sábado, 4 de fevereiro de 2017

Uma guerra de trincheiras



Este texto é o discurso de Colação de grau para os formandos em Jornalismo, da Universidade Católica de Santos. Quarta-feira, 1º de fevereiro de 2017.

Marcus Vinicius Batista

Como é de praxe nos discursos de colação de grau, vou citar alguém para cumprir o protocolo. Como diria Claudio Abramo, o Jornalismo é o exercício cotidiano do caráter.

Como aprendi a respeitar os mais experientes e absorver os ensinamentos dos craques, levo esta frase debaixo do braço há quase 25 anos. E, por isso, não posso - como ex-professor e colega, mentir para vocês.

Vocês entraram numa guerra de trincheiras. Para explicar, uma guerra de trincheiras é marcada pelo alto índice de mortalidade. No nosso caso, de mortalidade profissional.

Uma guerra de trincheiras é longa, exaustiva, repleta de doenças, com comida e remédios escassos, além de inimigos não previstos no roteiro, como ratos, o frio, a chuva, o desespero dos colegas.

Por outro lado, a guerra de trincheiras te ensina o valor da solidariedade, da cumplicidade do soldado que cobre sua retaguarda, da convivência de quem divide as histórias mais íntimas que sustentarão uma trajetória de lealdade, companheirismo e amor, caso consiga chegar vivo em casa.

A guerra de trincheiras te ensina a dar valor ao mínimo; um cigarro que alguém te oferece numa madrugada de frio, uma caneca de sopa após horas de tiros e resistência ao inimigo, um ombro molhado, duro e cansado, que te acolhe quando teus colegas caem ao solo e tudo acima parece desabar.

A guerra de trincheiras te dá o inimigo, mas te surpreende com a amizade eterna. Esta guerra te apresenta a morte, mas te aponta a próxima curva da vida.

O Jornalismo atual está dentro de uma trincheira. E vocês se tornaram voluntários dela. Os mais apressados batem no peito que o Jornalismo morreu. São apressados e desinformados.

O Jornalismo foi baleado. Não posso enganar vocês com palavras empolgantes, primas da falsa inspiração. Minha obrigação é dizer a vocês que o Jornalismo sangra. Sangra na trincheira, em vias de encarar o frio da madrugada e os ratos - em forma de gente - que se alimentam de nossa profissão. Que encenam fazer parte dela, enquanto agem em benefício próprio.

Como disse antes, a trincheira é também terreno da amizade, da lealdade, da cumplicidade, do amor entre as pessoas. O Jornalismo só sobreviverá a esta noite de frio se os jornalistas - também entrincheirados - resolverem socorrê-lo.

Os medicamentos estão à disposição. Uma pílula de consciência social. Uma injeção de politização. 100 gotas de cidadania. O tratamento de olhar para o outro, respeitá-lo, compreendê-lo e enxergá-lo como alguém que também atravessa o campo minado.

O Jornalismo só estancará o próprio sangue se as feridas forem costuradas. A costura é fazer Jornalismo para quem sofre com o poder, para quem é atropelado por este tanque. O Jornalismo não é para quem comanda os exércitos, é para quem se tornou vítima da frente de batalha.

Vi, ontem, 15 colegas da rádio CBN-Santos caírem de pé depois do bombardeio que fechou a emissora e selou seus empregos. Todos me olharam de cabeça erguida. Preocupados, mas dispostos e ver o sol amanhã, após mais um tiroteio na trincheira

A vocês, meus colegas jornalistas, peço que lutem. Mais do que lutar por si mesmo, falo de combater quem tentar assassinar nossa profissão. Suas armas são informação, conhecimento, preparo diário, com a disciplina de um soldado. Lutem, escrevam, argumentem e informem.

E pratiquem o exercício cotidiano do caráter. Muito obrigado!

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O último jornal da CBN-Santos


Marcus Vinicius Batista

Uma redação de jornal é um termômetro do humano. É o endereço perfeito para se aprender um pouco sobre comportamento, dos jornalistas aos entrevistados, dos proprietários ao público. 

Numa redação, cultivam-se os sete pecados capitais, mas colhem-se as virtudes que servem de alimento nas crises, dentro e fora dali.  Qualquer redação carrega nas costas o próprio paradoxo, da convivência entre a História instantânea e a construção contínua de fatos quase sempre inacabados, sedentos por explicação e contexto.

Hoje, foi a edição 1210 do jornal da CBN-Santos. A última edição depois de quatro anos. Em pouco mais de duas horas, jornalistas e técnicos da emissora transitaram por um caldeirão de sentimentos e emoções, que talvez resuma o que é o Jornalismo contemporâneo e o que significa a ausência dele.

Logo no começo do jornal, todos estavam concentrados em executar o roteiro como se fosse um dia normal. Uma batalha perdida, pois o jornal de terça-feira, 31 de janeiro de 2017, era único. Cedo ou tarde, todos se renderiam às evidências da quebra da rotina. Hoje, última vez. Amanhã, o vácuo da mudez.

O repórter Vitor Anjos tentava atender aos chamados de whatsapp, quase 100% cumprimentos e lamentações dos ouvintes. Ele parou o que fazia, se virou e disse: “estou me sentindo mal. Dia esquisito. Parece um velório.”

A melancolia se misturava com a resignação. Vitor e Alex Frutuoso, um profissional experiente e símbolo de serenidade, conversaram sobre as rescisões contratuais. A preocupação de quem têm filhos – Alex se mudou para Santos recentemente – diante de um cenário onde 15 profissionais foram demitidos. Ambos são o retrato do jornalista brasileiro, que precisa de mais de um emprego para conseguir equilibrar as contas e sustentar uma família.

O apresentador e editor Oswaldo Júnior parecia ter formigas subindo pelas pernas. Indignado no ar, marca pessoal do âncora, ele tentava manter o sorriso e a descontração fora dele. Oswaldo estava mais inquieto do que o tradicional. Entrava e saia do estúdio a cada intervalo. Não dava as broncas habituais. Dava a impressão de contar até dez a cada matéria no ar, momento em que olhava para o estúdio à procura pelo diagnóstico do ambiente além dos vidros.


Oswaldo Júnior, comandante da CBN-Santos

O cozimento virou fervura quando Oswaldo viu os técnicos da Saudade FM, rádio que assumirá a frequência da CBN-Santos a partir de meia noite, trabalhando nos cabos, dentro e fora da redação.

Um deles sorriu para o estúdio. Entre a ironia e a simpatia, Oswaldo absorveu a primeira hipótese, o que não surpreende nem representa demérito frente aos bastidores da troca de microfones.

O sorriso bastou para que Oswaldo se mexesse e relatasse o desrespeito com que os profissionais da CBN estavam sendo tratados. Era um serviço que poderia esperar, que poderia ser feito após o programa, quando o movimento da redação fosse menor. Oswaldo entendeu como provocação e, após uma queixa aos tubarões do aquário, os técnicos deixaram a emissora. O serviço e o constrangimento ficariam para mais tarde.

A redação ficou mais apertada com a chegada de três repórteres que passaram pela emissora. Mayara Rached, Guilherme Pradella e Carol Bertholini são filhos da escola Oswaldo/CBN e adicionaram pitadas de nostalgia e saudade no caldeirão chamado jornal n.1210.

Mayara, de maneira involuntária, injetou bom humor numa atmosfera de incerteza. Fazer o café da redação foi o detalhe que se torna essencial para virar o leme diante do vento instável. Alivia as dores e conduz os rostos para outro horizonte, pelo menos por cinco minutos. Os direitos trabalhistas foram para trás da cortina e as perguntas sobre o cotidiano de cada um receberam a luz para empurrar o espetáculo adiante.

Fora do estúdio, os repórteres ressuscitavam lembranças do comportamento do Oswaldo, o chefe-professor que os colocou no fogo, ou seja, os “intimou” a apresentar o jornal nos sábados de Cultura, entrevistas longas e música ao vivo.

Lá fora, o temor pela instabilidade do mercado, as possibilidades de retorno da rádio e a recontratação dos colegas eram assuntos insistentes, que teimavam em aproximar as conversas informais de uma reunião de pauta tradicional. Não há repórter que resista a um cardápio de notícias que os engoliu.

No ar, os três entraram numa zona de cessar-fogo, onde falaram sobre suas experiências como repórteres, as coberturas importantes, como a morte do então candidato à presidente Eduardo Campos. Notícias ruins, momento de alta performance de cada um dos jornalistas.

Na redação, Alex Frutuoso tentava domar a concentração que sempre lhe foi cúmplice. Entrevistas precisavam ser feitas, textos a serem escritos, pensar no programa de esportes a seguir. “Um segundo só, por favor”, era o que pedia para aqueles que entravam e saiam da sala.

Era quase o sussurro de quem tentava cumprir a última missão sem levantar a bandeira branca ou hastear a bandeira da CBN a meio pau. “Oswaldo, espere um pouco, estou escolhendo uma foto”, era o recado sem alterar a voz, pois o site ainda carecia de alimento.

Do outro lado da redação, Vitor Anjos repassava as mensagens dos ouvintes, lia e-mails e mexia no Facebook. Uma dúvida: apagar as páginas ou deixá-las inativas? Vitor conversava com Roberta, responsável pela área, e com um dos técnicos. Os pormenores avisavam que o jornal, embora seguisse para o final da última edição, ainda deixaria arestas a aparar. Quatro anos não falecem em duas horas, lição que nenhuma faculdade pode dar.

Todos os jornalistas, sempre que voltavam a conversar sobre o final da programação, citavam a colega Roberta Caprile, recém-formada e contratada há um mês. Ela cobria a presença do governador Geraldo Alckmin, que visitava Santos para inaugurar mais um trecho do VLT. Roberta entrara ao vivo pouco antes e retornaria à redação ao final do jornal.

“E aí, professor?, me perguntou assim que chegou. “Tudo bem?” “Tudo, na medida do possível.” Só pude dizer que tudo daria certo. Que tinha competência para continuar a trabalhar no Jornalismo. Qualquer outra frase soaria artificial e mentirosa.

Naquele momento, Oswaldo anunciava – no ar – que em duas semanas teria novidades. Ele garantia que todos os profissionais seriam recontratados. Era a busca por uma nova frequência.

Minha relação com a CBN-Santos é afetiva. Estive lá como entrevistado, entrevistador, comentarista, assessor de imprensa, funções variadas que me permitiram testemunhar como a rádio que toca notícia costuma digeri-las.

Entre erros e acertos, jamais o ouvinte passou mal ou se sentiu enfastiado. O ambiente – como minha esposa Beth lembrou – reacende em mim o bichinho que sobrevive no sangue. Sai da redação, mas ela não saiu do meu organismo. Bom, me levou de volta às coberturas de Carnaval.

Hoje, de surpresa, Oswaldo Júnior me convidou para uma entrevista no estúdio. Os últimos 20 minutos do jornal. Antes de entrar, pensei que deveria ser simpático, animado, empolgado até. Uma forma de celebrar o Jornalismo praticado pela rádio, enquanto deixava a condição de observador.

Falhei. Quando me vi, respondia às perguntas em um tom que beirava o melancólico, de quem tinha dificuldades em se despedir. Refletia sobre o vazio que o Jornalismo deles deixará na imprensa da região. Lembrava-me das conversas preocupadas sobre desemprego, recolocação no mercado de trabalho e na perspectiva de retomada em outra frequência. Dificuldade para me concentrar, luta para não ser dispersivo. Oswaldo que me perdoe. Falhei com quase 25 anos de experiência. Humano.

Até logo, meus colegas da redação CBN-Santos, a história de vocês não teve um ponto final. Foi somente a respiração de uma vírgula.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Os tons de cinza




Marcus Vinicius Batista


O mundo nunca foi preto ou branco. O mundo de duas cores só existe entre os ingênuos e os maniqueístas que, no fundo, costumam ser as mesmas pessoas.

O mundo pode ser cinza. Em múltiplos tons, como tatuagens dos autoritários e insensíveis que, sempre, costumam ser as mesmas pessoas. E nada glamourosos como mentem os livros de literatura pseudo-ousada.

O mundo deveria ser colorido. Em todas as nuances, como retratos da diversidade, da diferença, da tolerância, do amor, sentimentos nobres que - juntos - habitam a mesma pessoa. O mundo que se manifesta na arte urbana, como marca de politização, consciência social, pluralidade de opiniões, conteúdos, estilos e estéticas.

Em 1984, romance clássico de George Orwell, as pessoas viviam vestidas de branco e residiam em um mundo acinzentado. Nas cidades operárias, fruto das revoluções industriais, o lazer é supérfluo. A cultura é badulaque. As cores da artes distraem e, por contradição, fazem pensar quem deveria somente trabalhar, servir, se escravizar e se submeter.

O prefeito de São Paulo, João Doria, é um ícone da obsessão pelo trabalho, pela propaganda que defende uma vida de aparências. O prefeito que torna São Paulo uma cidade apagada é o empresário-construtor de imagem, que se veste de gari, que anda em cadeira de rodas, para encenar preocupações, para mascarar violência.

Quando deixa a cidade cinza, Dória externa - na camuflagem do sorriso branco de publicidade - o desejo de controle. O desejo de manter o pensamento paulistano no cabresto da uniformidade. Todos iguais, todos de joelhos perante o Grande Irmão, único capaz de decidir o que todos devem rezar, por obrigação.

Enxergar e governar em tom de cinza é sinal de visão embaçada. São Paulo é uma aquarela, e não as cores do pintor preferido do prefeito, que finge não repetir sempre o mesmo desenho. Ele é cinza também, mas com um verniz que tagarela, vende e pouco pensa.

O autoritarismo, presente nos ismos de esquerda e de direita, sempre teve uma cor: o cinza. Às vezes, travestido de vermelho. Às vezes, fantasiado de verde e amarelo. Que os muros e viadutos suem em arco-íris.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Os presos errados


Cadeia Velha de Santos. Foto: Matheus Tagé/Diário do Litoral

Marcus Vinicius Batista

Os carrascos deste século não usam capuzes pretos. Eles expõem seus rostos, protegidos com status de “autoridades”. Os carrascos não andam armados de foices ou posam ao lado de guilhotinas ou forcas. Eles prendem canetas, muitas vezes importadas, aos paletós, para degolar suas vítimas com assinatura em papel timbrado.

Os carrascos não sentem remorso, culpa ou temem ser estigmatizados pelo que fazem. Eles sorriem, falam em pausas programadas, oferecem café e água antes de fingir que negociam rendição. Para os carrascos, as decisões são tomadas com antecedência. Eles recebem o pedido de execução e seguem a cartilha na qual nunca consta misericórdia.

Os carrascos estiveram em Santos, na semana passada. Treinados para ignorar o passado alheio e negar as próprias mentiras recentes, eles vieram com o discurso costurado em pele de carneiro. Era a hora de matar a Cadeia Velha de Santos. Matar com um único disparo, no coração.

Atirar no coração é tática de quem deseja liquidar a essência histórica do condenado. Antes, porém, foi preciso torturar a Cadeia Velha. Fazê-la entender que 35 anos de vida como formadora de artistas não apagam o passado anterior de prisão. Os carrascos absorvem, talvez pela lavar os próprios pecados, a raiva do que nunca viveram.

Admitamos: os torturadores são criativos, ricos em se aproveitar dos detalhes. Primeiro, reabrem a Cadeia, injetam uma dose de esperança de que a essência seria preservada, depois de meses de uma obra arrastada, dentro das tradições brasileiras.

O passo seguinte é abrir para fechar. Dinheiro é a desculpa-coringa. Empurrar para o outro; no caso, a Prefeitura, que gastou como dondoca em shopping e vive de bolso murcho. Novamente, a dança em torno do dinheiro, que some feito ilusão de mágico para crianças.

Os carrascos, porém, são seletivos. Eles se esquecem, por conveniência, que a Cadeia Velha foi morada de presos políticos, de gente que lutava pelas ideias que os carrascos tanto abominam, que viram pústulas tamanha a alergia à liberdade.

A crueldade se esgueira pelos sorrisos amarelados, pela falsa descontração de conduzir uma morte lenta e dolorosa. 35 anos de vida como formadora de artistas não seriam extintos da história. Virariam rodapé dela, com a lembrança viva pelo Projeto Guri, que seria transferido para as dependências de uma Cadeia morta.

O Projeto Guri, antes na Zona Noroeste, criará mais uma despesa, desta vez para as famílias que veem na Cultura um porto seguro de uma rotina na qual se contam as moedas. E agora, viajar atrás de Cultura em um ônibus mais caro? Os burocratas de salários europeus só enxergam o mundo pela janela de vidro envelopado.

Quando o moribundo cambaleia pelo tiro no peito, os carrascos descem a marreta na nuca. Na dúvida, é preciso garantir que não haja ressurreição. A marreta é da marca Agem, a Agência Metropolitana da Baixada Santista. A serpentina que envolve com carinho a Metropolização, a melhor fantasia política dos últimos 20 anos.

Os carrascos são perversos. Não bastou sorrir para os artistas enquanto assassinavam a Cadeia Velha de Santos. Para dar o recado aos “subversivos” – palavrinha do século passado, mas retomada por quem ainda acha que vive nele -, a ordem foi expressa: lotar a Cadeia com burocratas, com gente que nunca foi apresentada à arte e, se foi, não conseguiu estabelecer o mínimo diálogo.

Lotar a Cadeia de seres que se alimentam de projetos, de programas requentados, de café e reuniões e mais cafés e reuniões e comissões, mas que passam mal de pedir auxílio médico quando ouvem que é necessário trabalhar na vida prática.

A Cadeia Velha de Santos lacrimeja e pede socorro aos artistas, mas sinto que os sujeitos com algum poder na cidade os abandonaram no meio da Praça dos Andradas. Os artistas têm a voz, o suor, a criatividade e a força de trabalho para medicar a Cadeia, hoje sonhando em contradizer suas origens.

Se no passado a Cadeia Velha prendia quem fazia política, hoje ela reza para que expulsem os políticos de dentro do seu ventre.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Fora do ponto

Foto: Juicy Santos
Marcus Vinicius Batista

A decisão do Poder Judiciário em reduzir o preço da passagem de ônibus estipulada pela Prefeitura é só mais um capítulo na desastrosa política de transporte público em Santos. Antes, uma ressalva: a Justiça manteve o aumento, pois o preço foi fixado em R$ 3,45, vinte centavos a mais.

Vamos pegar um desvio e sair da rota que nos leva a velhos problemas, como tempo de espera, monopólio no transporte de ônibus convencional, ar-condicionado e Internet apenas em parte da frota. Vamos discutir matemática, mexer no bolso para entender como o planejamento perdeu a viagem.

A Prefeitura aumentou a passagem em 18%, ou seja, R$ 3,85. Isso significa cinco centavos a menos que os ônibus Seletivos, que operam em três linhas. Neles, não há passageiros em pé, todos os veículos têm ar-condicionado, o ônibus estaciona fora do ponto. Por R$ 3,90.

Quando anunciou o reajuste, a primeira justificativa oficial foi a redução de passageiros da Viação Piracicabana. Depois, vieram os dois anos sem aumento, entre outros argumentos. Nesta equação de segundo grau, entrou um novo X: o Uber.

O Uber, quando não está com preço dinâmico, que pode torná-lo mais caro do que um táxi, vira uma pechincha ao transportar três ou quatro pessoas. Uma corrida do Shopping Praiamar, por exemplo, até o Campo Grande - entre os canais 1 e 2 - custa, em média, R$ 14. O tempo de espera é mínimo; o de viagem, mais rápido, com ar-condicionado e bom atendimento.

Faça as contas, com a passagem de ônibus a R$ 3,45 ou R$ 3,85. Dá quase no mesmo. Os motoristas de Uber costumam relatar que transportam muitas famílias de classe média baixa, antes usuárias de ônibus, e não de táxis.

Os vereadores, cuja principal função é monitorar e fiscalizar o Poder Executivo, alegaram impossibilidade de intervir no aumento das passagens de ônibus. Se hoje lavaram as mãos, aprovaram sem ressalvas, no final de 2015, o projeto de lei que proibia o Uber na cidade. Nesta história, taxistas compraram brigas que mal sabem onde começam e onde vão terminar. Lutam para melhorar o atendimento e conter o êxodo de passageiros.

A Prefeitura criou uma Comissão de Mobilidade Urbana - você já viu por aí? - e nada mudou na política de transporte público, exceto elevar o preço das passagens de ônibus dois meses depois das eleições.

Realmente, a conta não fecha. Não há proporcionalidade, porcentagem ou fórmulas matemáticas capazes de explicar os critérios para os preços de transporte na cidade de Santos. Ao passageiro, só sobrou tirar o lápis que dorme atrás da orelha.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Anchieta - a "Casa dos Horrores"


Casa de Saúde Anchieta, em foto de 2007

Este é o quarto de uma série de seis textos sobre os 25 anos do projeto TamTam. Nesta postagem, a importância da Casa de Saúde Anchieta para as discussões sobre saúde mental e para a criação de um projeto cultural liderado pelo arte-educador Renato Di Renzo.
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Marcus Vinicius Batista

O projeto TamTam nasceu dentro da Casa de Saúde Anchieta em 25 agosto de 1989, quando o arte-educador Renato Di Renzo foi ao local apenas disposto a ajudar, mas sem uma ideia profunda do que poderia fazer. Ali, brotaria uma iniciativa de arte, inclusão social e saúde mental que sobreviveu à extinção de uma das piores manchas na história da psiquiatria brasileira.

Enquanto o projeto TamTam voou para outros endereços, o que aconteceu com o Anchieta depois da intervenção da Prefeitura no mesmo ano? O que resta hoje do antigo manicômio, inaugurado na década de 50? Por que o hospital é tão importante não apenas para a história da saúde pública, mas também para a biografia do Teatro, em Santos?



Renato e pacientes do Tam Tam

Hoje, o imóvel que abrigou a Casa de Saúde Anchieta não apresenta rastros dos tempos de hospital psiquiátrico. Muito menos de espetáculos teatrais, como a peça em que o Papa e um pirata assaltam o Vaticano e dividem o produto meio a meio. A primeira encenação envolveu dois pacientes, um deles Ercílio, que hoje trabalha no programa municipal de reciclagem de lixo, em Santos.

O Anchieta é apenas uma carcaça do lugar que abrigou o principal manicômio do litoral de São Paulo. O local se transformou em um cortiço, onde residem 54 famílias. São cerca de 150 pessoas. As condições de vida são insalubres, com sérios problemas estruturais no edifício. A desapropriação do imóvel se arrasta no Poder Judiciário.

Em 27 de setembro de 2012, um dos cômodos do imóvel pegou fogo. Ninguém se feriu. No cômodo, residiam sete pessoas, de duas famílias, que perderam tudo. O incêndio teria sido provocado por um curto-circuito.


Incêndio em 2012. Foto: G1-Santos

A história da Casa de Saúde Anchieta começa em 1951 bem antes do projeto TamTam. O hospital, de propriedade privada, tinha teoricamente capacidade para 450 leitos. Até o final da década de 80, pouco se sabia sobre a instituição, uma caixa-preta tanto para a imprensa como para as autoridades de saúde. O Anchieta seguia à risca o silêncio da cartilha dos manicômios que se espalharam pelo país.

A intervenção na “Casa dos Horrores” aconteceu em 3 de maio de 1989 por parte da Prefeitura de Santos. A gota d´água foi a morte de três internos. O lugar colecionava denúncias de maus tratos, mortes e superlotação de pacientes, muitos deles espalhados por corredores e pátios. O Anchieta, nome popular do hospital, era um dos símbolos dos manicômios como depósitos de pessoas.

Uma equipe multidisciplinar promoveu uma avaliação dos pacientes, muitos deles com marcas de violência pelo corpo e desidratados. Em outros casos, internos não recebiam alta por conta da desorganização dos prontuários. Nas instalações, a precariedade se repetia: cadeados que isolavam pátios, enfermarias fechadas e chuveiros sem água quente.

Havia também o “chiqueirinho”, apelido para o espaço onde os pacientes eram trancafiados. Eram celas fortes, de dois metros quadrados, com pouca ventilação, sem luminosidade e local para as necessidades fisiológicas.

Como tratamento, pacientes recebiam eletrochoques e não existia controle sobre os medicamentos. A Casa de Saúde Anchieta abrigava todo o tipo de marginalizados, de doentes mentais até alcoólatras e usuários de drogas. Um mês depois da intervenção, em junho de 1989, o lugar ainda abrigava 350 pessoas.

Com a intervenção, o hospital reduziu, gradualmente, o número de pacientes até fechar as portas, em definitivo, em 1996. A intervenção é lembrada até hoje como um marco na reforma psiquiátrica e na luta antimanicomial, inspirada na experiência em Triste, na Itália.

Em Santos, a desativação do hospital marcou também a implantação de Núcleos de Apoio Psicossocial, os NAPS, modelo de atendimento descentralizado que existe até hoje. O primeiro começou a funcionar na Zona Noroeste de Santos, também em 1989.

Curiosamente, a legislação que deveria acompanhar o fechamento dos hospitais psiquiátricos só foi aprovada 12 anos depois no Congresso Nacional. O projeto de lei, apresentado pelo deputado Paulo Delgado (PT/MG), regulamentava os direitos dos pacientes com transtornos mentais e estabelecia o fechamento de todos os manicômios no país.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Santos em silêncio



Marcus Vinicius Batista

Santos é uma cidade sob efeito de entorpecentes. Uma cidade à base de sedativos. Um município dependente de Lexotan político, tamanha a anestesia diante das más notícias, dos truques eleitorais e do planejamento quase ausente por parte da administração municipal.

Poucos gritam. Ninguém nas ruas. Protestos no quintal de casa só quando os semáforos atrasam o passeio. A última má notícia foi o aumento do preço das passagens de ônibus. Quase 20%, a partir de segunda-feira. É a compensação depois de um ano de congelamento. Uma manobra política para enganar os usuários.

Os dois sindicatos que cuidam dos interesses do funcionalismo enfrentam dificuldades em mobilizar os funcionários. O 13º salário atrasou pela primeira vez neste século. Outros benefícios também seguem se arrastando na burocracia, como as licenças-prêmio. Os sindicalistas, combativos há quatro anos, inclusive com greve, conversam, conversam e conversam...

Quem utiliza hospitais como a Santa Casa sabe - com pós-graduação - o sufoco no atendimento público de saúde. As esperas para consultas em algumas policlínicas parecem tempo de gestante. A Prefeitura fez festa para (re)inaugurar um hospital, o dos Estivadores, que permanece fechado. Três datas diferentes só para a abertura da maternidade.

A dívida da Prefeitura explodiu em quatro anos e empresas como Prodesan e Cohab permanecem na conta sem justificar suas existências. Os moradores da Vila Telma conhecem, de carteirinha, a lentidão, ou melhor, a paralisia da Companhia de Habitação. Até hoje, o conjunto habitacional que seria construído para as vítimas do incêndio está na fundação, com a promessa (entenda, chute!) de inauguração em 2018.

Agora, há um segundo grupo, de centenas de desabrigados, do incêndio no Caminho São Sebastião para esperar por palavrório de quem perdeu dinheiro internacional por não executar um projeto de revitalização na Zona Noroeste.

A Santos com atmosfera parisiense sumiu depois do final do Horário Eleitoral Gratuito. As más notícias são dadas em doses homeopáticas, para que os pacientes se acostumem com os sintomas da doença.

Santos segue em silêncio. Ficaremos mudos até 2020?