sexta-feira, 26 de abril de 2013

Vida de índio



Bertioga recebeu, no último final de semana, 160 índios de quatro etnias, sendo três do Mato Grosso e uma do Maranhão, além da anfitriã Guarani, que habita quatro cidades da Baixada Santista. Os anfitriões são os guaranis que vivem na Aldeia Rio Silveira, na divisa de Bertioga com São Sebastião.

O Festival Nacional da Cultura Indígena é tradicional no município, obviamente na semana em que se comemora o Dia do Índio. O tamanho da festa depende da vontade política das autoridades locais e do desejo de dar visibilidade às minorias. Atualmente, a festa anda bem magrinha e tímida, coerente com as últimas pancadas que as nações indígenas têm tomado em diversos lugares do país.

O Brasil possui cerca de um milhão de índios. São os sobreviventes de um genocídio que vem ocorrendo desde o século 16, por razões variáveis, nenhuma delas nobres, mas todas com um fundo econômico. Índios são vistos como entraves à ganância, à ocupação, ao desenvolvimento e ao progresso. A palavra varia conforme o período histórico e aos olhos e interesses de quem analisa a questão.

A construção da Usina de Belo Monte, na região Norte, mais a ocupação de um antigo casarão no Rio de Janeiro servem como termômetros para indicar como as nações indígenas são tratadas num território supostamente democrático.

Índios, ainda que possuam direitos jurídicos, são classificados como invasores, como sujeitos dependentes do Estado e inúteis para uma economia selvagem e travestida pela retórica da produtividade. Parte da imprensa, mesmo sem assumir de forma explícita, os coloca como vilões de um fundo dramático financeiro, perturbadores da ordem, ignorando que todos os caminhos de diálogo e de protesto foram esgotados.

Via de regra, as nações indígenas são vistas como primitivas, como sinal de atraso diante do poder civilizatório do mundo urbano, escravo da tecnologia e consumista. É claro que a turma do bem – agarrada nas bíblias do politicamente correto – jamais utiliza o termo primitivo em público. É papel dela fingir que defende as causas indígenas como sinal de compaixão e apreço em prol dos desprotegidos.

A contrapartida seria o silêncio indígena e a aceitação em viver em jaulas a céu aberto, sob os olhos lânguidos do dominador solidário. Índios viveriam de favor, sob a tutela do homem que os colocou sob um cabresto invisível e que também determina quais as atividades econômicas serão adotadas pelos índios. Quem escapa das reservas entra na lista da ingratidão, acusado de renegar sua cultura e de cair na tentação de usufruir das benesses do homem da cidade. Condenado por rejeitar o rótulo de infantilizado.

Os índios, neste sentido, não teriam direito de escolha. Seria um intercâmbio cultural de via única, vamos dizer assim. Os seres humanos – e autoproclamados evoluídos – podem explorar e se apropriar da cultura material e imaterial indígenas. Quando os índios o fazem, sofrem o estigma de quem renegou o próprio passado e a própria história. Ou são culpados por doenças ou comportamentos desviantes levados pelo próprio homem que os recrimina.

A própria história brasileira, por si mesma, distorce o papel indígena na construção do projeto Brasil. De cara, o discurso implícito de que o Brasil – e não falo dos conceitos de nação ou de colônia – começou com a chegada do branco português.

A partir daí, um rosário de deturpações históricas, como a ideia de que os índios não prestavam para a escravidão e, por conta disso, foram substituídos pelos negros. Por conveniência, desconsideraram-se as dificuldades dos portugueses em enfrentar as etnias indígenas, além dos múltiplos interesses econômicos e políticos para a consolidação do tráfico negreiro em todo o mundo.

Sempre desconfiei de datas comemorativas. Normalmente, reforçam a hipocrisia de se preocupar com as minorias. Repetem-se os sorrisos de falso envolvimento, os discursos de mudança e a promessa de políticas públicas.

Mas compreendo que tais datas podem também servir para relembrar o quanto somos negligentes com quem nos forneceu uma das bases de uma cultura tão profunda quanto diversificada. Da mandioca que acabamos de almoçar aos nomes de várias cidades da região. Do hábito de tomar banho diariamente à essência do conceito de preservação da natureza.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

A pérola e os marajás


Guarujá, no auge como estância balneária, era conhecido como a Pérola do Atlântico. Se dermos outro sentido à palavra, a política local mantém viva a produção de jóias, muitas delas em caráter quase clandestino. 

A última pérola foi a Gratificação por Assiduidade e Pontualidade (GAP), resolução derrubada esta semana pelo presidente da Câmara, Marcelo Squassoni. O mimo praticamente dobrou os salários dos funcionários do Poder Legislativo durante quatro meses. Motoristas ganhavam R$ 12 mil por mês. Telefonistas com salários de R$ 18 mil.

A Câmara do Guarujá tem 39 servidores concursados. Metade deles recebeu, entre janeiro e abril, mais de R$ 20 mil. Alguns chegavam a R$ 35 mil no contracheque. A outra metade dos funcionários tinha vencimentos entre R$ 10 mil e R$ 19 mil. Para efeito de comparação, a prefeita Maria Antonieta de Brito recebe R$ 17,1 mil mensais.

A gratificação que pariu uma nova espécie de marajás premiava os servidores justamente por cumprirem obrigações profissionais. Em outras palavras, os funcionários ganhavam o equivalente a duas horas extras por dia apenas por comparecem ao trabalho e serem pontuais.

A gratificação foi aprovada em 7 de novembro do ano passado, na gestão do vereador José Carlos Rodriguez, hoje secretário de Turismo da cidade. A jogada política era pagar as “horas extras” em cima do salário líquido. Desta forma, o servidor não ganharia – em tese – mais do que a prefeita, teto estabelecido por lei.

A vida dos marajás ficou exposta também por conta da comparação com os salários dos funcionários comissionados, que recebem - em média – R$ 3,5 mil. A diferença entre o bolso de motoristas e telefonistas e o dos assessores dos vereadores causou mal-estar e fofocas nos corredores do Legislativo.

O presidente atual, Marcelo Squassoni, afirmou que só soube dos marajás em março, depois de dois meses no comando do Poder Legislativo. Ele afirmou à imprensa que resolveu cortar a gratificação para evitar um desgaste político, mas que não enxerga ilegalidade por parte dos servidores.

À repórter Simone Queirós, de A Tribuna, Squassoni disse: “conversei com os servidores antes, expliquei o motivo da minha atitude. Parece-me que todos entenderam”. Por que justificar? Ninguém desconfiou da imoralidade?

Para Carlos Ratton, do Diário do Litoral, Squassoni falou “em preservar dinheiro público.” Por que não conversou, então, com seus eleitores e demais moradores, responsáveis por bancar a festa do “prêmio por cumprir obrigações”?

É estranho digerir - sem precisar de antiácido - a justificativa de que o líder da casa não sabia que seus funcionários de carreira recebiam uma fortuna desde janeiro. Squassoni comandou a Câmara por três meses sem ter ouvido nada a respeito? Demorou tanto assim para notar a diferença nas finanças? Seria outra manifestação da lenda na qual presidente nunca sabe de nada?

Não é a primeira vez que a Câmara do Guarujá tenta dar de comer a seus marajás. Em 2010, o presidente da Casa, o mesmo José Carlos Rodriguez, teve que reduzir salários de seis funcionários, que recebiam por volta de R$ 23 mil, após determinação do Ministério Público. A prefeita ganhava R$ 10,5 mil na época. 

A Promotoria de Patrimônio Público de Guarujá abriu inquérito para investigar a Gratificação por Assiduidade e Pontualidade. Mesmo moralmente condenável, é preciso reconhecer que a Câmara de Guarujá foi criativa para brincar com dinheiro público. De fato, a criatividade – às vezes - reside na mágica que transforma obrigação em mérito.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Os descamisados


Falar em descamisados é voltar ao início da década de 90. O então presidente e hoje senador Fernando Collor de Mello usava esta expressão para se referir à população miserável, enquanto praticava esportes radicais, reformava a Casa da Dinda e fingia caçar marajás. 

A palavra descamisados me veio à cabeça quando li sobre o atraso na entrega dos uniformes escolares nas nove cidades da Baixada Santista. Sabemos que a ideia de região metropolitana é conversa para político dormir em reuniões, mas – nesta história - todas as cidades se abraçaram na incompetência administrativa. Nenhum município foi capaz, de acordo com reportagem de Tatiane Calixto, publicada no jornal A Tribuna, de entregar o material escolar e todos os uniformes para os estudantes.

As Prefeituras escorregaram nas desculpas tradicionais. Em parte, culpam a transição de governos, que se traduz em – veladamente – acusar o antecessor para repartir ou desviar a própria negligência. Outra parte responsabiliza a burocracia, ator de nome e endereço conhecidos e sempre presente na lista de justificativas. Neste caso, as irregularidades variam entre as empresas vencedoras e o próprio edital de licitação.

Santos seria exceção no caso do material escolar, mas somente 43% das unidades de ensino receberam os uniformes. A empresa vencedora, com prazo até 17 de abril para efetuar a entrega, receberá – conforme o contrato - R$ 2,2 milhões. Já os kits de inverno ainda representam um sonho de verão.

A rede municipal de Santos não enfrenta este único problema. As mudanças administrativas ainda provocam turbulências dentro da Secretaria de Educação. Entre os coordenadores, houve dança das cadeiras, depois da exposição de que alguns profissionais não estavam qualificados ou nunca tinham atuado nas respectivas funções. Remanejar não significou mexer nos salários, até porque muitas nomeações vieram lá de cima.

No setor de projetos, as formações de professores foram suspensas. A secretaria pretende contratar uma empresa de fora para realizar as capacitações. Antes, muitos cursos eram ministrados por profissionais da própria secretaria. E nem se debateu a eficácia das formações, muitas em caráter fast-food, de final de semana. O setor chegou a ter 100 projetos pedagógicos em andamento. Atualmente, não passam de dez.

O Departamento Pedagógico, ponto considerado essencial na gestão da ex-secretária Sueli Maia, entrou em risco de extinção. A maioria das educadoras voltou para a sala de aula. As que sobraram foram absorvidas pelo projeto Escola Total.

A grande ironia, no entanto, está na escolha do cacique. Jossélia Fontoura ocupa o cargo de secretária pela segunda vez. No governo Beto Mansur, ela carregou a bandeira da progressão avaliada, alegando que o outro sistema aprovava os alunos de maneira automática. O discurso virou um sussurro quando os índices de avaliação permaneceram no mesmo patamar e provaram o óbvio: os alunos não progrediam por outros motivos.

Hoje, Jossélia Fontoura é secretária de Paulo Alexandre Barbosa que, enquanto secretário-adjunto de Educação do Estado, defendia justamente a progressão continuada. Ele argumentava que o sistema estava além da superficial discussão sobre reprovar ou não o aluno. 

Enquanto se faz política de ocasião, as crianças da rede municipal, claro, se adaptaram depois de dois meses de aulas. Em mais dois meses, elas estarão de férias. Talvez continuem com a mesma roupa. E talvez continuem ouvindo o mesmo rosário de desculpas.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Cartada de mestre


A nomeação de João Paulo Tavares Papa para a diretoria de Tecnologia, Empreendimentos e Meio Ambiente da Sabesp não representa apenas o retorno do ex-prefeito à empresa onde exerceu o primeiro cargo de destaque, há 20 anos. É a confirmação de que Papa se constitui no maior vencedor político das últimas eleições. 

Se Paulo Alexandre Barbosa ganhou nas urnas e, em três meses de governo, coleciona obstáculos, o ex-prefeito parece ter o controle das peças no tabuleiro. Cada passo é pensado e executado de maneira meticulosa, como qualquer estrategista político que se preze.

Perceba que me refiro ao político, e não ao administrador. A cidade quase andou no piloto automático na segunda gestão. A Prefeitura lavou as mãos para a transformação urbana e a especulação imobiliária. Papa não mexeu – sequer blefou – com o monopólio do transporte coletivo. O trânsito nos presenteia com o lado perverso das metrópoles. Na área social, mais de 600 pessoas moram nas ruas, muitas dependentes químicas.

Um ano atrás, o noticiário político cutucava o suposto mau relacionamento entre o então prefeito de Santos e Geraldo Alckmin. Papa recebia, por exemplo, convites em cima da hora para eventos com a presença do governador. Os mais apressados diziam que as rusgas eram previsíveis por conta da candidatura de Paulo Alexandre.

O primeiro ato apenas se desenhava. Quase sempre em silêncio, quando não por meias palavras, Papa segurou até onde pôde a definição do candidato à sucessão. Sérgio Aquino fazia parte, no mínimo, de uma lista tríplice de especulações.

Enquanto isso, Paulo Alexandre Barbosa disparava na frente, apoiado – ainda que parcialmente - em um discurso de continuidade e sem atacar a administração municipal. E não negava a imagem de ser um candidato do governo. Até porque o PSDB, de fato, pertencia à base do prefeito. O então vice e secretário de Assistência Social, Cacá Teixeira, por exemplo, era do partido e se elegeu vereador. Quando Aquino entrou na corrida, era tarde demais. Mesmo com a presença de Papa na campanha e triplicando os números das pesquisas, Aquino ficou em terceiro lugar.

Depois da eleição, o ex-prefeito pouco se expôs. Deu as tradicionais entrevistas de balanço, auxiliou o sucessor na transição e deixou o governo com a popularidade elevada. Manteve a quarentena de praxe e não caiu nas armadilhas da retórica do atual que culpa o anterior. Mais do que isso: Papa reapareceu na hora em que Paulo Alexandre enfrenta o pior momento, numa volta às origens e convidado pelo governador Geraldo Alckmin.

João Paulo Tavares Papa sempre demonstrou fome de aprendizado. Teve um grande professor, Osvaldo Justo. Nunca se expôs a escândalos pessoais. A vida privada sempre foi discreta. E absorveu que – na arte da política – o silêncio das sombras produz mais frutos do que os holofotes.

Voltemos ao ano de 2004. Papa convenceu Beto Mansur a apostar em um novato, em um técnico sem experiência eleitoral. A cidade ficou dividida e Papa venceu Telma de Souza por 1771 votos. Assim que pôde andar com as próprias pernas, a criatura abandonou o criador. Papa se afastou de Mansur, que apresenta altos índices de rejeição. A última eleição para prefeito que o diga! Quatro anos depois, Papa venceu no segundo turno com a maior votação proporcional da história de Santos, numa coligação recorde de 19 partidos.

João Paulo Tavares Papa, como político, segue silencioso. Muitos, dentro do mundo da política, acreditam que ele mostrará as cartas no momento certo. Em 2014, teremos eleições legislativas. A previsão óbvia é que Papa, invicto nas urnas, se candidatará a deputado. As apostas variam somente no CEP. João Paulo pretende subir a serra ou morar em Brasília?

quarta-feira, 27 de março de 2013

A greve


Por mais que se gaste o argumento de que paralisações de trabalhadores tenham fundo jurídico ou administrativo, qualquer greve sempre será um ato político. Acima de tudo, provoca consequências políticas, para todos os lados envolvidos. É o caso da paralisação dos servidores públicos de Santos, que aconteceu na terça-feira, dia 26.

A última greve aconteceu no governo David Capistrano, em 1995, e durou 29 dias. Na cidade, hoje são cerca de 10.500 funcionários públicos. A categoria segue em estado de greve desde o dia 7 e aprovou parar o trabalho depois de a Prefeitura estacionar na proposta de 1,5% de aumento. Os trabalhadores pedem 16,2%, como reposição da inflação mais perdas de outros anos.

A administração municipal ofereceu também cesta básica de R$ 134,85 para os servidores de nível P, além de acréscimo de 0,25% ao ano na Caixa de Pecúlios. A Prefeitura fala em déficit de R$ 40 milhões nos cofres.

As causas e as consequências de uma greve ultrapassam a matemática. Greves nascem da incompatibilidade política entre os lados do balcão de negociações. Brotam da incapacidade de diálogo, que inclui – perversamente – a manipulação e dominação de uma das partes. Desenham um cenário de muita cortina de fumaça, blefes e especulações, que engolem – inclusive – a dança de números.

A greve dos servidores municipais representa mais um pedaço do abacaxi que o prefeito Paulo Alexandre Barbosa tem que descascar no início de sua gestão. As comparações com os antecessores se tornaram inevitáveis. João Paulo Tavares Papa nunca foi um excelente pagador, muito menos o atual deputado federal Beto Mansur. Tanto que centenas de professores largaram a cidade para trabalhar em municípios vizinhos, menores em tamanho, melhores em remuneração. E os médicos? Vagas se multiplicavam, enquanto os profissionais atuavam em outros endereços.

Mansur passou anos sem reajustar os salários da categoria. Papa vestia-se como hábil negociador. Era a velha tática do comerciante. Jogava com o índice de aumento abaixo do limite e encarava a alta pedida dos sindicatos. Chegava ao meio termo, geralmente na faixa de 6%, e todos ficavam aparentemente satisfeitos.

Paulo Alexandre Barbosa também patinou ao não conter a língua de alguns integrantes do governo, que tentaram responsabilizar o antecessor pela bagunça financeira da administração. Criou-se o diz-que-me-diz, que – na prática – alimenta a impressão de dor de cotovelo. O passado, nestes casos, costuma permanecer enterrado. O funcionalismo quer respostas de quem se sentou na principal cadeira da Prefeitura, e não discutir o sexo dos anjos com quem já entregou o boné.

Outro problema é o passado político do PSDB no Governo do Estado. O partido ganhou fama (justa, aliás) de pagar mal o funcionalismo público. Professores apelidaram o vale-refeição de “vale-coxinha”. O próprio Paulo Alexandre Barbosa enfrentou questionamentos públicos por conta dos baixos salários nas escolas técnicas. E a vergonha de policiais quando revelavam o valor dos holerites em tempos de crise por conta de grupos como o PCC?

Oferecer reajuste de 1,5% soou como provocação, nas palavras de sindicalistas à imprensa. Simbolicamente, o índice demonstra, diante de comparações com salários das dezenas de funcionários indicados para chefias, o olhar da administração municipal para o funcionalismo de carreira. A resposta, por enquanto, também é simbólica: uma greve, algo que não se via há 18 anos em Santos.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Inferno astral


Os primeiros cem dias de governo costumam ser uma lua-de-mel. Os novos casamentos incluem paciência do eleitor, conivência da classe política, certo relaxamento da oposição e até perdão da imprensa, que digere a desculpa do tempo de adaptação ao funcionamento dos intestinos do poder. 

Em Santos, o prefeito Paulo Alexandre mal disse sim e já enfrenta crises no relacionamento, com parentes aliados, com novos vizinhos e até com padrinhos, cuja amizade remonta ao passado de feliz adolescência política.

As pancadas começam dentro de casa. Para atender a fome de poder de primos, sobrinhos e outros sujeitos cujo parentesco vai até quarto, quinto graus, Paulo Alexandre sacramentou uma lista de convidados. Brotaram dezenas de coordenadores e secretários-adjuntos, muitos deles em cargos distantes de suas profissões originais, o que acendeu a luz amarela até da turma da imprensa amiga.

Como o inimigo às vezes divide a mesma cama, ou o mesmo gabinete, o prefeito sentiu também o cheiro das feridas reabertas no partido dele. As cicatrizes tucanas, que pareciam velhas marcas por conta de uma vitória nas urnas, sangraram novamente, desta vez como chororô de quem ficou sem pedaço de bolo no final de festa de casamento.

A promessa é que tudo se resolveu na cozinha antes do buffet fechar o expediente para balanço. Qual preço pagaremos por causa de pratos e copos quebrados depois de desavenças atrás das cortinas do salão?

Além do incêndio dentro de casa, o prefeito saiu chamuscado ao incinerar uma das principais promessas de campanha. Durante o processo eleitoral, Paulo Alexandre Barbosa prometeu ressuscitar o maior elefante branco da área de saúde. Por erros primários de planejamento de equipe – voluntários ou não -, adiou a reabertura do hospital por mais dois anos. Todas as pesquisas indicavam que a maior preocupação dos eleitores era a saúde.

O anúncio do adiamento veio em um pacote que inclui a compra de leitos na Santa Casa – sempre superlotada – e na Beneficência Portuguesa. O presidente da Beneficência é vereador da base do governo e estava sentado ao lado do prefeito no momento da má notícia. Claro, para a população. A imagem acendeu outro tititi dentro das oficinas das costureiras políticas.

Até as comemorações, quando se permite guardar esqueletos nos armários, viraram um peso extra nas costas do prefeito. O Carnaval acabou um dia antes pelas mortes nas imediações na passarela do samba. O caso fechou um Carnaval a ser esquecido, com início na praia, depois que um garoto de nove anos quase morreu eletrocutado em uma das tendas. O tempo tenta esfriar gradualmente estas histórias, que merecem apuradas com rigor.

Quando o casamento balança, até os amigos atrapalham. E mancham a imagem do noivo quando desenterram cadáveres de relacionamentos antigos. Paulo Alexandre viu seu nome ser arrastado para as investigações contra seu ex-chefe e mentor político Gabriel Chalita. O deputado federal e ex-secretário estadual de Educação é alvo de uma dúzia de inquéritos por parte do Ministério Público. O prefeito de Santos jura que amigos, amigos, negócios à parte, mas - no mundo da política – boatos costumam ser mais velozes que fatos. 

A vizinha São Vicente pode servir de consolo ao novo administrador de Santos. Lá, nem a lua-de-mel foi programada. Mas o prefeito Luiz Cláudio Bili já sabia do calor das chamas assim que se elegeu. Em Santos, o prefeito parecia encantado com o canto dos anjos; na verdade, uma miragem que se esfarelou no deserto do purgatório. Neste caso, nem reza para santo casamenteiro ajuda.

sexta-feira, 8 de março de 2013

A fatalidade é inocente


A Dona Fatalidade é uma senhora discreta, que foge de aparições públicas. Como uma mulher ingênua, ela se conformou que sua missão é carregar a culpa alheia. Nas últimas semanas, Dona Fatalidade – que em alguns lugares assina com o pseudônimo Mãe Natureza – tem andado arqueada. As dores dela e o inchaço são consequências da dificuldade em suportar a negligência alheia no lombo. 

Dona Fatalidade circulou nos últimos dias no litoral de São Paulo. Embora impossível pelas leis da física, ela foi vista em dois lugares ao mesmo tempo. Ela teria visitado em Boiçucanga, lugar onde morreu uma menina de 11 anos. Além de acusá-la, seus adversários culparam as moradias irregulares e ignoraram – por conveniência – a ausência de fiscalização, de políticas habitacionais e a paralisação dos serviços de dragagem do rio.

No mesmo horário, Dona Fatalidade também estaria em Cubatão. O passeio incluiu os bairros da Água Fria e Pilões, com parada para descanso perto de um dos túneis da Rodovia dos Imigrantes.

Mãe Natureza está exausta. Outro dia, conversando com a prima Injustiça, ela sonhava em aprisionar um dos mandamentos divinos: que seu nome não fosse mais usado em vão.

As dores do cansaço reapareceram várias vezes ao longo da semana. Dona Fatalidade não aguenta mais ver contadores de histórias, que reescrevem os fatos e os ajeitam para parecerem verdadeiros. Um deles prometeu investigar a Ecovias – a quem sempre fez vistas grossas – e apareceu em Cubatão cinco dias depois para prometer duas mil casas, num passe de mágica. E fingia desconhecer que o auxílio-moradia para os desabrigados era de R$ 400, impossível de se alugar um barraco.

Outra parte da fábula nasceu nos gabinetes da Ecovias. Uma encosta dá vários sinais antes de desmoronar. Não há acaso. Já a família da mulher que morreu soterrada teve que ir à imprensa reclamar da falta de assistência, contradizendo a versão oficial da empresa. A Ecovias também reconhece que seu Plano de Emergência era insuficiente. Será que cumprirá sua parte ou deixará os usuários à própria sorte, quando os holofotes se apagarem, como aconteceu no engarrafamento-monstro do ano passado? O mesmo conto de fadas ouvido pelos motoristas que tiveram seus carros depenados nos pátios?

Dona Fatalidade também não suporta ouvir os trovadores locais. Em Cubatão, ela escutou um representante da Prefeitura afirmar que a cidade pensará em um plano de segurança, pois acidente assim nunca aconteceu. Chuva forte seria um bilhete premiado às avessas, só que todos os anos.

Dona Fatalidade (ou Mãe Natureza) tem memória, assim como muitos moradores. Em segundos, ela é capaz de listar as tragédias que ocorreram nos bairros Cota, até porque sempre leva a culpa.

Ao ver a líder política local, tranquila como uma Rosa, falar em cadastro, reuniões, comissões e outros badulaques burocráticos, Dona Fatalidade pensou em pedir arrego. O peso se tornou insuportável com tantas acusações infundadas. Mais de 250 mortos em incêndio no Rio Grande do Sul. Garoto de 14 anos morto por um sinalizador na Bolívia. Agora, a Baixada Santista e o Litoral Norte. Isso apenas em um mês. A lista inclui os mortos no Carnaval de Santos e a mulher soterrada pela marquise de um supermercado na mesma cidade.

Dona Fatalidade ainda costuma encarar as reprovações com ar sereno. Esperançosa, ela aposta que um dia descobrirão que muitas tragédias têm os dedos de suas duas irmãs, ovelhas encardidas da família. O problema é que são muito parecidas aos olhos das autoridades. Tão próximas que o nome de uma delas até rima. Quem vai desmascarar a Negligência e a Irresponsabilidade?