sábado, 4 de fevereiro de 2017

Uma guerra de trincheiras



Este texto é o discurso de Colação de grau para os formandos em Jornalismo, da Universidade Católica de Santos. Quarta-feira, 1º de fevereiro de 2017.

Marcus Vinicius Batista

Como é de praxe nos discursos de colação de grau, vou citar alguém para cumprir o protocolo. Como diria Claudio Abramo, o Jornalismo é o exercício cotidiano do caráter.

Como aprendi a respeitar os mais experientes e absorver os ensinamentos dos craques, levo esta frase debaixo do braço há quase 25 anos. E, por isso, não posso - como ex-professor e colega, mentir para vocês.

Vocês entraram numa guerra de trincheiras. Para explicar, uma guerra de trincheiras é marcada pelo alto índice de mortalidade. No nosso caso, de mortalidade profissional.

Uma guerra de trincheiras é longa, exaustiva, repleta de doenças, com comida e remédios escassos, além de inimigos não previstos no roteiro, como ratos, o frio, a chuva, o desespero dos colegas.

Por outro lado, a guerra de trincheiras te ensina o valor da solidariedade, da cumplicidade do soldado que cobre sua retaguarda, da convivência de quem divide as histórias mais íntimas que sustentarão uma trajetória de lealdade, companheirismo e amor, caso consiga chegar vivo em casa.

A guerra de trincheiras te ensina a dar valor ao mínimo; um cigarro que alguém te oferece numa madrugada de frio, uma caneca de sopa após horas de tiros e resistência ao inimigo, um ombro molhado, duro e cansado, que te acolhe quando teus colegas caem ao solo e tudo acima parece desabar.

A guerra de trincheiras te dá o inimigo, mas te surpreende com a amizade eterna. Esta guerra te apresenta a morte, mas te aponta a próxima curva da vida.

O Jornalismo atual está dentro de uma trincheira. E vocês se tornaram voluntários dela. Os mais apressados batem no peito que o Jornalismo morreu. São apressados e desinformados.

O Jornalismo foi baleado. Não posso enganar vocês com palavras empolgantes, primas da falsa inspiração. Minha obrigação é dizer a vocês que o Jornalismo sangra. Sangra na trincheira, em vias de encarar o frio da madrugada e os ratos - em forma de gente - que se alimentam de nossa profissão. Que encenam fazer parte dela, enquanto agem em benefício próprio.

Como disse antes, a trincheira é também terreno da amizade, da lealdade, da cumplicidade, do amor entre as pessoas. O Jornalismo só sobreviverá a esta noite de frio se os jornalistas - também entrincheirados - resolverem socorrê-lo.

Os medicamentos estão à disposição. Uma pílula de consciência social. Uma injeção de politização. 100 gotas de cidadania. O tratamento de olhar para o outro, respeitá-lo, compreendê-lo e enxergá-lo como alguém que também atravessa o campo minado.

O Jornalismo só estancará o próprio sangue se as feridas forem costuradas. A costura é fazer Jornalismo para quem sofre com o poder, para quem é atropelado por este tanque. O Jornalismo não é para quem comanda os exércitos, é para quem se tornou vítima da frente de batalha.

Vi, ontem, 15 colegas da rádio CBN-Santos caírem de pé depois do bombardeio que fechou a emissora e selou seus empregos. Todos me olharam de cabeça erguida. Preocupados, mas dispostos e ver o sol amanhã, após mais um tiroteio na trincheira

A vocês, meus colegas jornalistas, peço que lutem. Mais do que lutar por si mesmo, falo de combater quem tentar assassinar nossa profissão. Suas armas são informação, conhecimento, preparo diário, com a disciplina de um soldado. Lutem, escrevam, argumentem e informem.

E pratiquem o exercício cotidiano do caráter. Muito obrigado!

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O último jornal da CBN-Santos


Marcus Vinicius Batista

Uma redação de jornal é um termômetro do humano. É o endereço perfeito para se aprender um pouco sobre comportamento, dos jornalistas aos entrevistados, dos proprietários ao público. 

Numa redação, cultivam-se os sete pecados capitais, mas colhem-se as virtudes que servem de alimento nas crises, dentro e fora dali.  Qualquer redação carrega nas costas o próprio paradoxo, da convivência entre a História instantânea e a construção contínua de fatos quase sempre inacabados, sedentos por explicação e contexto.

Hoje, foi a edição 1210 do jornal da CBN-Santos. A última edição depois de quatro anos. Em pouco mais de duas horas, jornalistas e técnicos da emissora transitaram por um caldeirão de sentimentos e emoções, que talvez resuma o que é o Jornalismo contemporâneo e o que significa a ausência dele.

Logo no começo do jornal, todos estavam concentrados em executar o roteiro como se fosse um dia normal. Uma batalha perdida, pois o jornal de terça-feira, 31 de janeiro de 2017, era único. Cedo ou tarde, todos se renderiam às evidências da quebra da rotina. Hoje, última vez. Amanhã, o vácuo da mudez.

O repórter Vitor Anjos tentava atender aos chamados de whatsapp, quase 100% cumprimentos e lamentações dos ouvintes. Ele parou o que fazia, se virou e disse: “estou me sentindo mal. Dia esquisito. Parece um velório.”

A melancolia se misturava com a resignação. Vitor e Alex Frutuoso, um profissional experiente e símbolo de serenidade, conversaram sobre as rescisões contratuais. A preocupação de quem têm filhos – Alex se mudou para Santos recentemente – diante de um cenário onde 15 profissionais foram demitidos. Ambos são o retrato do jornalista brasileiro, que precisa de mais de um emprego para conseguir equilibrar as contas e sustentar uma família.

O apresentador e editor Oswaldo Júnior parecia ter formigas subindo pelas pernas. Indignado no ar, marca pessoal do âncora, ele tentava manter o sorriso e a descontração fora dele. Oswaldo estava mais inquieto do que o tradicional. Entrava e saia do estúdio a cada intervalo. Não dava as broncas habituais. Dava a impressão de contar até dez a cada matéria no ar, momento em que olhava para o estúdio à procura pelo diagnóstico do ambiente além dos vidros.


Oswaldo Júnior, comandante da CBN-Santos

O cozimento virou fervura quando Oswaldo viu os técnicos da Saudade FM, rádio que assumirá a frequência da CBN-Santos a partir de meia noite, trabalhando nos cabos, dentro e fora da redação.

Um deles sorriu para o estúdio. Entre a ironia e a simpatia, Oswaldo absorveu a primeira hipótese, o que não surpreende nem representa demérito frente aos bastidores da troca de microfones.

O sorriso bastou para que Oswaldo se mexesse e relatasse o desrespeito com que os profissionais da CBN estavam sendo tratados. Era um serviço que poderia esperar, que poderia ser feito após o programa, quando o movimento da redação fosse menor. Oswaldo entendeu como provocação e, após uma queixa aos tubarões do aquário, os técnicos deixaram a emissora. O serviço e o constrangimento ficariam para mais tarde.

A redação ficou mais apertada com a chegada de três repórteres que passaram pela emissora. Mayara Rached, Guilherme Pradella e Carol Bertholini são filhos da escola Oswaldo/CBN e adicionaram pitadas de nostalgia e saudade no caldeirão chamado jornal n.1210.

Mayara, de maneira involuntária, injetou bom humor numa atmosfera de incerteza. Fazer o café da redação foi o detalhe que se torna essencial para virar o leme diante do vento instável. Alivia as dores e conduz os rostos para outro horizonte, pelo menos por cinco minutos. Os direitos trabalhistas foram para trás da cortina e as perguntas sobre o cotidiano de cada um receberam a luz para empurrar o espetáculo adiante.

Fora do estúdio, os repórteres ressuscitavam lembranças do comportamento do Oswaldo, o chefe-professor que os colocou no fogo, ou seja, os “intimou” a apresentar o jornal nos sábados de Cultura, entrevistas longas e música ao vivo.

Lá fora, o temor pela instabilidade do mercado, as possibilidades de retorno da rádio e a recontratação dos colegas eram assuntos insistentes, que teimavam em aproximar as conversas informais de uma reunião de pauta tradicional. Não há repórter que resista a um cardápio de notícias que os engoliu.

No ar, os três entraram numa zona de cessar-fogo, onde falaram sobre suas experiências como repórteres, as coberturas importantes, como a morte do então candidato à presidente Eduardo Campos. Notícias ruins, momento de alta performance de cada um dos jornalistas.

Na redação, Alex Frutuoso tentava domar a concentração que sempre lhe foi cúmplice. Entrevistas precisavam ser feitas, textos a serem escritos, pensar no programa de esportes a seguir. “Um segundo só, por favor”, era o que pedia para aqueles que entravam e saiam da sala.

Era quase o sussurro de quem tentava cumprir a última missão sem levantar a bandeira branca ou hastear a bandeira da CBN a meio pau. “Oswaldo, espere um pouco, estou escolhendo uma foto”, era o recado sem alterar a voz, pois o site ainda carecia de alimento.

Do outro lado da redação, Vitor Anjos repassava as mensagens dos ouvintes, lia e-mails e mexia no Facebook. Uma dúvida: apagar as páginas ou deixá-las inativas? Vitor conversava com Roberta, responsável pela área, e com um dos técnicos. Os pormenores avisavam que o jornal, embora seguisse para o final da última edição, ainda deixaria arestas a aparar. Quatro anos não falecem em duas horas, lição que nenhuma faculdade pode dar.

Todos os jornalistas, sempre que voltavam a conversar sobre o final da programação, citavam a colega Roberta Caprile, recém-formada e contratada há um mês. Ela cobria a presença do governador Geraldo Alckmin, que visitava Santos para inaugurar mais um trecho do VLT. Roberta entrara ao vivo pouco antes e retornaria à redação ao final do jornal.

“E aí, professor?, me perguntou assim que chegou. “Tudo bem?” “Tudo, na medida do possível.” Só pude dizer que tudo daria certo. Que tinha competência para continuar a trabalhar no Jornalismo. Qualquer outra frase soaria artificial e mentirosa.

Naquele momento, Oswaldo anunciava – no ar – que em duas semanas teria novidades. Ele garantia que todos os profissionais seriam recontratados. Era a busca por uma nova frequência.

Minha relação com a CBN-Santos é afetiva. Estive lá como entrevistado, entrevistador, comentarista, assessor de imprensa, funções variadas que me permitiram testemunhar como a rádio que toca notícia costuma digeri-las.

Entre erros e acertos, jamais o ouvinte passou mal ou se sentiu enfastiado. O ambiente – como minha esposa Beth lembrou – reacende em mim o bichinho que sobrevive no sangue. Sai da redação, mas ela não saiu do meu organismo. Bom, me levou de volta às coberturas de Carnaval.

Hoje, de surpresa, Oswaldo Júnior me convidou para uma entrevista no estúdio. Os últimos 20 minutos do jornal. Antes de entrar, pensei que deveria ser simpático, animado, empolgado até. Uma forma de celebrar o Jornalismo praticado pela rádio, enquanto deixava a condição de observador.

Falhei. Quando me vi, respondia às perguntas em um tom que beirava o melancólico, de quem tinha dificuldades em se despedir. Refletia sobre o vazio que o Jornalismo deles deixará na imprensa da região. Lembrava-me das conversas preocupadas sobre desemprego, recolocação no mercado de trabalho e na perspectiva de retomada em outra frequência. Dificuldade para me concentrar, luta para não ser dispersivo. Oswaldo que me perdoe. Falhei com quase 25 anos de experiência. Humano.

Até logo, meus colegas da redação CBN-Santos, a história de vocês não teve um ponto final. Foi somente a respiração de uma vírgula.