A ghost bike foi retirada na quinta, 6 de setembro |
Santos ganhou um monumento
há quase três semanas. E o perdeu há cinco dias. Monumentos, mais que do que
enaltecer pessoas ou lugares, dizem quem nós somos ou nos alertam para o
passado que não deveríamos mais repetir. Via de regra, os mais importantes são
aqueles que brotam de ações anônimas, e não de atos premeditados pelo Estado e
seus governantes.
Santos ganhou uma ghost
bike. O monumento representou, acima de tudo, o grito contra a selvageria que
decidimos adotar no trânsito da cidade. A bicicleta branca, pendurada a dois
metros de altura, na esquina das avenidas Conselheiro Nébias e Afonso Pena,
expôs o caos sobre rodas, no qual todos os atores tem a sua cota de
responsabilidade.
A bicicleta, enquanto
novidade, atraiu a curiosidade de muita gente que, ao menos por um minuto,
pisou no freio do próprio cotidiano para refletir sobre as escolhas que fizemos
(ou deixamos fazer) no gerenciamento de tráfego e de transporte coletivo em
Santos.
A bicicleta escancarou a
imagem de que planejamento não é uma de nossas melhores qualidades. Apenas a
morte nos tira da inércia. Foi preciso que uma ciclista morresse para que se
pensasse sobre o trânsito como um revólver com o dedo no gatilho.
A ciclista tem nome e
sobrenome e não é preciso conhecê-la para se lembrar dela, inclusive pelo que
passou a representar. Raquel Guimarães Martho tinha 66 anos e levava um gato
para castração, em 23 de agosto, quando foi atingida por um caminhão. Possuía
outros 13 animais. Era militante na defesa dos animais. Deixou uma filha,
grávida de cinco meses.
É fundamental aproveitarmos
o momento eleitoral (fase na qual os políticos saem de seus gabinetes e tentam
manter contato com os mortais que apertam as teclas das urnas) para cobrar
ações efetivas que organizem o trânsito da cidade.
A situação é tão séria que
muitas pessoas resolveram, por exemplo, trocar os ônibus por caminhadas. A
necessidade que faz a qualidade de vida, diriam os cínicos. O trajeto do Canal
1 até a avenida Conselheiro Nébias pode ser feito, a pé, em 40 minutos. Entre
17 e 19 horas, o mesmo trecho via ônibus leva o dobro do tempo. Daria para
chegar à São Paulo pela ponte rodoviária.
Optamos por digerir a
retórica da autobajulação política nas ciclovias, incompletas, que muitas vezes
conectam lugar nenhum com o vazio geográfico. Os ciclistas, de fato, são
obrigados a abandonar a via para acessar avenidas transversais. E transformar
uma das calçadas do Canal 1 em ciclovia não simboliza atitude digna de ser
classificada como inteligente.
Enquanto se mantinha em pé,
passei por duas vezes em frente ao monumento. Uma delas, inclusive, para
fotografar o lugar. Numa das visitas, cinco operários observavam e tentavam
trocar informações sobre a morte de Raquel. O problema entrou na agenda daquele
grupo de trabalhadores.
Na outra visita, de dez
minutos, foi possível testemunhar ciclistas entre os carros na avenida Afonso
Pena, a dois metros da ciclovia. Taxistas rompiam o semáforo para ganhar meia
dúzia de segundos a mais. Motoristas paravam seus carros com status em
financiamento de 36 vezes (a juros de 0.99%) na faixa de pedestres.
Uma moça saiu do ponto de
ônibus e, admirada com as flores que cercavam o monumento, me perguntou
detalhes sobre o acidente. Parou para ler o manifesto pregado abaixo da
bicicleta branca. Foi neste momento que uma senhora abordou a colega jornalista
que estava comigo. A senhora olhou para a bicicleta, virou-se para a jornalista
e perguntou:
— Você sabe se o gato se
salvou?
Tive a impressão de que, onde vivemos, a bicicleta branca corre o risco de virar uma Torre de Babel.
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