sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Casa dos horrores, depósito de loucos


Casa de Saúde Anchieta - foto em 2007


Gabriel Rosário e Victória Simonato*

“Dentro de poucos dias será inaugurado em Santos o maior e mais moderno hospital particular da América do Sul. Trata-se da Casa de Saúde Anchieta, presentemente funcionando à Av. Ana Costa, 168, e que será instalada em edifício próprio, especialmente construído à Rua São Paulo, 55. Terá o mais completo serviço médico do Brasil, no gênero. Modernamente equipada para oferecer assistência e tratamento de doenças do sistema nervoso, sob os cuidados de seis neuro-psiquiatras de São Paulo e dois clínicos de Santos - Serviço especial para pessoas idosas e para casos de alcoolismo. Enfermagem especializada sob a direção de enfermeira diplomada e ambulatório para doentes externos.

A própria fachada do edifício da Casa de Saúde Anchieta é o exemplo típico do arrojo e empreendimento desses psiquiatras que, antes de qualquer objetivo monetário, procuraram concretizar um velho sonho: dotar Santos de uma casa especialmente construída para oferecer o máximo de conforto aos enfermos da mente.”


- Trecho da matéria publicada em 1º de Maio de 1953, no Jornal A Tribuna

Fundada em 1953, a antiga Casa de Saúde Anchieta era um hospital modernamente equipado, como vendia a propaganda, mas proporcionou durante anos um circo de horrores, onde pacientes, confinados e amontoados eram torturados com eletrochoques e espancados pela equipe de enfermagem especializada.

Em 3 de maio de 1989, foi decretado o fim do hospital, marcando o início da luta antimanicomial no país. Com o fechamento, decretado pela Prefeitura, profissionais da saúde, com aval da justiça, ocuparam o local, libertaram das correntes aqueles que ali estavam e puseram fim à angústia e ao sofrimento. Acontecia, naquele momento, a interdição do lugar.

“Antigamente todos os pacientes com problemas da mente, da cabeça eram tratados como loucos e perigosos, então, tinha essa medida de segurança. Onde se pegava todo mundo que tinha problema na cabeça, era louco, retardado mental e colocava no mesmo lugar para segurança dele e de outras pessoas. Hoje se acredita que isso não é mais aceito e que o paciente com problema da cabeça pode fazer o tratamento em casa e ter benefícios. Essa é a diferença de hoje pra antigamente”. As afirmações são do psiquiatra Mario Ileki Junior, que trabalha no Pólo de Atenção Intensiva em Saúde Mental da Baixada Santista (PAI) há um ano.

Inaugurado há três anos, o PAI Baixada Santista tem o objetivo de tratar o paciente em surto sem os tratamentos que eram usados antigamente. Os novos métodos usados pela unidade envolvem terapeutas ocupacionais, psiquiatras, assistentes sociais e professores de educação física.

“O que eles faziam era: ‘surtou? Então tira da sociedade’, era mais ou menos o que acontecia. Pegava e colocava dentro de um hospital como esse, trancava. Você tinha um excesso de paciente com um mínimo de médicos, um mínimo de profissionais, então você não tinha como tratar”, afirma o assistente social Alexandre Cruz, que trabalha no PAI há mais de três anos, como coordenador de atendimento e apoio.

Os eletrochoques

O símbolo deste período, anterior aos anos 90, era o eletrochoque. “O paciente fez uma “malcriação”, então vai e dá um choque.”

Cruz explica que hoje a eletroconvulsoterapia pode ser um instrumento positivo. “Ela é utilizada em hospitais tops, como Albert Einstein, somente para determinados casos, então, essa é a grande diferença. Em Santos, esse tipo de tratamento é proibido”.

A terapia de eletrochoque é aplicada desde a década de 30. As doenças psiquiátricas provocam alterações de atividade cerebral. O psiquiatra Mario Ileki Junior explica que “hoje em dia essas atividades [eletrochoques] ainda existem com intensidade diminuída, não são esses que você vê pelos filmes, uma voltagem muito grande, e sim micro voltagem, onde o paciente é sedado, com uma descarga elétrica na região encefálica, onde há um alteração na ativação elétrica do cérebro”.


O fechamento simbolizou a luta antimanicomial

O tratamento nos dias de hoje

Cruz exemplifica o trabalho do PAI. “Para se ter uma ideia do trabalho de primeiro atendimento com a família, tivemos um paciente que era um andarilho em São Vicente. Ele ficava pelas ruas da cidade, abrindo sacos de lixo e comendo. A família, composta por três irmãos, não cuidava dele, que morava sozinho. Os irmãos estavam unidos para cuidar da mãe, que estava com câncer, e faleceu em dezembro de 2010 ou de 2011. Então dois deles se juntaram e começaram a cuidar desse quarto irmão [o andarilho]. A princípio, levaram no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de São Vicente, mas não deu jeito, porque lá é porta aberta, e aí pediram encaminhamento pra cá. No primeiro atendimento, ele não falava nada com nada, então a família veio aqui para conversar com o médico. No atendimento, é feita uma série de questões, pegando várias informações do paciente, que, pra nós, é muito relevante”.

O andarilho tinha sido maestro e funcionário público em Praia Grande. Estas informações, fruto da anamnese (a entrevista inicial), serviram para que os terapeutas se aproximassem do paciente. “As terapeutas ocupacionais trabalham muito com pintura e direcionaram pra ele notas musicais. Começou um interesse por parte dele. Antes ele ficava no quarto, e com o decorrer do tempo começou a sair, a participar das atividades.”

O paciente apresentou também mudanças na relação com os irmãos. “Na hora da internação, esses dois irmãos comentaram que tinha um terceiro que o paciente odiava. Então, um dia estou na minha sala e esse outro irmão veio visitar. Sentei com ele, conversei pra entender como é a situação, que com ele o paciente era meio agressivo. Chamei um técnico de enfermagem, contei a situação e acompanhamos a visita. Foram chamar o paciente, e quando ele viu quem era essa visita, ele voltou pro quarto. Pedi pra ele aparecer mais vezes, e, num outro dia ele voltou, e foi diretamente no quarto, onde o paciente estava deitado. Eles conversaram um pouco, mas foi rápido e com o tempo esse vínculo voltou.”

Depois da alta médica, o paciente retornou para uma atividade do Dia Mundial da Saúde Mental, quando tocou piano. “Ele tocou para os pacientes, fizemos um coffee break e foi bem legal”, conta o assistente social.

“Temos que tratar a família”

O contato com a família é essencial para o que o paciente volte a si e saia do surto. As mesmas atividades que são feitas no hospital, como pintura e colagem, podem ser feitas em casa. Muitas famílias não sabem o que fazer quando o paciente recebe a alta.

Além de pacientes com transtornos mentais, o PAI também recebe uma demanda de usuários de drogas. Segundo o assistente social, os dependentes químicos não tem a visita familiar tão frequente em relação àquele paciente com algum tipo transtorno. “O ideal é a família estar participando, não adianta você tratar só do paciente, você tem que cuidar da família, explicando como continuar o tratamento, como levar, onde levar. Inclusive, o paciente sai daqui com cinco dias de medicamento, para dar tempo de procurar o serviço”.

Depois do fechamento da Casa de Saúde Anchieta, alguns pacientes se juntaram ao Grupo Tam Tam, projeto criado por Renato di Renzo, de teatro solidário e se dedicaram à criação da Rádio Tam Tam, onde os loucutores eram os próprios “doentes da cabeça”. O grupo Tam Tam completa 25 anos em 2014.

No entanto, o fantasma da Casa de Saúde Anchieta não se dissipou por completo. Não se trata somente das lembranças, mas de outro problema, também de ordem social. O local onde ficava o Anchieta se transformou em um cortiço, onde residem 15 famílias.


* Este é o décimo-segundo e último texto da série "Os Indesejados", projeto de estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos). 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Da pílula azul à estética: o aumento da Aids em idosos




Thaís Garcia e Thaís Ursini*


“Era como se fosse assinar uma sentença de morte. Todos tinham consciência que não sobreviveriam por muito tempo. Sempre acreditei que eu venceria, nunca imaginei que iria falecer naquela época. Hoje, para mim, é super comum, encaro como uma informação médica fundamental. Se teve um resultado positivo para mim, quero passar para os outros. Hoje é um assunto que não é mais tabu. Eu era muito fechado, tinha problemas psicológicos de aceitação, mas por causa da doença me tornei mais aberto”. Essas são palavras de Rubens Barbosa Reche, portador do vírus HIV, de 61 anos.

Nascido em 1952, solícito, bem humorado, otimista, contador aposentado, solteiro, Rubens é soropositivo há 22 anos. Em 1992, a doença era um estigma muito grande criado pelas pessoas que, por ignorância, evitavam encostar e até chegar perto de pessoas infectadas.

Naquela época, ele estava se relacionando com um amigo e ambos não usaram preservativo. Por ser uma doença recente no Brasil, Rubens não acreditava que poderia acontecer com ele. Mas começou a suspeitar quando apareceu herpes zóster em seu peito e suas costas, um dos sintomas mais comuns da AIDS.

Quando descobriu que foi infectado pelo vírus, sentiu medo e ao mesmo tempo teve um choque, pois já tinha perdido amigos por causa da doença. Apesar disso, sempre teve fé que iria vencer. Para ele, a sobrevivência se deu devido à combinação do tratamento médico com o bom estado psicológico.

Após os primeiros casos de morte, Rubens passou por uma mudança comportamental. Ele decidiu pela abstinência sexual ao perceber que a doença era séria. Depois, aderiu às formas de proteção.

Rubens disse que sempre tratou da AIDS com métodos alternativos como o chá que tomava de “cipó milagroso”, junto ao coquetel de medicamentos retro virais.

"Cultura anti-camisinha"


O número de idosos contaminados pelo vírus cresceu entre 2000 e 2011. Segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde de 2012, entre homens com 60 anos ou mais, a taxa de incidência (por 100 mil habitantes) de casos de AIDS, em relação a sexo e faixa etária por ano de diagnóstico, subiu de 6,8 para 10,4. 

Para o professor de anatomia e fisioterapeuta Elton de Freitas, o problema do vírus na população mais idosa ocorreu a partir da produção de medicamentos como o Viagra, que fez com que procurassem profissionais do sexo para se satisfazerem. “A cultura deles é de não usar preservativos. As doenças que existiam na época em que eram jovens eram 100% curáveis”.

Mestre em Saúde Coletiva, Elton realizou uma pesquisa, em 2011, sobre Síndrome Lipodistrófica em pacientes com HIV/AIDS com ou sem utilização de terapia antirretroviral. Ele analisou casos na cidade de São Vicente, no litoral de São Paulo.

Aliado aos novos medicamentos para desempenho sexual, outro fator é que os idosos acreditam que não vão se infectar depois de tanto tempo. “As pessoas acham que no fundo, no fundo, estão imunes na velhice”, afirmou Rubens Reche.

Santos é líder de casos

Entre as cidades da Baixada Santista, Santos é a primeira cidade com mais pessoas soropositivas, com maior incidência nos bairros da Aparecida, Boqueirão e Vila Nova. Esses três bairros apresentam mais pessoas infectadas devido ao uso de drogas. Em segundo lugar na região, está São Vicente.

Elton de Freitas afirma que a maioria dos pacientes de preocupa com a estética, com medo de serem percebidos. Essa preocupação social é um reflexo de termos uma sociedade ainda ignorante e que tem medo do contato com as pessoas portadoras do vírus. Geralmente, as pessoas se afastam, evitando encostar ou abraçar quem tem AIDS. No entanto, já foi comprovado que não há risco de contaminação apenas pelo contato.

* Este é o décimo-primeiro texto da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos)



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As paçocas e as pedras




Bruno Biazotto e Willians Pereira*


Entre vários acessos aos morros de Santos e às lojas tradicionais de móveis, na avenida Senador Feijó, uma pequena rua, no centro da Cidade, chama a atenção pelo vai e vem de pessoas. A maioria delas exprime cansaço, se veste com simplicidade e exala odores distintos daqueles que povoam lojas de perfumaria. O sobe e desce do morro é a busca pelo prazer momentâneo.

É lá que Alessa Gonçalves Mota, de 22 anos, costuma fazer sua jornada diária. Ela sai de um quarto alugado em cortiço e caminha pelo contraste. Entre o cortiço e o pé do morro, um corredor de vitrines, que expõe móveis e mobílias luxuosas.

Antes de subir o morro, Alessa para em uma banca de jornal, na avenida Senador Feijó com a praça Largo 7 de setembro. Lá, troca rápida entre o dinheiro e o tablete. R$ 1 na mão. Passos largos em direção contrária à banca e para o morro seguirá Alessa, que acaba de comprar as duas paçocas para mantê-la em pé ao longo do dia.

O doce de amendoim intercala-se com os diversos cigarros fumados diariamente. E este não é o pior dos vícios. A droga, mais especificamente, o crack, tornou-se a substância que altera a velocidade do tempo, que a faz aparentar mais do que a idade atual.

Usuária há mais de seis anos, a jovem começou nas drogas por causa de um namorado da adolescência. A partir dali, nunca mais parou. A vida dela se resume em conseguir dinheiro para manter o vício. Para isso, trabalhou em diversas lojas como vendedora.

Entretanto, nunca conseguiu se firmar em nenhuma delas por causa do crack. Perdeu os empregos por excesso de faltas ou atrasos ou por não aparentar estar bem fisicamente.

Entre uma conversa e outra no ponto de ônibus da rua Brás Cubas com a praça 7 de Setembro, Alessa conta que essa aparência pouco agradável gera tristeza. Ela diz que as pessoas a olham de modo diferente. “Procuro me manter limpa e arrumada, mas não tem jeito. A droga faz a gente perder a noção do ridículo até mesmo de chegar ao cúmulo de um morador falar que você está fedendo”.

Quatro filhas em cinco anos

Ela toma banho e troca de roupa em um quarto alugado com seus avós, num cortiço na Rua Chile, próximo ao Mercado Municipal. Além dos seus avós, vivem lá as quatro filhas que Alessa teve nos últimos cinco anos. E o tempo com elas é curto, assim como sua felicidade, pois poucas vezes dorme à noite com as crianças em virtude de fazer programas para conseguir dinheiro. Antes, cometeu assaltos. Chegou a ser presa e, por conta disso, preferiu parar.

Alessa deixou de estudar no oitavo ano do Ensino Fundamental. Ela não pretende mais estudar, já que afirma não conseguir ficar mais de 15 minutos na sala de aula.

Ela jura que pretende largar o crack. E sonha. Arrumar um bom emprego, sair da casa dos avós e comprar um apartamento para morar com suas filhas são alguns dos sonhos dela. “Se eu falasse que não queria abandonar as drogas estaria mentindo. Todos querem abandonar, mas se torna muito difícil sem o apoio de sua família e sua própria força de vontade”.

As duas paçocas compradas em uma banca próxima ao trajeto para o crack ganham um gosto amargo. Há mais de seis anos percorrendo este mesmo rumo, a jovem sabe que é difícil tomar um caminho para bem longe do circuito de sobe e desce das pedras.

* Este é o décimo texto da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos).

Crack e o vício eleitoral




Em ano eleitoral, tudo se pode. Tudo se aceita. Tudo se fala. O destino dos viciados em crack na cidade de São Paulo virou campanha eleitoral camuflada. Parece um jogo de batalha naval, com a diferença que as peças representam vidas humanas, inclusive as que afundam.

Analisar a questão da perspectiva Fla-Flu, ou PT-PSDB, é mais do que ressuscitar velhos maniqueísmos político-partidários. De saída, afronta a inteligência, simplifica um problema demasiado complexo e desvia os holofotes de um quadro social bem mais profundo do que tirar um cachimbo das mãos de um viciado ou simplesmente atirá-lo numa jaula.

Tanto a Prefeitura de São Paulo como o Governo do Estado deveriam dialogar para combater um dos mais graves cenários urbanos do país. Uma epidemia que dispensa classes sociais, endereços e, acima de tudo, preferências de voto. Crack não é droga apenas de pobre, muito menos de vagabundo! E, cá entre nós, a experiência cotidiana nos mostra que os dois partidos são quase gêmeos, de mesmo idioma.

Ambos transformaram a tragédia de milhares de vidas em política rasteira, baixa, tão suja como as roupas de um viciado de moradia ao ar livre, na cracolândia de São Paulo. A polícia de Alckmin, como dizem os adversários dele, manda bater e prender, misturando sem critério usuários e traficantes.

A Corregedoria da Polícia Civil investiga denúncias de que dois policiais comandam o tráfico na região. Um deles seria do Denarc, justamente o departamento responsável por coibir o comércio de drogas.

A partir da ação desastrosa na cracolândia, nasce o segundo passo da baboseira político-eleitoral. O jogo de empurra entre as chamadas autoridades, aqueles sujeitos que deveriam colocar a mão na massa para reduzir o cenário de ruínas de guerra. A briguinha retira o foco sobre a ação da Prefeitura, que visa assegurar empregabilidade aos viciados, para se debater se foram balas de borracha ou bombas de efeito moral, como se ambas não fossem violência.

A ação da polícia na cracolândia também acendeu os gritos de que o Governo do Estado pretendia jogar água fria no trabalho da Prefeitura. Tanto pode ser outro escorregão da Polícia, por falta de diálogo com outras áreas, como uma tática política de fato. Nessa hora, prevalecem, infelizmente, a especulação e a aparência retórica sobre a apuração detalhada dos fatos.

Se considerarmos que se trata de um movimento no xadrez eleitoral, ocupar a cracolândia com sirenes e viaturas seria estupidez ou falta de memória. Até porque o próprio Governo do Estado é pai do projeto Recomeçar, que visa encaminhar usuários de crack para tratamento. O paciente recebe R$ 1350 mensais, repassados às clínicas credenciadas. O projeto foi apelidado pela imprensa, e espalhado como fofoca pelos adversários, de Bolsa-Crack.

O crack não representa somente um problema de segurança pública. Antes de tudo, merece a atenção como doença, como caso de saúde. Independentemente do fundo religioso, as clínicas têm feito boa parte do trabalho que os poderes institucionalizados não conseguem fazer.

Cidades como Nova Iorque reduziram o consumo e venda de crack com tolerância zero. Há usuários condenados a 25 anos de cadeia. Mas não apagou o tráfico de drogas, sempre conectado aos altos escalões. Aliás, quem ouve os discursos de políticos americanos e acompanha as mudanças de legislação percebe que os Estados Unidos já reconheceram que a política de repressão das últimas três décadas falhou por completo.

O crack deve ser tratado como um problema político. Como política pública, e não política eleitoral. Enquanto os engravatados virarem as costas para uma epidemia além da cracolândia, sobreviverá a visão de limpeza social, que mistura ignorância, preconceito e intolerância. Nada como um olhar retrógrado conforme a urna eletrônica e os votos se desenham no horizonte.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Do Congo a Santos: a história de um refugiado



Letícia Souza e Rhayssa Nascimento*

"Vou lutar como sempre" é a frase proferida por Pitchou Luhata Luambo. Refugiado há dois anos no Brasil, ele saiu de seu país, República Democrática do Congo, pela insegurança que a guerra tinha depositado na vida de todos por lá. A guerra civil, iniciada em 1994 na vizinha Ruanda, ultrapassou a fronteira e não tem data pra acabar. Mas a insegurança, fato primordial para pedir refúgio em outro país, já não assusta tanto e ainda há o desejo de voltar para casa.

Pitchou não teve boas notícias nos últimos meses. Apesar da dificuldade em receber informações dos familiares, soube da morte do irmão. E os rebeldes não se restringiram a essa ação, sequestraram outro irmão, de apenas 16 anos. O sequestro durou 2 meses e só teve fim com a fuga dele.

Essa história obrigou Pitchou a trazer irmão, filha e mãe para perto dele. Residindo em São Paulo desde a chegada ao Brasil, a cidade recebeu mais três estrangeiros, mas não os acolheu. Assim diz ele, com uma vontade de sair de um país ao qual pensou poder recomeçar a vida.

A viagem, moradia e outros custos foram bancados por ele, único que possui emprego. O Cáritas, ligado à Igreja Católica, é a instituição que auxilia no tratamento do irmão sequestrado. Uma vez por semana,o rapaz menino faz terapia.

Na República Democrática do Congo, o cotidiano era outro. Pitchou, formado em Direito, lecionava em uma universidade. O irmão, assassinado, era médico. Um padrão de vida superior ao encontrado no país de refúgio.

Desejo de voltar

A mudança drástica de rotina despertou na mãe dele a vontade de retornar ao Congo. Retornar ao padrão de vida anterior, e esquecer o quão foi difícil viver no Brasil. E o conflito não a assusta mais que a falta de assistência e oportunidades encontradas em dois meses. Ela argumenta que, no Congo, apesar do perigo, caso tenha sorte pode se salvar, mas aqui não há opção, a vida não vai mudar.

Entidades internacionais sofrem com a corrupção local

O Brasil é um dos países que mais recebe refugiados na América do Sul. Os últimos dados da Agência da ONU para refugiados (ACNUR) indicam 4600 refugiados de 70 países.

Pitchou não esconde a vontade de ir para outro país. O que vem em mente é a Argentina, lugar onde parou antes de chegar a São Paulo. E sonha em se mudar para o país vizinho e aprender espanhol. Depois, voltaria para o Congo.

Universidade em Santos


Apesar de uma lei sancionada em 1997, Lei Federal n. 9474, que criou um órgão para analisar e julgar os pedido de refúgio, o Comitê Nacional da Justiça (CONARE), a inclusão social é difícil. A língua diferente, o não reconhecimento de suas antigas profissões e a denominação de refugiado são impasses para conseguir emprego. Ponto essencial a quem pretende construir uma nova vida.

Apesar de ter sua vida no Brasil constituída em São Paulo, Pitchou encontrou em Santos uma oportunidade, o retorno à Universidade. Conseguiu uma bolsa destinada à refugiados na Universidade Católica de Santos e cusrsava Ciências da Computação. Mas o reinicio foi interrompido após ao ocorrido com sua família.
Santos foi um segundo lugar a Pitchou. Para muitos é apenas o ponto de entrada, principalmente por possuir um Porto. Mas dificilmente acolhe os refugiados.

De acordo com o CONARE, desde 2008, 158 estrangeiros chegaram pelo Porto de Santos na condição de refugiados, porém só três solicitaram refúgio na própria cidade. A maioria preferiu se deslocar para outras cidades.

A situação é confirmada pelo delegado do Núcleo de Imigração da Polícia Federal, Gesival Gomes de Souza, que complementa que desde fevereiro do ano passado não houve casos de refugiados no Porto.
Guerra civil deixou mais de 3,5 milhões de mortos
Foto: ONU

A Guerra

A República Democrática do Congo, ex-colônia belga, está em guerra civil por divergências étnicas, interesses comerciais e políticos. O cerne do conflito foi o genocídio em Ruanda, no conflito entre as etnias hutu e tutsi. Em 1994, ano desse genocídio, estima-se que os hutus mataram 800 mil tutsi e hutus moderados, cerca de 10% da população.

Após esse conflito em Ruanda, houve grande fluxo de refugiados que entraram no Congo, o que aumentou a instabilidade política e levou à queda do ditador Mobuto Sese Seko em 1997, depois de 32 anos no poder. A rebelião foi liderada por Laurent Kabila, com apoio dos regimes de Ruanda e Uganda. Ele se tornou presidente.

A República Democrática do Congo foi palco da chamada "Primeira Guerra Mundial na África", no período de 1998 a 2003. Um conflito entre tutsi, de origem ruandesa, contra o governo de Kabila. Nessa rebelião, cerca de 3,5 milhões de pessoas morreram de fome, doenças ou em razão de violência.

Mas o mandato de Kabila durou até 2001, quando foi assassinado. No lugar dele, assumiu o filho Joseph Kabila que, em outubro de 2002, assinou um acordo de paz com os rebeldes. Porém os conflitos entre as duas etnias, tutsi e hutus, permaneceram. Por isso, o país obteve ajuda da ONU, tanto aos campos de refugiados no país, como a formação da maior força de paz, com 17 mil soldados.

Em consequência da guerra civil, a economia nacional sofre com a redução de investimentos estrangeiros, crescimento da inflação e falta de infraestrutura. Além da economia, a população vive com problemas socioeconômicos, como uma dos piores índices de mortalidade infantil do mundo: 15 óbitos a cada mil nascidos vivos.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,239, a segunda pior média mundial. O analfabetismo atinge 32% dos habitantes; cerca 76% da população é subnutrida; a maior parte das pessoas vivem com menos de 1 dólar por dia, portanto, abaixo da linha da pobreza.

Obs.: Este é o nono texto da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos). 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sofrimento e superação: os ingredientes contra o alcoolismo




Bruno Giufrida e Henrique Seiscenti*

Santos, principal cidade do litoral de SP, registrou dois acidentes graves no último final de semana. Ambos aconteceram na madrugada de domingo e envolveram motoristas dirigindo embriagados. Por sorte, eles não feriram ninguém. Um bateu o carro em um muro e o outro, numa árvore.

Além da direção perigosa, os dois motoristas tinham comportamentos semelhantes quando saíram de seus carros destruídos. A voz era pastosa. O bafo, desagradável. As reações, agressivas. E a negação de que estavam bêbados.

O desfecho também foi idêntico. Ambos se recusaram a fazer o teste do bafômetro, foram autuados em flagrante, pagaram fiança de R$ 1 mil e R$ 2 mil, respectivamente, e responderão ao Poder Judiciário em liberdade.

A sociedade brasileira costuma colocar em pauta o alcoolismo quando acontecem tragédias; em outras palavras, mortes. As pesquisas reforçam que os brasileiros não conseguem lidar bem com o álcool. O último Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) é de 2012.



O estudo, feito em parceria entre o Instituto Nacional de Políticas Públicas de Álcool e outras Drogas (INPAD) e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ouviu 4607 pessoas. 64% dos homens e 39% das mulheres consomem álcool regularmente. Ou seja: pelo menos uma vez por semana. E dois entre cada 10 entrevistados apresentaram características de abuso ou descontrole em relação às bebidas alcoólicas.

Criado em 1935, em Ohio, nos Estados Unidos, os Alcoólicos Anônimos são a principal instituição para o combate à doença. No Brasil, existem 4900 grupos. Na Baixada Santista, há 38 cadastrados nas nove cidades. Santos possui a maior concentração, com 11 grupos.

Todos os frequentadores apresentam biografias marcadas por tristeza, conflitos e perdas. Mas muitos deles alcançam a superação. Uma delas está no Grupo Doze Passos, em Santos. Um caso que não é único e mostra a atual realidade de muitos adultos.




Perda de amigos, problemas dentro de casa

Aos 53 anos, João (nome fictício) é pai de três filhos – duas meninas e um menino – e encara com bravura o alcoolismo, frequentando, de segunda a domingo, as reuniões dos Alcoólicos Anônimos.

“Hoje, posso dizer que me sinto vitorioso”, conta a vítima de uma doença que assola, direta e indiretamente, milhões de pessoas no país. E a situação poderia ser pior. Antes de procurar apoio do AA, ele passou por sérias dificuldades familiares, que não aceitava os problemas quase diários, como brigas com a esposa na frente dos filhos.

“Cheguei a dormir várias noites fora de casa. Eu bebia, achava que ia solucionar todos meus problemas, mas acabava piorando tudo depois. É algo sem fim. Eu precisava tomar essa atitude para continuar vivendo. Eu renasci”, explica, emocionado.

E a ausência repentina acabou se agravando. Além de ficar fora de casa por alguns dias, proporcionava cenas de violência dentro do ambiente familiar, afastando filhos, vizinhos, amigos e parentes. “Cheguei a perder a cabeça e jogar coisas na parede. Eu estava sem rumo”, lembra.

Mas, hoje em dia, devidamente amparado pelos Alcoólicos Anônimos, ele mantém vivo o sonho de poder viver normalmente, sem restrições. “Falta pouco pra eu voltar a ser uma pessoa confiante, normal. Quero estar livre de tudo isso rápido”.

As reuniões do AA funcionam como um grupo de entreajuda, formando uma roda de bate papo, em que os integrantes contam histórias que viveram por conta da bebida. Uns falam e outros preferem só ouvir, as histórias muitas vezes são comuns na rotina deles. Problemas familiares, brigas e perda de emprego estão entre as mais citadas.

Apesar das histórias ruins, existem também as boas, os membros contam suas vitórias na luta contra o vício, há quanto tempo não bebem e principalmente o que melhorou após ingressar no AA.

Obs.: Esta é a oitava reportagem da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Entre a rua e a enchente, os rostos dos cortiços

Gabriela Paniago e Isadora Moraes*

A mãe é sergipana e o pai é português. Ela nasceu no Morro da Nova Cintra, em Santos, e hoje cria dois filhos junto com o marido, que veio de São Paulo. Adriana Jesus Pereira tem 30 anos, foi mãe pela primeira vez aos 17. A filha de 13 anos mora com os avós.

O marido Leandro Gonçalves da Silva é pai desde os 14 anos, hoje trabalha na reciclagem e também é pedreiro, além de consertar calhas e telhados. Aparentemente, a carroça dá mais lucro, sendo que Leandro consegue ganhar até R$ 200 em dois dias, em situações excepcionais.

Adriana parou de usar drogas há 3 anos. Consumia maconha e crack. O marido ficou preso por três meses. Neste período, a esposa teve que pedir dinheiro na rua.

No tempo que estão juntos, mudaram de casa duas vezes. Hoje, moram em um cortiço no Centro da cidade. O Conselho Tutelar já tirou as duas crianças deles, quando moravam em um local com muitos usuários de drogas. Hoje, eles são orientados por assistentes sociais e pagam R$ 280 por mês no quarto. Recebem R$ 164 do Bolsa Família.

Enchente e migrações

A rua São Francisco está loteada por cortiços. Silvia Maria de Oliveira mora ali há 3 meses. Morava em Cubatão, no bairro Água Fria, e por causa da enchente teve que se mudar. Ela mora com o filho que trabalha como entregador de água, a nora e três netos, entre três e nove anos. Todos os adultos dividem o aluguel, exceto Daiana, a nora, pois o quarto pertence à irmã dela.


Mofo e umidade são sinônimos de cortiços
Rosevaldo dos Santos também mora há três meses nesse conjunto e há dez anos veio de Maceió. Trabalha como eletricista em uma firma e paga R$ 300 por mês no aluguel. Ele diz que tem uma boa convivência com todo mundo e que conhece muita gente dali. “Tudo tem o tempo certo”, disse Rosevaldo, que – antes do cortiço – morou sozinho. Ele já foi casado por cinco anos e tem uma filha de 12 anos de idade.



Maria Tereza Vicente veio de Recife há 34 anos. Ela conta que já chegou a morar na rua. Quando perguntada se gostaria de morar nas novas habitações (leia reportagem sobre o projeto de conjunto habitacional), ela diz que “já não tenho mais paciência pra reunião. Já corri muito atrás”. O sonho é sair um dia do cortiço e buscar um lugar melhor pra morar.


Obs.: Esta é a sétima reportagem da série "Os Indesejados", projeto conduzido por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos).