sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O purgatório político

Quadro do artista russo Serguei Tyukanov

Paulo e Marcelo – nomes fictícios – trabalham na Prefeitura de Santos há 10 meses. Eles foram contratados em caráter de emergência porque exercem funções técnicas específicas. Nunca assinaram um papel. Recebem cachês mensais, nome dado ao salário. Trabalham em finais de semana e feriados, inclusive. Os cachês os excluem do pagamento de horas extras.

Assim que a eleição passou, eles deixaram de ser remunerados. Convivem também com a ameaça de que não continuarão na Prefeitura com a mudança de governo. Os dois não recebem há 40 dias. Parte das contas está atrasada. No banco, chegaram ao limite do cheque especial.

As desculpas para o atual “trabalho voluntário” variam todas as semanas. O depósito em conta fica sempre para daqui a dez dias. Na semana passada, ambos faltaram ao trabalho porque os cartões de transporte estavam zerados. Um dos chefes chegou a chorar com a situação e deu R$ 50 a um deles para que trabalhasse mais alguns dias. Os dois fizeram empréstimo bancário e procuram trabalhos alternativos para amenizar o choque nas finanças pessoais.

Paulo e Marcelo não são exceções. Há outros funcionários sem receber os cachês. O exemplo deles marca um período leviano e perverso na política: a fase de transição. Os tubarões brigam e especulam sobre os cargos de segundo e terceiro escalões, frutos de acertos durante a campanha. Os peixes pequenos – muitos com salários na faixa de R$ 1 mil – ouvem os boatos enquanto esperam que seus processos sejam resolvidos.

Processos é a palavra preferida dos burocratas, que parecem leitores do romance de Franz Kafka, no qual a versão funcionário público de Josef K. desconhece porque está sob julgamento. A diferença entre ficção e serviço público talvez resida na criatividade em justificar bolsos e carteiras vazios.

Na Baixada Santista, outras cidades encenam o purgatório da transição de governo. O limbo é um lugar de espera, de inércia diante da definição de quem são os pecadores e de quem merece ir para o paraíso. Enquanto se aguarda Godot, serviços são negligenciados ou extintos.

São Vicente, por exemplo, minimizou a participação nos Jogos Abertos do Interior. Vários chefes de departamento foram demitidos. Horas extras não foram pagas, o que provocou uma greve no setor de saúde do município. A justificativa foi um “problema no RH”, variação calunga para o “processo” kafkiano santista.

Reeleição não significa blindagem para desrespeito, seja com servidores, seja com a população. Em Cubatão, a partir do momento em que sentiu a eleição nas mãos, o PT de Márcia Rosa passou a repetir o discurso de cofres ocos. O Festival Danado de Bom, de cultura nordestina, foi cancelado, mesmo com apoio de indústrias. Seis em cada dez moradores da cidade têm ascendência no Nordeste.

Onde foi parar o dinheiro? Planejamento, orçamento, destinação de recursos parecem nomes de capítulos de uma obra de ficção científica, onde o cenário se altera depois da contagem de votos das urnas eletrônicas.

A fase de transição não consegue ser, no mínimo, a etapa do piloto automático, também comum em gestões reeleitas. Na prática, é o período do esconde-esconde, da sujeira embaixo do tapete e da batalha por manutenção de cargos ou pelo novo emprego em janeiro. Enquanto isso, quem trabalha apenas para receber no final do mês está condenado – sem saber por qual crime – a passar o Natal no inferno do purgatório político-eleitoral.

Em tempo: Paulo e Marcelo foram demitidos esta semana, junto com outros funcionários. Quanto ao salário, a promessa era que o depósito aconteceria nesta sexta, dia 30 de novembro. Até o momento, a única certeza é que se trata, realmente, de mais uma promessa.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Consciência leve


Os trabalhadores negros estão ganhando mais. Mas, como diz a velha piada sobre estatística - o copo pode estar meio cheio ou meio vazio -, a notícia não merece grandes comemorações. Um levantamento feito em conjunto pela Fundação Seade e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) indica que a renda dos trabalhadores negros cresceu cinco vezes nos últimos 10 anos, em relação à renda de brancos e amarelos.

No lado vazio do copo, a pesquisa também aponta que trabalhadores negros, na mesma função e com mesma escolaridade, recebem 61% da remuneração dos colegas brancos e amarelos. A situação teve leve retrocesso, mas ainda reproduz o quadro de desigualdade dos levantamentos feitos na última década. Se considerarmos o fator gênero, mulheres negras ficam no final da fila, com piores salários que as mulheres brancas.

Em termos gerais, a pesquisa da Fundação Seade e do Dieese reflete o que ocorre no Brasil. Entender o racismo brasileiro (e suas particularidades) significa ultrapassar as discussões sobre cor da pele. É fundamental incluir o fator socioeconômico para se chegar mais próximo das nuances culturais da discriminação racial à brasileira.

O levantamento nos traz, por exemplo, que o nível de desemprego entre negros caiu nos últimos dez anos. O principal fator é a estabilidade econômica nacional. Em 2002, 23,6% dos trabalhadores negros estavam desempregados. No final de 2011, 12,2%. Entre trabalhadores não negros, também houve queda. Em 2002, 16,4%. No final de 2011, 9,6%.

O caminhão de números acima serve somente como simples tradução para o cenário brasileiro. Qualquer análise que se faça apontará para maior inclusão dos negros em vários setores da sociedade. Por outro lado, este fato não deve atender aos desejos de uma elite intelectual branca, que insiste em dizer que o país não pratica o racismo.

Negros estão mais presentes nas universidades, mas não chegam a 10% do total e seguem concentrados em cursos de menor prestígio acadêmico, inclusive no valor das mensalidades. Nas licenciaturas, que formam professores, é possível verificar salas com até um terço dos universitários de origem negra. Muitos deles representam o primeiro de suas famílias a conseguir um diploma de ensino superior, o que reitera a pesquisa acima.

Quando entramos nas salas dos homens (ironicamente!) de branco, prevalece a sensação de que a Dinamarca é aqui! A lógica se torna inversamente proporcional.

Na TV, para mudarmos o olhar para a cultura pop, aumentou nos últimos dez anos a presença de negros no vídeo. Atrizes e atores protagonizam novelas, estrelam comerciais, apresentam programas. Mas ainda simbolizam exceções numa mídia que prega branco e loiro como características de padrão estético. Basta olharmos para as mesmas atrações.

Quando penso no Dia Nacional da Consciência Negra, minha reação é paradoxal. O lado idealista me diz que uma data como esta não deveria existir. Num cenário utópico, cor da pele, etnia e raça seriam conceitos obsoletos e desconsiderados como elemento de diferenciação. 

A face realista me mostra que o dia 20 de novembro ainda é necessário para entendermos o país em que vivemos. Um país que cultiva o cinismo quando procura negar os processos discriminatórios que se repetem todos os dias. E onde uma parcela da população se apoia no sarcasmo para reduzir o Dia Nacional da Consciência Negra a uma extensão de dias de folga.

sábado, 17 de novembro de 2012

Vergonha danada!



Quando as eleições terminam, a classe política começa a mostrar como realmente pensa. Ou como realmente administra a cidade. Em Cubatão, bastou a reeleição de Marcia Rosa (PT) para que ficasse clara a posição da Prefeitura em relação às políticas culturais. A primeira notícia foi o cancelamento do Festival Danado de Bom, que envolve a cultura nordestina. 

Cubatão é uma cidade construída às custas de muito suor de migrantes nordestinos, desde as obras para a implantação do Parque Industrial, passando pela construção das rodovias Imigrantes e Anchieta. Hoje, a estimativa é que seis em cada dez moradores nasceram ou são descendentes de nordestinos.

O Festival já tinha dinheiro garantido de empresas privadas e do Governo do Estado. O cancelamento veio porque a Prefeitura alegou não ter recursos para a contrapartida. O Festival limitou-se a um concurso gastronômico, com menos repercussão e de custo quase zero.

Cubatão, uma cidade marcada pelo trabalho, sofre com as limitações de entretenimento e lazer. O teatro, condenado ao silêncio e à poeira, virou um elefante branco com quase duas décadas de vida. O cinema chegou ao município há dois meses, depois de anos de ausência de salas de exibição.

Ao virar as costas para a população logo após as eleições, a prefeita Marcia Rosa abre margem para algumas perguntas. O Festival não deveria estar incluído no orçamento municipal, elaborado e entregue à Câmara no final do ano anterior? Se isso não aconteceu, onde se deu o erro de planejamento, já que o evento fazia parte do calendário da cidade?

A Prefeitura alega que houve queda na arrecadação. Não daria para fazer um festival mais tímido, com dinheiro das empresas e do Governo? Ou, sabendo das dificuldades financeiras, a Prefeitura não poderia estender o chapéu para outras indústrias, por meio de leis de incentivo? Quais explicações a administração dará aos patrocinadores que cumpriram seus acordos profissionais de bancar o festival?


Marcia Rosa apenas reiterou um comportamento típico da classe política: encarar a cultura como um badulaque, um enfeite que pode ser retirado da sala de jantar assim que a festa acaba. Neste sentido, cultura não soa como digna de política pública, somente de eventos pontuais próximos a períodos eleitorais. Aliás, até que ponto a campanha eleitoral pode ter interferido nas contas da Prefeitura, em déficit, como explica a própria administradora municipal? 

A etapa de transição é o golpe de estelionato nos eleitores. Neste período de dois meses e meio, as prefeituras costumam entrar em paralisia. Mudanças de segundo e terceiro escalões, cancelamento de eventos, promessas e projetos enterrados nas urnas eletrônicas são práticas comuns.

O Festival Danado de Bom, na frieza dos gabinetes, engrossa a lista de realizações destinadas às gavetas. Com elas, a retórica de que a ressurreição acontecerá em 2013. Por enquanto, a palavra empenhada pela prefeita. É possível acreditar nela?

A cultura nordestina, tão eclética quanto fundamental para a construção da identidade do município, engrossa o coro de vítimas das promessas de campanha. Será um sinal de que o governo cumprirá o destino das gestões reeleitas, a de caminhar no piloto automático?
 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Os limites da guerra

Todas as guerras passam por momentos de cessar-fogo. É a hora em que os peões do tabuleiro revisam suas táticas, redesenham estratégias, mas, acima de tudo, justificam suas ações internamente e se fortalecem para o próximo surto de violência.

Todas as guerras, antes do tiro inicial, que transformará a primeira vítima em mártir, assassinam a verdade. Erguem cenários e personagens fictícios, superdimensionam as motivações para massacrar o outro, mascaram suas cobiças e mesquinharias, glorificam a si mesmos como essenciais no centro do palco. Mentir é um exercício contínuo de propaganda, com a conivência dos omissos, cientes de seus ganhos secundários com o conflito.

São Paulo, hoje, é o campo de batalha que atende a todas as características descritas acima. Os dados divulgados na última quinta-feira, dia 25, pela Secretaria Estadual de Segurança Pública, confirmam que o Estado de São Paulo, incluindo a Baixada Santista, preenche os pré-requisitos para manter a classificação de zona de guerra.

No Estado, o número de homicídios cresceu 27% em setembro. A estatística é comparativa ao mesmo mês, no ano passado. Na Capital, os assassinatos dobraram. 144 pessoas morreram em setembro, contra 71 no mesmo período, em 2011. Na Baixada Santista, foram 17 homicídios dolosos, contra 10 no mesmo mês do ano anterior. Um detalhe: a sopa de números não inclui o último banho de sangue, que aconteceu em outubro.

Sempre desconfiei dos números do Estado. Tenho a sensação de que os índices tendem a ser maiores. No passado, reportagens mostravam que as estatísticas falhavam, voluntariamente ou não, para baixo.

Independentemente dos números, a última crise entre PM e PCC indica que ainda estamos lambendo as feridas do último surto de violência. De 2006 para cá, houve pelo menos mais três ondas de confrontos, com mortos de ambos os lados, fora os inocentes que estavam no lugar errado na hora errada. Seriam eles danos colaterais, destinados a desaparecer do noticiário em uma semana, ou a virar mais um número na pilha de casos não investigados?

Nesta guerra, o discurso das autoridades de gravata é paradoxal. Ao mesmo tempo em que o governador fala em combate ao crime organizado e à economia do tráfico de drogas, tenta minimizar o PCC como pedra no sapato da estrutura da segurança pública. Por esta lógica, ou o PCC ganhou outro nome – bastante comum na sociedade movida pelas aparências – ou se desmembrou em pequenas franquias, numa eficiente ação de marketing.

O comandante da PM, Roberval França, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, negou descontrole da criminalidade. Para ele, “houve mais casos de morte por motivos passionais, ataques entre criminosos e por cobrança de dívida de drogas”. Os tipos descritos não seriam assassinatos? Assassinato não é crime, até para os cínicos?

O momento é de cessar-fogo. É a hora em que os senhores da guerra reaparecem para explorar a máquina de propaganda, que desumaniza e atira a todos no liquidificador de porcentagens. Todos perdem seus nomes, desde o traficante famoso pela liderança no Estado paralelo ao rapaz que morreu sem saber o que havia feito de errado.Na política de matar (ou executar) para combater o crime, sobra também para os policiais, mortos na folga, nos bicos ou em serviço oficial. Os senhores da guerra vão honrar seus soldados, por vezes em trincheiras, ou vão permanecer no palavrório da matemática, hoje entre a soma e a multiplicação dos corpos?