quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A festa do menino morto


Matheus, numa imagem no Facebook

 O assassinato do universitário Matheus Demétrio Soares, de 19 anos, em frente à Universidade Santa Cecília gerou choque, indignação e discursos mais agressivos sobre a falta de segurança pública. Essa é a face óbvia e necessária de uma morte que não pode ser tratada como número de balancete burocrático.

No entanto, uma das consequências deste crime é tão perversa quanto assustadora. Quando cheguei em casa, após deixar a mesma universidade, entrei na Internet e me vi sufocado pela quantidade de notícias, relatos e comentários sobre o assassinato. O fenômeno-pólvora é rigorosamente normal dentro da própria lógica das redes sociais.

O problema é que, com ele, brota o lado doentio deste teatro virtual. Neste jogo de cena, prevalecem as aparências e a busca por reconhecimento e pertencimento imediato. É um protagonismo capenga que desrespeita a própria vítima e seus familiares numa exposição do grotesco como se o próprio crime em si não fosse um murro na cara.

Logo após a morte de Matheus, era possível ver, em rede social, fotos do corpo, de uma proximidade que permitia ver detalhes impublicáveis. Vídeos circulavam de clique em clique, apontando a mesma morbidez de quem compartilha uma informação; ou melhor, uma imagem que nada acrescenta ao contexto, que cultiva e desvaloriza simultaneamente a morte.

Dizer que somos escravos da imagem hoje é redundante, porém teimamos em nos esquecermos disso. Sentimo-nos protegidos por um frágil filtro chamado computador/celular, de modo que acreditamos ter um salvo-conduto para atropelar valores, para não preservar uma pessoa que acaba de ser assassinada e merece, antes de qualquer coisa, respeito.

Somos um exército de famintos por fama, selvagens em publicar por publicar, em testemunhar sem pedir maiores explicações. Neste sentido, caminhamos pelas opiniões imediatas, superficiais, que retratam o quanto construímos raízes e somos reféns voluntários atrás dos teclados ou nos sofás da sala.

As fotos do corpo do estudante descoberto me causam a sensação de quem as tirou, naquele momento, não enxergava um ser humano, mas somente um corpo sem vida, que inevitavelmente alimentaria o show de horrores, autorregulado pelo crime da semana, pela imagem que nos leva a comer mais um pedaço de pizza. É a pressa que desumanizou Matheus Demétrio, a imagem pela imagem que não apenas expôs uma vítima, mas tentou apagar seu nome.

Fotos e vídeos, inclusive divulgados na imprensa, são uma tentação fugaz de que todas as pessoas desejam digerir o horror em estado puro. Que estão sedentas por detalhes sórdidos de uma violência que choca como fato, e não como simulação dele.

Soa como uma distorção comportamental acreditar que as imagens possuem o mesmo peso e, portanto, merecem as mesmas medidas. A obsessão por registrar todos os instantes de uma vida anônima não se encaixa quando a dignidade humana, seja do próprio retratista ou da biografia alheia, é estilhaçada para que alguém diga que estava lá. E daí que estava lá? Isso não a torna mais privilegiada como co-participante de um falso reality show.

A velocidade com que muitos exprimem suas opiniões também mascara a irresponsabilidade de quem julga sem passear pelo cenário completo. Por que devemos julgar, condenar e definir a pena a partir de um episódio que pouco ou nada sabemos? Já não servem como elementos o crime em si, mais a dor e o sofrimento das pessoas próximas ao estudante?

Matheus, quando perdeu seu nome, também perdeu – para muitos – a condição de vítima. Se ele estava ali, era porque fazia algo errado. Se ele estava ali, era porque bebia e consumia drogas. Se ele estava ali, era porque decepcionava seus pais e demais familiares que tanto fizeram para que chegasse à universidade.

A morbidez destes argumentos é semelhante à retórica daqueles que defendem que uma mulher merecia ser estuprada porque usava uma roupa dita provocante. Matheus Demétrio é e sempre será mais uma vítima da violência urbana. Não o conheci, mas posso dizer – com o mínimo de decência – de que ele não merecia morrer. A hipocrisia não pode funcionar como pena de morte ou pano de fundo para nos escondermos no individualismo ou na limitada consciência social.

O assassinato do estudante universitário Matheus Demétrio Soares me faz lembrar de um caso no Rio de Janeiro, no final da década passada. Na ocasião, um carro foi incinerado com dois corpos dentro e abandonado na Linha Vermelha. Só que as duas cabeças estavam no capô do veículo. Muitos motoristas não apenas pararam para ver o carro, como desceram e tiraram fotos das cabeças. Uma perversidade pré-selfie.

Numa cultura em que evitamos falar de fato sobre a morte, preferimos brincar com ela como se fosse um filme de ficção. A morte deveria sempre nos chocar, e não somente os vivos que se divertem com ela. 

21 comentários:

  1. Muito bom o seu texto, bem ponderado. Infelizmente também fiquei assustada com as fotos ontem a noite, um desrespeito a dignidade humana.

    ResponderExcluir
  2. Maria do Carmo Schmitz4 de fevereiro de 2015 às 18:16

    Excelente!Retrata a frieza dos dias atuais!Banalizou-se a morte!Muito triste!

    ResponderExcluir
  3. Marcus, belas palavras. Estas, são retratos de uma humanidade hoje em falta na sociedade em que vivemos.

    ResponderExcluir
  4. A vida já não vale nada, e a morte tampouco...

    ResponderExcluir
  5. parabens pelo texto. Eu fico feliz de encontrar pessoas que pensam como vc - de forma aprofundada e consciente- na nossa contemporaneidade caotica.

    ResponderExcluir
  6. frieza dos dias atuais... matheus estudou comigo e é triste ter q ver certos comentários,como se já não bastasse a tristeza da perda... Obrigada por falar exatamente o que penso,mas que não tenho estrutura pra falar...

    ResponderExcluir
  7. Meu parente morto pelos proprios policias tiraram foto e teve acapacidade der por em rede socias e temos q se comover com essas tristezas pq em um pais q o politico q representa o povo rouba e os policias tem liçensa para matar nao podem espera muita coisa dos brasileiros a certeza de todos é que vamos para o mesmo lugar .. :/ :/

    ResponderExcluir
  8. Muito bom o seu texto eu me recuso sempre a ver esses tipos de fotos seja de humanos seja de cachorros maltratados. Me choca ver o ser humano não se importando com o que ocorre com o outro. Cada um olhando para o seu próprio umbigo.Continuaram bebendo, cantando, tirando fotos etc. Falam dos políticos mais se queremos mudar o mundo temos que começarmos por nós.

    ResponderExcluir
  9. Acredito que a curiosidade humana é universal e expressa em diversas intensidades. Tudo é uma forma de aprendizado. É chocante sim, mas muitas vezes necessário. Tudo está na maneira em que você quer absorver a informação. Essa é minha opinião e respeito os demais. Meus pêsames aos amigos e familiares.

    ResponderExcluir
  10. Concordo plenamente e Assino embaixo.

    ResponderExcluir
  11. Se não bastasse esse comentário , são inúmeras formas de desequilíbrio emocional por parte dos adolescentes que se sentem vitimados sem quaisquer razão; no entanto. essa tragédia tornou-se fato. Então temos que nos conscientizar em aceitar essa dor , e deixando que a caminhada espiritual seja de luz buscando a DEUS.
    que meus sentimentos que sejam expressos em forma de conciliar a justiça divina !

    ResponderExcluir
  12. Não tenho o que comentar, apenas:
    Parabéns belas palavra.

    ResponderExcluir
  13. "Deixa, deixa, deixa
    Eu dizer o que penso desta vida
    Preciso demais desabafar..."

    D2:
    Segura!
    "Deixa, deixa, deixa
    Eu dizer o que penso desta vida
    Preciso demais desabafar..."

    Eu já falei que tenho algo a dizer, e disse
    Que falador passa mal e você me disse
    Que cada um vai colher o que plantou
    Porque raiz sem alma, como o Flip falou, é triste

    A minha busca é na batida perfeita
    Sei que nem tudo tá certo, mas com calma se ajeita
    Por um mundo melhor eu mantenho minha fé
    Menos desigualdade, menos tiro no pé

    Andam dizendo que o bem vence o mal
    Por aqui vou torcendo pra chegar no final
    É, quanto mais fé, mais religião
    A mão que mata, reza, reza ou mata em vão
    Me contam coisas como se fossem corpos
    Ou realmente são corpos, todas aquelas coisas
    Deixa pra lá, eu devo tá viajando
    Enquanto eu falo besteira, nego vai se matando
    Então

    Deixa,deixa,deixa
    Eu dizer o que penso dessa vida
    Preciso demais desabafar

    Deixa,deixa,deixa
    Eu dizer o que penso dessa vida
    Preciso demais desabafar

    Ok, então vamo lá, diz
    Tu quer a paz, eu quero também
    Mas o Estado não tem direito de matar ninguém
    Aqui não tem pena de morte, mas segue o pensamento
    O desejo de matar de um Capitão Nascimento
    Que, sem treinamento, se mostra incompetente
    O cidadão por outro lado se diz impotente, mas
    A impotência não é uma escolha também
    De assumir a própria responsabilidade
    Hein?

    Que cê tem e mente, se é que tem algo em mente
    Porque a bala vai acabar ricocheteando na gente
    Grandes planos, paparazzo demais
    O que vale é o que você tem e não o que você faz
    Celebridade é artista, artista que não faz arte
    Lava a mão como Pilatos achando que já fez sua parte
    Deixa pra lá, eu continuo viajando
    Enquanto eu falo besteira nego vai, vai
    Então deixa

    Deixa,deixa,deixa
    Eu dizer o que penso dessa vida
    Preciso demais desabafar

    Deixa,deixa,deixa
    Eu dizer o que penso dessa vida
    Preciso demais desabafar

    ResponderExcluir
  14. "Se ele estava ali, era porque bebia e consumia drogas. Se ele estava ali, era porque decepcionava seus pais e demais familiares que tanto fizeram para que chegasse à universidade."

    Quanta merda.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Anonimo, leia o texto novamente e entenda o que foi escrito, não se entende uma história lendo pela metade. Obrigada

      Excluir
  15. Réplica ao último comentário. Caro amigo, agradeço pela leitura e pela disposição em publicar um comentário neste espaço. Você leu o texto todo? Percebeu o contexto das frases e a ironia delas? Grande abraço!

    ResponderExcluir
  16. Querido Marcus Vinicius Batista, parabéns pela delicadeza e sinceridade de sentimentos exposta em suas palavras.
    Infelizmente as ferramentas ditas sociais, só nos mostram dia após dia como ainda existem bárbaros, apenas mudaram as armas... agora se armam de palavras e ausência total de respeito e sentimento pelo outro.

    ResponderExcluir
  17. Parabéns Marcus pela iniciativa,eu conhecia o Demétrio,garoto maravilhoso,com um sorriso encantador e uma familia maravilhosa...Estudioso e tranquilo...Peço para que Deus proteja e conforte a vida da familia..saudades já estamos sentindo.

    ResponderExcluir
  18. Belas palavras ,belas palavras

    ResponderExcluir
  19. Ótimo texto sobre um triste assunto. Fiquei indignado com a atitude de algumas páginas relacionadas à cidade e com a própria A Tribuna em divulgar de forma tão normal a imagem do corpo de Matheus. A sordidez do aproveitamento midiático de alguns me assustou. Fui banido de uma página chamada Sobreviver em Santos por pedir a retirada da foto em questão. Recebi como resposta: "os outros também postam" antes de ser silenciado para não estragar o protagonismo imbecil de alguns que tentam se aproveitar da tragédia alheia. Estou cada vez mais desanimado com o futuro da nossa sociedade.

    ResponderExcluir
  20. A busca por capturas num estado de paparazzi é algo deprimente, pois muitos se acham fotógrafos sem saber do rigor e ética quanto a publicação seja onde for.
    Lamentavelmente o egoísmo e a falta de consideração com a família e agregados pouco importa. De forma sinistra e no engano de favorável se faz presente na Fotografia que antes de mais nada se reserva nesse caso aos PERITOS e mais ninguém. Misericórdia !!!

    ResponderExcluir