados de plantão, que repetem a ladainha de democracia racial e do país mestiço. Em muitos casos, se recorre a argumentos simplistas e de autopreservação, como apontar parentes, amigos, ex-namorados negros como prova de que o sujeito não é racista. Não ser racista é ser humano, independentemente da cor da pele de quem quer que seja!
O segundo passo do espetáculo é criar e difundir a campanha da semana nas redes sociais. “SomostodosMajú” é a bola da vez, como foi com Neymar – um apresentador de TV ganhou dinheiro à beça vendendo camisetas com um slogan. Causa-me fadiga observar mais uma campanha para envolver pessoas em bolhas de plástico, sem efeito político real, com impacto nas instituições.
A mobilização é retórica, no discurso indignado da vida editada do planeta Zuckerberg. No microcosmos cotidiano de cada indivíduo, a vida segue no mesmo ritmo, preconceituosa, de palavras leves para um crime. O quintal do vizinho é sempre mais machista, homofóbico, racista, entre outros adjetivos plantados no solo alheio.
O mundo está muito além das redes sociais e da forma como a televisão o conta, de olho na matemática da audiência. Não desmereço de maneira algumas as reações (caso um sabe onde dói o calo da hipocrisia), mas o passado recente e remoto nos indica que a campanha dará lugar a outra, e à outra, e mais outra.
Continuaremos racistas enquanto sociedade, sem admitir que o somos. Como disse o sociólogo Octávio Ianni, o brasileiro tem preconceito contra o próprio preconceito. Apontamos o dedo para o lado na prática do moralismo burro, incapazes de nos olharmos no espelho e tratarmos nossas feridas culturais.
Por mais que intelectuais, inclusive com cargos importantes em TV, escrevam obras que negam o racismo no país, a rotina diária das relações sociais e trabalhistas escancaram como somos um país que segrega. A crueldade, aliás, reside exatamente neste ponto: negamos que somos uma nação impregnada de preconceitos, creditamos ao outro a construção de estigmas e, quando a situação aperta, preferimos não tocar no assunto.
A própria história da TV brasileira se construiu pelo olhar branco e de costas para a diversidade dos Brasis. Refiro-me a todos os canais, de todas as épocas. Maria Júlia Coutinho é exceção na TV nacional. Os negros são exceções na mídia brasileira, como são na elite educacional, na política, em diversos esportes, entre as lideranças religiosas (tirando as religiões afro-brasileiras).
A TV brasileira, como qualquer linguagem de mídia, é ressonância da dinâmica social brasileira. O centro nervoso – e o olhar cultural decorrente disso – é o eixo Rio-SP e, a partir daí, se tem a criação de um Brasil via TV, com seus padrões estéticos europeus e a redução da diversidade. Um alienígena, caso ligue um aparelho de TV, jurará que se fala português na Dinamarca.
Maria Júlia Coutinho respondeu com elegância, não vestiu o manto de vítima, e a empresa em que trabalha deu a ela respaldo jurídico. O Poder Judiciário saiu com cinismo da inércia e abriu linha de investigação. Teremos réus quase em tempo real, aposta ganha. Mas me fica a dúvida: e os milhares de casos de racismo que ocorrem todos os dias? Por que muitos delegados registram discriminação racial como agressão para evitar o crime inafiançável ou minimizam (quando não tripudiam) a fala das vítimas?
Recentemente, o goleiro Aranha - quando atuava no Santos – acusou a torcida do Grêmio de racismo. As câmeras de TV eram a prova cabal do crime. Uma jovem foi a única indiciada. Aranha foi o herói da semana. Parte da imprensa, cartolas, jogadores e até muito torcedores do Santos tentaram dias depois transformar o goleiro em vilão, buscando apagar ou distorcer suas palavras e atitudes. Sempre os panos quentes.
O racismo no Brasil vai além das fronteiras da TV e de uma de suas apresentadoras. O racismo é um tumor que persiste no organismo social brasileiro. Nasceu com ele, desenvolveu-se com ele e achou um cantinho para viver por mais de cinco séculos. Temos estrutura jurídica para investigar, julgar e condenar os selvagens, porém praticamos a seleção natural, separando quem tem direito à lei e quem tem direito ao não institucionalizado. Discriminação racial e social caminham de mãos dadas.
Azar daqueles que se expuseram seu racismo em redes sociais e produziram provas contra si mesmos. Se fossem mais espertos, teriam se escondido atrás de instituições de todos os poderes, inclusive da imprensa. Nestes lugares, o racismo não é pauta, é tão invisível quanto suas vítimas. Exceto quando uma pessoa famosa é alvo da idiotice inerente ao intolerante.
Só seremos melhores quando etnia e raça deixarem de aparecer na mesa de debates. Não é ignorar o problema, mas desconhecê-lo por que – num Brasil utópico – ele deixou de existir, tornou-se um conceito incompreensível.
Maria Júlia está certa, repito, mas só alcançaremos o patamar descrito acima quando nos indignarmos com Josés, Joaquins, Aparecidos, Severinos e outros nomes, em quaisquer funções sociais.
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