segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Onde vivem os monstros


O monstro carbonizado (Foto: Carlos Abelha/G1-Santos)
Marcus Vinicius Batista

Acuado, o monstro nada pôde fazer contra o fogo. Ele estava preso ao chão que escolheu viver, pela mente acovardada dos homens, desde o século 16. O Ipupiara, endeusado em monumento, queimou onde se consolidou como lenda. A figura mitológica que apavorava os viajantes ficou inofensiva diante dos monstros deste século.

O Ipupiara é uma fotografia em fibra de vidro e histórias. É a alegoria de tempos em que os homens pilhavam, matavam, violentavam enquanto temiam a terra desconhecida, enquanto construíam seu próprio medo diante do que não poderiam controlar. Eles continuam assim, porém seus medos são de outra natureza, registráveis em fotos, localizáveis pelo teclado.

Hoje, o Ipupiara é o retrato do medo de nós mesmos. O pavor da violência gratuita, sem motivo consistente, apenas sustentada pelo prazer perverso de demolir aquilo que não conheço como símbolo, que não reconheço como parte de mim, que entendo somente como obstáculo ou como descarga de ódio inconsequente.

Por mais que as sucessivas administrações locais insistam em fingir interesse no passado, o Ipupiara materializa um dos poucos instantes em que se torna possível conversar com a São Vicente de outro dia. Compreender, pelas escamas do monstro, por que homens resolveram aportar aqui e reconstruir a vida, quais seus desejos, seus temores, os estragos que fizeram, a cultura que assimilaram e a cultura que modificaram. O Ipupiara, esquecido no cotidiano da praça 22 de janeiro, teima em nos dizer quem somos nas entranhas e, infelizmente, ainda nos indica o quanto bebemos na nossa maldade.

O Ipupiara vinha sendo torturado em silêncio. Primeiro, levaram suas mãos. Na quarta-feira de madrugada, as chamas o consumiram até a carcaça. O incêndio incinerou também parte do legado do escultor Daniel Gonzalez, um filósofo de olhar único, um artista criativo e múltiplo.

São Vicente é o sarcasmo e o espelho de como quem tem o poder se comporta para preservar a cultura. A primeira vila do Brasil – esqueça a papagaiada de primeira cidade, que é Salvador – fala de si mesma como pioneira, mas é anacrônica na conservação da própria imagem. O Porto da Naus, hoje mais um terreno baldio, é a verdade histórica não apenas do começo de São Vicente, mas da forma bizarra em que se olha pelo retrovisor.

O Ipupiara carbonizado dá um suspiro e nos aponta que os monstros estão entre nós há muito tempo. Não em forma de estátua em fibra de vidro, mas na incompetência de quem desconhece que a história segue como memória, identidade e pensamento, em beleza e monstruosidade.


terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Uma carta infantil

Eles estão de mal?

Marcus Vinicius Batista

A carta escrita pelo vice-presidente Michel Temer, mais do que servir como gatilho para ser mais do mesmo na crise que congela o país, representa o retrato de como se pratica política por aqui. É um espelho sobre como ainda somos juvenis - por que não infantis, eventualmente? - quando temos que lidar com os processos democráticos.

A carta - qualquer alienígena sabe - foi a tentativa de Temer de se divorciar de um casamento que lhe deu muitos benefícios em cinco anos. Ao contrário do texto, o vice-presidente sempre usufruiu do poder e participou com garras e fome da festa da distribuição de cargos que alcançou a insanidade de 39 ministérios.

A carta não é um desabafo, é uma jogada de quem sempre teve ambição desmedida e sede de poder. Temer tem ciência, acima de tudo, de que jamais será presidente do Brasil pelas vias tradicionais. Nunca foi puxador de votos, sempre entrou pelas portas da legenda, o PMDB.

Desvencilhar-se de Dilma Rousseff é a chance de procurar o bilhete premiado. Tanto que Temer procura passar a imagem de conciliador, de unificador de todas as correntes. Outra ilusão, diante de um partido multifacetado, que se sustenta por alianças internas e externas de ocasião, pouco importa o preço das almas a serem vendidas ou compradas.

O texto de Michel Temer o trai, e não precisamos das entrelinhas para perceber suas razões. O vice-presidente fala de fisiologismo com a naturalidade e coerência de um congressista brasileiro. Presentear e dividir cargos não é uma atitude ética, caro vice-presidente. É o retrato escarrado da podridão que norteia a política nacional, vide a confusão em torno do reizinho Eduardo Cunha que, em outras bandas mais sérias, já estaria algemado e atrás das grades. No mínimo, com a carta de renúncia nas mãos.

O histórico de Michel Temer o denuncia. Quem acompanha o Porto de Santos sabe o quanto sua influência foi forte pelos armazéns e, principalmente, pelos gabinetes da Codesp. Duas décadas como eminência parda. O controle de cargos e salários é visto, dentro da política, como uma qualidade, marcante em sujeitos classificados como articuladores, conciliadores, mestres das sombras, parte da responsabilidade de um vice-presidente, que nada tem de decorativo.

A carta de Temer também significa os reais desejos de um político, palavra sinônima de vaidade. Até os homens que se escondem são vaidosos e se traem, eventualmente. Como conhece a fundo o PMDB - e se cobriu com esta colcha de tantos retalhos -, Temer personificou sua função no Governo Dilma. É um traço juvenil de uma cultura tropical.

O sistema político brasileiro é personalista. Os partidos (34, no momento, mas pode mudar ao final deste texto) são, em sua maioria, prateleiras de um supermercado de influências e interesses. O eleitor, que não é bobo nem vítima, percebe onde o voto aperta e escolhe as personalidades. Temer é o reflexo deste comportamento, em que tudo se resolve na caneta de quem manda, e pouco no grupo que o cerca.

O vice-presidente se sentiu excluído do Governo Dilma. Mas a história não pode ser redesenhada de acordo com o pincel do pintor. O PMDB esteve abraçado com o PT enquanto o dinheiro corria pelas veias das instituições, assim como foi parceiro de primeira hora do PSDB durante a gestão Fernando Henrique e o abandonou com a derrota no horizonte. O que esperar de um partido com centenas de prefeituras e milhares de parlamentares em todas as instâncias, mas incapaz de apresentar um candidato à Presidência nos últimos 25 anos?

A carta de Michel Temer foi comparada, pelos apressados, ingênuos ou mal intencionados, com a carta de suicídio do ex-presidente Getúlio Vargas. Foi, de fato, a morte do mínimo de seriedade que restava neste cenário de crise. Mais coerentes foram as piadas em torno do texto na Internet.

A carta do vice-presidente entrará para a História, mas para mostrar outra vida, uma biografia de rodapé, um pingo que integrará um dos períodos mais sujos e tristes de um país que ainda não sabe como fazer política em tempos de democracia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O curso e os pecados

Quer aprender a ocupar escolas? Curso no Palácio dos Bandeirantes
Foto: Jornalirismo

Marcus Vinicius Batista

Abri o jornal na tarde de hoje e vi o seguinte anúncio: "Matrículas abertas! Aproveite suas férias e participe do curso de extensão mais procurado do verão. Vagas limitadas!"

Não havia ninguém ao meu lado para dividir a fantasia. Apanhei uma tesoura e resolvi guardar o recorte. Vai que um inimigo precise. Era de graça. O número de telefone, no canto direito inferior, me fez ligar para matar a curiosidade.

Liguei e, no terceiro toque, uma moça atendeu: "Palácio dos Bandeirantes."

"Oi, desculpe-me, foi engano. Queria saber sobre um curso."

"Ah, é aqui mesmo. O Curso de Reorganização de Escolas."

"Isso. Fiquei curioso."

"Claro, você quer se inscrever?"

"Não, não. Apenas vi um anúncio no jornal."

"Olha, se inscreva rápido. Tem muita procura e as aulas são com o próprio governador."

"Sério?"

"Sério. Inclusive porque falta professor por aqui. Vou te mandar um programa das aulas."

Cinco minutos depois, recebi um e-mail. Ao abrir a mensagem, o cronograma. Curso apostilado, com aulas em vídeo e toda a parafernália da educação fast-food.

O curso tem sete lições. Uma semana de aulas. A primeira se chama Soberba. Nesta aula, o Governo vai te ensinar como reduzir a importância dos estudantes, com argumentos que sustentam que jovens não são capazes de saber nada. Até porque não tiveram tantas aulas assim, explica o folheto.

Na lição seguinte, de nome Avareza, o curso pretende mostrar que a ordem é sempre não investir sem falar de dinheiro. Fecham-se escolas, alega-se falta de recursos - jamais mencione números financeiros, apenas estatísticas manipuláveis a seu favor - e usam-se palavras como otimização, sinônima de reorganização, no sentido pejorativo da bagunça.

Na terceira aula, fale de Gula. Sede e fome de poder. Tome decisões sem consultar ninguém. Imponha as regras de cima para baixo, sempre contando com a falta de crítica política das pessoas. Gula, deste modo, é irmã da soberba. No folheto, uma observação: as aulas são interligadas. Chame de interdisciplinaridade.

Para equilibrar o ritmo, acelerado na aula anterior, o curso traz a Preguiça. Não há necessidade de esforço no debate público. Fale em uso político pelo movimento estudantil. Tudo que acontecer é política. Na cortina de fumaça, diminuímos a política estudantil, transformando o mérito em deficiência.

O próximo encontro aborda a Ira. Morda e assopre, na prática. Finja conversar, convoque as autoridades fardadas. Fale em Guerra. Troque o giz e lousa por cassetetes e sprays de pimenta. Estudantes são baderneiros que deveriam fingir que aprendem nas escolas sem infra-estrutura e com professores desmotivados.

O auge do curso parece ser a Luxúria. Neste ponto, aprendemos como sacrificar todos pelo prazer do poder. O Reorganizador de Escolas precisa responsabilizar professores, culpar os gestores locais, criminalizar estudantes e, como gozo final, decapitar o secretário de Educação em praça pública, enquanto fala muito sem dizer algo diante de câmeras e microfones.

A última aula se chama Vaidade. Diante da pior popularidade, o Reorganizador precisa manter a pose. Dizer que está aberto ao diálogo, mesmo que o tenha sempre negado. Adiar as medidas autoritárias, descansar o sono de beleza e sonhar com a retomada do processo quando a caldeira esfriar.

Terminei a leitura, pensei por um segundo, fechei a mensagem e voltei a cogitar sobre como as férias são valiosas demais para desperdiçar com cursos preparados às pressas.

sábado, 14 de novembro de 2015

A guerra faz parte do show



Marcus Vinicius Batista

Vivemos sob estado de guerra. Não se trata apenas dos conflitos em andamento, seja na Nigéria, na Síria, no Afeganistão, no Iraque ou em Paris. Não me refiro somente aos ataques de grupos típicos do mundo pós-moderno, que falseiam os territórios, que desprezam governos, mas não o poder, no qual prevalecem - como pano de fundo - os olhares mercadológicos sobre a vida e a morte.

Os conflitos ultrapassam os limites entre perspectiva ocidental e olhar islâmico sobre o mundo. O choque de civilizações ruiu como conceito e prática política desde que a globalização aportou como nova versão do tempo-espaço.

A guerra em que vivemos é maior do que uma crise de valores, que me soa mais permanente do que transitória, como se caracterizam as crises. Talvez tenhamos que admitir que somos assim, não em crise, que pressupõe mudanças amanhã, ao nascer do sol.

A guerra e sua face violenta sempre esteve entre nós. Sem entrar no mérito, o terror também sempre esteve entre nós, depende do ângulo de quem conta a história. O terror é irmão gêmeo da violência e da retórica, duas características humanas. Basta abrir qualquer livro de História, de qualquer período, de qualquer corrente de pensamento.

Vivemos, neste momento, uma guerra sob as asas do espetáculo, da transformação instantânea da tragédia humana em falso ineditismo, em novidade que camufla nossos velhos defeitos e desvios, nossas eternas doenças. O show precisa parir comoção. O show nos atrai por causas nobres, eleitas pelo senso comum e pela correnteza do pensamento único, que nos tornam melhores sem que precisemos sair do lugar.

Não há necessidade de se mobilizar, tampouco impulso em compreender com profundidade o que se passa (demanda tempo!), com motivações, impactos e rol de responsáveis e cúmplices. Basta um grito, uma imagem e estamos dentro do palco, integrantes do espetáculo que quantifica e localiza desastres alheios, sem que sejamos por vezes capazes nos incluirmos como distantes e indiferentes.

O show clama por súditos, ávidos por um novo conflito a partir do conflito midiático que o sensibilizou. Aí está nossa guerra, um combate seguro, de agressões genéricas, espalhadas pelos ventos virtuais que não refrescam ou assustam ninguém. Teclados e monitores são escudos blindados contra a crueza além da janela. É tudo retórica, a polêmica da semana que sobrevive pela sobreposição de fatos, pelo horror em estado de imagem, enquanto despreza a reflexão, o contexto e o processo histórico por natureza.

O espetáculo se alimenta da plateia. E uma plateia se organiza pelo barulho e, em parte, se houver um adversário. Um apenas, não vários, como se vê em quaisquer fenômenos políticos, econômicos e sociais. É uma peça de propaganda de guerra, que simultaneamente conquista corações e mentes - com o perdão do clichê - e define quais corações e mentes devem ser odiados. Uma história cinematográfica, na qual mocinhos e vilões precisam ter papéis claros, para rápido consumo, como nas dependências de uma lanchonete fast-food.

A lógica envolve a construção imediata de um inimigo, que tenha ao menos cheiro de instituição. Instituições legitimam oponentes. A vilanização cria a primeira camada maniqueísta para que, armados de discursos prontos, possamos lamentar e vociferar com a diferença de uma postagem. O problema é que o maniqueísmo passa por etapas de metamorfose, reproduzindo novos elementos para a virulência, para engrossar o juízo de valores que esconde nossa própria hipocrisia.

Mais do que a lógica econômico-financeira do noticiário, nós nos mobilizamos por um caminho e acabamos exorcistas dos demais. A hipocrisia ou a solidariedade não se manifestam por exclusividade ou eliminação. Amar uma tragédia não significa ignorar a outra. Só que o espetáculo se agarra no choque oco para se perpetuar nos próprios conteúdos que integram esse drama. Mariana vira Paris. Paris vira Nigéria. Nigéria se opõe à Mariana.

Enquanto nos preocupamos em apontar o dedo para determinar qual tragédia merece mais pontos na Bolsa de Valores, ficamos à mercê da superficialidade e da fragmentação que navegam como hóspedes nas costas da desinformação. O foco vira erguer armas que disparam saliva e vulgarizam palavras.

O espetáculo adora quando a guerra e a negligência reais não são questionadas com medidas políticas, populares ou não, em detrimento de quem pode dar a última palavra, ainda que espessa como brisa. O show alcança o gozo se a guerra for ganhar a conversa, se a ordem for colocar vidas humanas numa balança que pesa por nacionalidade, status via conta bancária, religião ou quaisquer outros fatores criados pela estupidez humana.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Diabo mora do lado


O deputado federal Beto Mansur. Foto: Agência Câmara

Marcus Vinicius Batista

O deputado federal Beto Mansur (PRN-SP) está no auge da carreira. Ele não está apenas na casa que pediu à Deus. Ele deixou de ser baixo clero, tornou-se um cardeal e está bem próximo do Diabo que comanda o país, o sujeito que se faz temer por toda a fauna, dos tucanos às raposas.

Mansur, como integrante da casa que o acolheu, reza pela cartilha da moral e dos bons costumes, o que reforçou seus valores e práticas políticas. Embora seja um homem do seu tempo, Beto tem uma postura bastante peculiar a ponto de me fazer pensar sobre comportamento humano. Não a ponto de duvidar de mim mesmo, mas de tentar compreender que tempo é esse, que visão ética é essa que se desenha a cada presença no noticiário.

A última peripécia foi o pagamento de mais de R$ 90 mil só esse ano para serviços de pareceres jurídicos que, descobriu-se depois, foram copiados da Internet. O copia e cola cada vez mais comum em trabalhinhos escolares. Não vejo necessidade de longos raciocínios sobre o ex-chefe do Cidoc na gestão Mansur, Wagner Mendes, ser um dos sócios do escritório de advocacia, autor dos pareceres. E nenhum dos pareceres se transformou em projeto de lei.

Quando se estuda Ética, aprende-se que não existem grandes ou pequenas ações. O valor ético ignora o valor financeiro. Vale a atitude dentro de um contexto social e cultural. Há dezenas de casos em que alunos de Direito, inclusive de pós-graduação, foram punidos por "pegar emprestado" textos alheios na Internet. Dois aconteceram numa universidade, aqui mesmo, de Santos. Portanto, sinta-se à vontade para entender a declaração do deputado federal, dada ao jornal A Tribuna: "Hoje todo mundo faz pesquisa na internet e vai buscar informações lá."

Esse episódio me remete a outro "pequeno" ato que retrata a lógica de pensamento peculiar do parlamentar. No primeiro semestre, Beto Mansur fez um selfie ao lado do prefeito Paulo Alexandre Barbosa durante o incêndio da Alemoa, a imagem que se tornou e o tornou notícia internacional.

A vaidade é uma característica inerente aos políticos. Ninguém desejaria tanto o poder, as trocas de interesses e os holofotes se não tivesse o pecado no sangue. Tanto que até o marketing político foi um tiro no pé nas eleições municipais de 2012, quando ficou em quinto lugar, com votação de vereador. Na ocasião, o atual deputado virou hit na Internet por conta do slogan "Foi obra do Beto". Exemplos acima justificados.

É preciso reconhecer que, no mundo da política, as histórias acima serão notas de rodapé na ficha dele. Hoje, ele se vê diante de um clássico dilema ético, mais complexo do que a simples decisão entre o certo e o errado. Ato falho, me perdoem: o certo e o errado dentro da maior casa legislativa soa sempre como "depende".

Beto Mansur assumiu o cargo de relator no processo de cassação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Uma vitrine para quem se alimenta de poder, mas com consequências proporcionais. Eis a encruzilhada! Se autorizar a abertura do processo de cassação, vai atrair a ira do Diabo e arriscar a própria carreira. Se travar o processo, será lembrado pela História como aquele que referendou o pacto com o Sete Peles, vendendo o próprio pescoço.

Qual será a próxima obra do Beto?

domingo, 13 de setembro de 2015

Sou contra!

Tatiana Evangelista, Marcus Vinicius Batista e Rafael de Paula

Marcus Vinicius Batista

Tive o prazer de mediar, na noite da última quinta-feira, um debate sobre a redução da Maioridade Penal. O encontro aconteceu no Pátio Iporanga, em Santos, após a exibição do filme “De Cabeça Erguida”, dirigido por Emmanuelle Bercot e protagonizado por Catherine Deneuve.

A conversa envolveu os advogados Tatiana Evangelista, contrária à redução da Maioridade Penal de 18 anos para 16 anos, e Rafael de Paula, favorável ao projeto que tramita no Congresso Nacional. Como mediador, minha responsabilidade era dar o maior espaço possível aos dois convidados, com perguntas abertas, o mais próximo possível de isenção. O debate, que se estendeu após a meia-noite, foi um momento cristalino de liberdade de expressão.

Por isso, escolho me manifestar nesta coluna, um espaço individual. Pelo título do texto, você já deduziu qual é meu posicionamento sobre o tema. Entendo que o projeto é mais uma manobra política dos parlamentares do que uma preocupação real e consistente com as causas e consequências que envolvem a violência no Brasil. 



Mais uma vez, os políticos pensam de olho nas urnas eletrônicas e com os ouvidos colados nas enquetes que pipocam na imprensa. A resposta em favor da redução solidifica um eco popular, a partir da postura da própria imprensa, incapaz – na maioria das vezes – de acompanhar histórias de maneira estrutural, de ir além dos registros pontuais do caso da semana. Falta contexto, sobra espetáculo.

Discutir a redução da Maioridade Penal é como saborear a cereja do bolo, tapando o nariz para a massa e o recheio que azedaram. É como ministrar aspirinas para um enfermo em estado terminal, cuja UTI – no quadro clínico atual – é o último endereço antes do velório.

Menores de idade não representam mais do que 10% dos crimes brasileiros. Dois terços do total são roubos e tráfico de drogas, boa parte assinou a “bronca” de criminosos adultos. Quando falamos em crimes hediondos, os menores são réus em 3% dos casos.

É claro que ambos os lados – e a existência de somente dois lados me preocupa – podem despejar pilhas de dados estatísticos para confirmar suas teses. O que me incomoda é que não testemunho parlamentares, imprensa, Poder Executivo e sociedade civil se movendo para debater, diagnosticar e propor saídas para o caos da segurança pública no país. Foco temporariamente perdido.

Preferimos eleger um dos atores da trama e culpá-lo pelos problemas da violência urbana. Apelamos para argumentos simplistas e individualistas como “e se fosse sua família?”, sem a capacidade de refletir socialmente, compreendendo que segurança pública não é uma questão isolada ou eleitoreira. Violência e segurança são temas diretamente conectados com má qualidade dos sistemas de saúde, de educação, fora a perpetuação da desigualdade social, dos preconceitos de classe e de cor. Assuntos que renderiam cada um deles uma coluna. 

Mallony, personagem principal, e a mãe
Observação final: assistam ao filme quando estiver no circuito comercial, a partir do dia 17. “De Cabeça Erguida” – guardando as proporções – é capaz de nos fazer refletir sobre o problema dos menores infratores no Brasil. O filme expõe variados ângulos, de assistentes sociais a psicólogos, de problemas familiares à gravidez adolescente. Ótimo cinema, que ajuda a pensar.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O biquíni e a política




Marcus Vinicius Batista

Uma rotatória transformou-se em vilã do trânsito, em Santos. E uma pichação tornou o VLT uma vítima do vandalismo. Duas situações, em tese, distintas, mas que nos indicam como o umbigo pode ser o ponto mais importante do corpo.

Na rotatória inaugurada no canal 7, dois acidentes em dois dias fizeram com que a nova sinalização fosse responsabilizada por muitos motoristas. Não tenho competência para avaliar a (im)perícia dos condutores envolvidos, mas é possível refletir sobre dois comportamentos comuns, seja no trânsito, seja no entendimento da política pública de transporte.

O primeiro deles é a ausência de educação para conviver com outros seres humanos motorizados. Testemunhamos viúvas de Ayrton Senna, artistas do xingamento, mágicos capazes de tagarelar ao celular e pilotar ao mesmo tempo. E todos, por coincidência, creem ter razão sempre, como fregueses das vias públicas. Um patinete no tapete da sala.

Os alunos mal educados desconhecem que a rotatória funciona em endereços onde há cortesia, responsabilidade social, noção dos riscos que se corre quando se senta dentro de um carro. Não há pontuação para quem sai primeiro da rotatória. Só há a preferencial para quem entra nela antes.

Muitos motoristas, politizados até a página 3 da cartilha do Detran, choram e batem o pé, com queixas de que faltam semáforos no local. É a criança mimada, que sempre transfere os deveres. No caso, o hábito de ser tutelado pelo Estado para se fazer o mínimo como cidadão. Vamos encher a cidade de semáforos para reduzir acidentes, conter a sanha selvagem dos (outros) ases ao volante. Aí o trânsito fica mais carregado, como no Canal 4, e os motoristas pedem a volta da liberdade de ir e vir (desde que eu primeiro).

Por trás da polêmica de final de semana, a ausência de um debate consistente sobre o cenário do trânsito municipal. Queixas sobre congestionamentos, soluções paliativas e localizadas, por vezes revertidas, e ninguém se atreve a conversar (ou planejar) sobre a qualidade do transporte público e a mentalidade de endeusar e sonhar com o consumo do transporte individual.

A pichação de vagões do VLT ganhou ares de terrorismo. Vândalos destruíram o patrimônio público e aumentaram os gastos com o veículo. Não carreguem nas tintas que decoram os vagões. Se a pichação é um ponto negativo, o VLT está sempre no mesmo ponto de parada. Parado!

Ao contrário de reportagens ufanistas que indicam uma cidade colorida com a obra, o cotidiano retrata a morte do planejamento urbano, a inexistência de um projeto definitivo, a condução paquidérmica dos trabalhos. O trecho da avenida Francisco Glicério, entre a avenida Conselheiro Nébias e o canal 3, já foi pista de atletismo para estudantes de Educação Física. Hoje, é estacionamento de carros, alguns talvez dos mesmos universitários.

O VLT nos foi vendido como um projeto-símbolo da metropolização fictícia, cujo cenário são nove cidades. Depois, foi reduzido a um ferrorama de origem espanhola entre Santos e São Vicente. O trem de brinquedo vai para frente e para trás, até porque as curvas seguem indefinidas pela política, enquanto o dinheiro alheio escorre pelos trilhos, como brincadeira de criança.

Nessas horas, me lembro do jornalista Fernando Gabeira e sua definição de biquíni. Para ele, biquíni é – sarcasticamente - a roupa que “mostra tudo, mas esconde o essencial.” Na política, acidentes e pichação vestem roupas novas para velhos problemas, os acessórios que camuflam o que interessa.