terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Uma carta infantil

Eles estão de mal?

Marcus Vinicius Batista

A carta escrita pelo vice-presidente Michel Temer, mais do que servir como gatilho para ser mais do mesmo na crise que congela o país, representa o retrato de como se pratica política por aqui. É um espelho sobre como ainda somos juvenis - por que não infantis, eventualmente? - quando temos que lidar com os processos democráticos.

A carta - qualquer alienígena sabe - foi a tentativa de Temer de se divorciar de um casamento que lhe deu muitos benefícios em cinco anos. Ao contrário do texto, o vice-presidente sempre usufruiu do poder e participou com garras e fome da festa da distribuição de cargos que alcançou a insanidade de 39 ministérios.

A carta não é um desabafo, é uma jogada de quem sempre teve ambição desmedida e sede de poder. Temer tem ciência, acima de tudo, de que jamais será presidente do Brasil pelas vias tradicionais. Nunca foi puxador de votos, sempre entrou pelas portas da legenda, o PMDB.

Desvencilhar-se de Dilma Rousseff é a chance de procurar o bilhete premiado. Tanto que Temer procura passar a imagem de conciliador, de unificador de todas as correntes. Outra ilusão, diante de um partido multifacetado, que se sustenta por alianças internas e externas de ocasião, pouco importa o preço das almas a serem vendidas ou compradas.

O texto de Michel Temer o trai, e não precisamos das entrelinhas para perceber suas razões. O vice-presidente fala de fisiologismo com a naturalidade e coerência de um congressista brasileiro. Presentear e dividir cargos não é uma atitude ética, caro vice-presidente. É o retrato escarrado da podridão que norteia a política nacional, vide a confusão em torno do reizinho Eduardo Cunha que, em outras bandas mais sérias, já estaria algemado e atrás das grades. No mínimo, com a carta de renúncia nas mãos.

O histórico de Michel Temer o denuncia. Quem acompanha o Porto de Santos sabe o quanto sua influência foi forte pelos armazéns e, principalmente, pelos gabinetes da Codesp. Duas décadas como eminência parda. O controle de cargos e salários é visto, dentro da política, como uma qualidade, marcante em sujeitos classificados como articuladores, conciliadores, mestres das sombras, parte da responsabilidade de um vice-presidente, que nada tem de decorativo.

A carta de Temer também significa os reais desejos de um político, palavra sinônima de vaidade. Até os homens que se escondem são vaidosos e se traem, eventualmente. Como conhece a fundo o PMDB - e se cobriu com esta colcha de tantos retalhos -, Temer personificou sua função no Governo Dilma. É um traço juvenil de uma cultura tropical.

O sistema político brasileiro é personalista. Os partidos (34, no momento, mas pode mudar ao final deste texto) são, em sua maioria, prateleiras de um supermercado de influências e interesses. O eleitor, que não é bobo nem vítima, percebe onde o voto aperta e escolhe as personalidades. Temer é o reflexo deste comportamento, em que tudo se resolve na caneta de quem manda, e pouco no grupo que o cerca.

O vice-presidente se sentiu excluído do Governo Dilma. Mas a história não pode ser redesenhada de acordo com o pincel do pintor. O PMDB esteve abraçado com o PT enquanto o dinheiro corria pelas veias das instituições, assim como foi parceiro de primeira hora do PSDB durante a gestão Fernando Henrique e o abandonou com a derrota no horizonte. O que esperar de um partido com centenas de prefeituras e milhares de parlamentares em todas as instâncias, mas incapaz de apresentar um candidato à Presidência nos últimos 25 anos?

A carta de Michel Temer foi comparada, pelos apressados, ingênuos ou mal intencionados, com a carta de suicídio do ex-presidente Getúlio Vargas. Foi, de fato, a morte do mínimo de seriedade que restava neste cenário de crise. Mais coerentes foram as piadas em torno do texto na Internet.

A carta do vice-presidente entrará para a História, mas para mostrar outra vida, uma biografia de rodapé, um pingo que integrará um dos períodos mais sujos e tristes de um país que ainda não sabe como fazer política em tempos de democracia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O curso e os pecados

Quer aprender a ocupar escolas? Curso no Palácio dos Bandeirantes
Foto: Jornalirismo

Marcus Vinicius Batista

Abri o jornal na tarde de hoje e vi o seguinte anúncio: "Matrículas abertas! Aproveite suas férias e participe do curso de extensão mais procurado do verão. Vagas limitadas!"

Não havia ninguém ao meu lado para dividir a fantasia. Apanhei uma tesoura e resolvi guardar o recorte. Vai que um inimigo precise. Era de graça. O número de telefone, no canto direito inferior, me fez ligar para matar a curiosidade.

Liguei e, no terceiro toque, uma moça atendeu: "Palácio dos Bandeirantes."

"Oi, desculpe-me, foi engano. Queria saber sobre um curso."

"Ah, é aqui mesmo. O Curso de Reorganização de Escolas."

"Isso. Fiquei curioso."

"Claro, você quer se inscrever?"

"Não, não. Apenas vi um anúncio no jornal."

"Olha, se inscreva rápido. Tem muita procura e as aulas são com o próprio governador."

"Sério?"

"Sério. Inclusive porque falta professor por aqui. Vou te mandar um programa das aulas."

Cinco minutos depois, recebi um e-mail. Ao abrir a mensagem, o cronograma. Curso apostilado, com aulas em vídeo e toda a parafernália da educação fast-food.

O curso tem sete lições. Uma semana de aulas. A primeira se chama Soberba. Nesta aula, o Governo vai te ensinar como reduzir a importância dos estudantes, com argumentos que sustentam que jovens não são capazes de saber nada. Até porque não tiveram tantas aulas assim, explica o folheto.

Na lição seguinte, de nome Avareza, o curso pretende mostrar que a ordem é sempre não investir sem falar de dinheiro. Fecham-se escolas, alega-se falta de recursos - jamais mencione números financeiros, apenas estatísticas manipuláveis a seu favor - e usam-se palavras como otimização, sinônima de reorganização, no sentido pejorativo da bagunça.

Na terceira aula, fale de Gula. Sede e fome de poder. Tome decisões sem consultar ninguém. Imponha as regras de cima para baixo, sempre contando com a falta de crítica política das pessoas. Gula, deste modo, é irmã da soberba. No folheto, uma observação: as aulas são interligadas. Chame de interdisciplinaridade.

Para equilibrar o ritmo, acelerado na aula anterior, o curso traz a Preguiça. Não há necessidade de esforço no debate público. Fale em uso político pelo movimento estudantil. Tudo que acontecer é política. Na cortina de fumaça, diminuímos a política estudantil, transformando o mérito em deficiência.

O próximo encontro aborda a Ira. Morda e assopre, na prática. Finja conversar, convoque as autoridades fardadas. Fale em Guerra. Troque o giz e lousa por cassetetes e sprays de pimenta. Estudantes são baderneiros que deveriam fingir que aprendem nas escolas sem infra-estrutura e com professores desmotivados.

O auge do curso parece ser a Luxúria. Neste ponto, aprendemos como sacrificar todos pelo prazer do poder. O Reorganizador de Escolas precisa responsabilizar professores, culpar os gestores locais, criminalizar estudantes e, como gozo final, decapitar o secretário de Educação em praça pública, enquanto fala muito sem dizer algo diante de câmeras e microfones.

A última aula se chama Vaidade. Diante da pior popularidade, o Reorganizador precisa manter a pose. Dizer que está aberto ao diálogo, mesmo que o tenha sempre negado. Adiar as medidas autoritárias, descansar o sono de beleza e sonhar com a retomada do processo quando a caldeira esfriar.

Terminei a leitura, pensei por um segundo, fechei a mensagem e voltei a cogitar sobre como as férias são valiosas demais para desperdiçar com cursos preparados às pressas.