terça-feira, 19 de novembro de 2019

Nós falhamos!



Marcus Vinicius Batista

Se falar de racismo no Brasil é chafurdar na lama do óbvio, vamos a duas constatações imediatas. A primeira é que, se você desconhece que existe discriminação racial no país e que ela está ligada de forma umbilical ao preconceito de classe social, só posso crer que existem três alternativas saltitando na sua frente:

a) ignorância absoluta do que acontece além da sua janela e talvez dentro de seu mundo de grades ou bolhas;

b) má fé por quaisquer interesses individuais ou sociais;

c) a História, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Medicina, a Engenharia, o Direito e as demais áreas do conhecimento passaram ao largo da sua formação educacional e cultural, seja por responsabilidade de quem te educou, seja por responsabilidade sua mesmo!

Minha crença: d) Todas as alternativas anteriores.

A segunda constatação é que as instituições brasileiras sempre falharam em seus papéis para enxergar os negros, para combater o racismo ou sequer para dar voz a eles, salvo exceções, de nomes de uma lista pequena a datas comemorativas, que esfregam a regra na cara de todos. Como derivação desta redundância, é fundamental tirarmos o peso absoluto das costas das instituições, como entidades espirituais que aceitam tudo e nunca reclamam como sistema, e assumirmos a cota que nos cabe. Temos que falar sobre pessoas, sobre seres humanos (não representam a mesma gente, muitas vezes) e, principalmente, sobre o que nos faz criaturas selvagens.

Nós falhamos como indivíduos, como grupos sociais, como sociedade, como nação, como qualquer critério que nos lembremos para enquadrar as relações raciais brasileiras. Erramos porque aceitamos o politicamente correto como limite. O oportunismo da convenção social.

O equívoco se repete nas falas adequadas ao momento histórico, nos argumentos “brancos” que soam como sussurros de culpa não assumida ou de medo da retaliação.

Nós falhamos porque aceitamos a conversa mole de que tudo vai passar, de tudo está mudando como se estrada fosse linear até um desfecho de sorrisos felizes, abraços apertados, mãos dadas e arco-íris no pé da serra. Erramos de forma grosseira quando acreditamos que o outro, do alto de sua arrogância racista, vai mudar de comportamento pelo simples fato de que alguém tentou explicar a ele que o mundo é diferente de seu olhar superior.

Errei quando, no mestrado, escrevi uma dissertação sobre racismo dentro das escolas públicas pela ótica do professor que se considera negro – a primeira sobre o tema na universidade onde estudei e sou professor. Quando defendi o trabalho, há 11 anos, só tinha dois colegas negros no curso, nenhum professor, e julguei que cumpria um importante papel social ao escrever sobre um problema crônico que me incomodava desde o tempo das redações jornalísticas de predomínio branco onde atuei. Insuficiente.

Minha falha foi também acreditar somente na força da palavra. Em crer que, em sala de aula, ao abordar todos os anos, nos 17 como professor universitário, a temática do racismo no país, via construção histórica, definições conceituais, tentativa de derrubar o senso comum (exemplo: o racismo no Brasil é mais leve do que nos Estados Unidos), imagens vendidas na mídia. Jurei que poderia alterar raciocínios viciados em poder silencioso de uma plateia majoritariamente branca. Alguns talvez tenham parado para avaliar o som que vinha da lousa.

Desejo o benefício da dúvida, instalado na incapacidade de medição objetiva do trabalho de professor. O mesmo vale para o jornalista que publicou dezenas de textos sobre o assunto e insiste em rascunhar uma reflexão como esta, ciente de que os índices deficientes de medição de leitura vão cair, como acontece com os escritos sobre população de rua e violência sexual.

Nós falhamos porque tentar convencer com palavras parece placebo num momento histórico de retrocesso, de liberdade para a intolerância, para a truculência, para o palavrório que endeusa a ignorância, tanto a violenta como a oca de conteúdo. Tudo com o selo de “qualidade” das lideranças políticas e parte dos coronéis religiosos.

É a hora de não aceitarmos mais os racistas. De ter uma postura – mais do que retórica – antirracista. De não fazer só muxoxo para o papo furado de “tenho amigo negro”, “tenho primo de quinto grau”, “a avó da tia da minha madrinha foi escrava”.

Também não dá para apenas repetir as estatísticas das diferenças raciais/socioeconômicas brasileiras. Os números mudam, porém a ordem das coisas permite que se substituam os dados na mesma tabela. Copia e cola.

Não dá para se surpreender com o ar de surpresa – tão redundante quanto a própria frase - dos jornalistas ao “descobrirem” a existência de um ou outro técnico negro, ou que as torcidas europeias, brasileiras, caiçaras ou do time da faculdade entoam cânticos ou grunhidos animalescos para jogadores de futebol vistos como macacos. Ou quando “percebem” – e se calam - que os dirigentes e as entidades organizadoras literalmente jogam para a torcida.

Sempre vi datas comemorativas como uma contradição. Celebrar é lembrar juntos e isso não significa passar a mão na cabeça e fechar o bico pelo resto do ano. Significa demarcar território e se mexer. Alterar. Punir quem comete crime – racismo é crime, para ser óbvio outra vez! – em vez de engolir as desculpas esfarrapadas que cercam um silêncio misericordioso de quem se beneficia das discriminação em todas as instâncias, em todas as instituições.

sábado, 9 de novembro de 2019

A revolução pela consciência (Escritas do Cotidiano # 75)


Christian Godoi

... então a personagem expirou. Cansada de todo o sofrimento ao qual fora exposta, resolveu reunir seu grupo na quadra da centenária escola de samba do bairro. Ali, discursou, inicialmente, para um pequeno grupo. Dissera que trabalhara por trinta anos com a expectativa de conseguir tranquilidade na velhice. Não levou em consideração o tempo dedicado a outras atividades sem o devido registro...

Crescera ouvindo os adultos pregando um país em desenvolvimento. Este que não se concretizou. A miséria sempre o assombrara, fosse no campo, onde os latifundiários ganhavam cada vez mais poder; fosse na urbe, na qual as periferias tornavam-se cada vez maiores.

Ali, ela discursara; por que deveriam se manter quietos em seus barracos mal iluminados? Por que tinham que viver precariamente? Por que existiam tantos espaços, prédios e apartamentos vazios? Por que necessitavam mendigar empregos em troca de comida, praticamente? Por que deveriam ganhar apenas poucos reais por hora? Por que ver os filhos sem perspectiva de futuro? Por quê?

Por que aquela minoria da Casa Grande tinha imensos quintais, sem ter feito algo para conquistá-los? Afinal, a terra é de todos. Pregam um discurso sobre trabalho, quando a verdade sempre foi a exploração! Pregam a propriedade, quando o fato é que ganharam ou herdaram de alguém a terra, demarcada ou apropriada ainda sob o espectro colonial.

Por que, então, deveriam estes, que escutam a fala contundente da personagem, se aquietarem em seus minúsculos espaços no transporte público, assistindo ao desfile de veículos miliardários emparelharem, com seus proprietários ressecados pelo ar condicionado ignorarem a existência do entorno? Era a hora, então, dissera a personagem, de tomar aquilo que lhes era de direito: a dívida das elites para com o povo. Uma dívida que carregara cada gota de sangue índio, derramado no chão das aldeias estupradas; cada lágrima ou lembrança dos africanos capturados e encerrados no porões negreiros, envolvidos pelo calor fétido das fezes e da urina, das infecções e das mortes assistidas.

Era hora de as elites pagarem pelas chibatadas aplicadas sadicamente às costas dos revoltados pela condição de bichos que lhe eram impostas. Estes agora tinham as armas, tinham o motivo, tinham vontade. Bastava a consciência. Nenhuma casa, apartamento, ou mansão, em qualquer lugar que fosse, ficaria sem morador. Toda e qualquer propriedade seria deles a partir de agora.

O Estado não poderia mais segurá-los, desde que tivessem a consciência de que deveriam estar juntos, não em busca da conquista individual, mas do bem comum. Não precisavam de piscinas para uma família, mas sim de dignidade para todos. Era a hora. Muitos dos seus haviam chegado lá: tinham consciência, estudo, educação. Agora eram médicos, professores, engenheiros, empresários.

Por que deveriam se submeter a ficarem excluídos, distantes, nas periferias, se o centro fora construído e mantido por eles? Não, era hora da revolução. De tomar cada espaço, de dividi-lo, de desfrutá-lo, de organizá-lo, para que todos tivessem as mesmas oportunidades, e uma sociedade mais justa se formasse.

Para isso, aqueles que haviam desfrutado das benesses do capital ao longo dos séculos deveriam, em silêncio, para a manutenção de suas vidas, acatar a revolução. Afinal, só saberiam o que viriam, depois de sua conclusão...

Agora era a hora da luta, não de facções, nem de comandos, nem de partidos, mas de coletivos, de uma totalidade ainda impossível, mas que deveria ir se construindo das metrópoles em direção aos campos, e do campo em direção às aldeias... e assim foi...

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Adilson não está sozinho



Marcus Vinicius Batista

Adilson Durante Filho é a bola da vez, símbolo e sintoma de como as relações raciais se estabelecem e se desenvolvem onde vivemos. Ao fazer um discurso racista contra os pardos via áudio, o então secretário-adjunto de Turismo de Santos e conselheiro do Santos Futebol Clube se tornou presa moribunda num momento histórico no qual o politicamente correto passa por crise de identidade, legitimado pelas lideranças políticas e econômicas, com a esquizofrenia de muitos setores da sociedade, de forma explícita, na sala de jantar ou no grupinho de rede social.

O caso, embora não tenha esperança de que servirá de aprendizado para ninguém, estimulou o arroto de doses de hipocrisia e merece algumas considerações em diversos níveis, do pontual ao individual, do macro ao microcosmos social.

Eis aqui algumas ideias:

1) Adilson Durante Filho cometeu um erro de racista principiante. Foi arrogante além dos limites que a KKK tupiniquim suportaria. Confiou demais nos parceiros de virulência. Ele não atacou os negros, e sim os pardos. O ataque aos negros também seria recebido com repulsa, mas uma parcela da sociedade fingiria que não é com ela. Fingiria porque se esconde dentro do conceito de pardo, sem vivenciá-lo no cotidiano, se fantasiaria de “cidadão de bem” com aquele papo furado da “minha avó é parda, meu pai também”, para parecer mais simpático publicamente à diversidade racial.

A diferença parece ser sutil, mas funciona como cortina de fumaça que, infelizmente, colabora para a permanência das ideias racistas na dinâmica social e cultural brasileiras. Os hipócritas, assim, conseguem entrar na onda de rejeição e podem, inclusive, se colocar como vítimas em potencial, o que camuflaria o cinismo de quem discrimina ou de quem se cala.

2) O pardo é quase uma entidade espiritual no processo social brasileiro. Embora a palavra tenha peso histórico, o pardo é construção social conveniente, um mecanismo de defesa para suportar o racismo branco, uma manta que cobre e esconde a discriminação que sobrevive pelo silêncio, pela conivência, pela ignorância e pelo debate carente de aprofundamento estrutural, que se limita a arranhar a superfície.

O pardo também apanha na rua, também toma geral da polícia, se encaixa no estereótipo do bandido, é chamado de “mau caráter”, mas o termo permite – pela manipulação individual e coletiva – certa proteção quando associado à posição social. Pardo cultiva, nas relações raciais brasileiras, status superior ao negro, fruto inclusive da aura de miscigenação como elemento democrático, não como um símbolo de violência ontem, hoje e sempre.

3) O pardo, no racismo brasileiro, é conceito incapaz de simbolizar a vida prática. Neste país racista, pardo serve para negar a negritude. Como consequência, auxilia na negação do racismo.

De forma involuntária, acelera as ações da “turma do deixa disso”, quase sempre brancos interessados em evitar exposições. Jogue alguém aos leões, sem mexer no estado de coisas.

Na semana que vem, Adilson será passado. Até o próximo caso.

4) A reação política do prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa, foi previsível, como qualquer político com razoável inteligência faria – olhe para Brasília e entenda que não é regra geral. O prefeito deu ao então secretário-adjunto a honra de pedir o boné, mas não perdeu a oportunidade de falar de si mesmo, na sutileza do narcisismo político e do autoelogio. Nenhuma surpresa, é protocolo político.

Outro ponto: é louvável e direito do prefeito se considerar pardo. Respeita sua história e origens familiares. Só tenho dúvidas se muitos de seus amigos políticos o enxergam assim.

5) Quando Adilson vomitou o palavrório racista, ele o fez porque é muito provável (muito mesmo!) que teve caixa de ressonância. Há audiência cativa para este tipo de violência. Como diz minha esposa, semelhante atrai semelhante. Como praticam os algoritmos, as redes sociais funcionam como bolhas de opinião, onde os pares se encontram e dividem prazer em seus achismos, preconceitos, discriminações, visões doentias de mundo.

6) Como figura política, Adilson colecionou adversários, para não dizer inimigos. O vazamento do áudio não aconteceu por preocupação social, por denúncia contra o racismo ou por um lampejo de cidadania. O vazamento ocorreu para destruir uma reputação, para retirar uma pedra do caminho, dentro de certos interesses políticos. Só nos resta saber – se é que importa – se o rastro dos pedacinhos de pão nos levará à Vila Belmiro ou à Prefeitura de Santos.

7) Adilson Durante Filho vive numa cidade historicamente conservadora, que se manifesta há décadas por atos racistas, entre outros processos de discriminação. Uma cidade onde, nos anos 40, sambistas negros eram presos por vadiagem, onde a polícia oprimia os desfiles carnavalescos.

Santos é uma cidade na qual um prefeito negro eleito, Esmeraldo Tarquínio, foi proibido de ocupar o cargo e perseguido pela ditadura militar por muitos anos. É a mesma cidade onde um jogador novato, chamado Pelé, foi proibido de entrar pela porta da frente de um clube de elite. Depois, campeão do mundo, ele foi recebido como se nada tivesse acontecido. A lista de fatos é, infelizmente, bem maior do que esta reflexão poderia comportar.

8) O conselheiro do Santos Futebol Clube vive num mundo onde negros e pardos são as estrelas do show, mas são tratados como empregados ou até escravos modernos. O futebol funciona como reflexo social, um ambiente onde o racismo se pratica em todos os níveis, dentro e fora do campo.

Os excrementos racistas proferidos pelo conselheiro não mudarão o modo de ver o futebol. No último episódio de racismo envolvendo o clube pelo qual Adilson torce, sobrou para a vítima. O goleiro Aranha testemunhou o clube lavar as mãos, parte da torcida desconfiar dele, a imprensa colocar panos quentes até que a história fosse abafada. Para muitos, ficou parecendo chilique do goleiro.

9) Adilson Durante Filho pediu desculpas publicamente e buscou se retratar. Não fez mais do que a obrigação. Quando membros da elite se veem em saia justa ou provam da violência social e psicológica que costumam perpetuar, sempre penso nos dois motivos que levam alguém a pedir desculpas.

O primeiro é o reconhecimento real do erro, do entendimento de que o outro foi machucado, da humildade de enxergar que um ato de violência foi cometido. A segunda razão é pedir perdão como autopreservação, como sinal de medo pela punição, de perder as posições que ocupa, de se proteger para manter a estrutura confortável em que vive, jamais pelo olhar sobre o outro, por se colocar no lugar dele.

Em qual destes caminhos Adilson Durante Filho preferiu colocar seus pés, sua reputação?

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Consciência Negra pra quê?

Lima Barreto, escritor brasileiro discriminado
dentro e fora do sistema manicomial

Marcus Vinicius Batista

Sou um homem branco de classe média, de alta escolaridade, que vive num centro urbano de excelentes condições socioeconômicas. Hoje, num dia de folga, sem os empregados do comércio e das casas ao redor, sem a coleta de lixo, sem as mulheres que varrem as calçadas da minha rua, sem os moradores de rua que visitam a armação de metal, a casa dos nossos restos, durante a madrugada, eu poderia perfeitamente perguntar aos meus vizinhos: Dia Nacional da Consciência Negra pra quê?

Poderia também questionar os frequentadores da academia da moda, que fica na esquina de casa. Poderia também indagar a maioria dos meus colegas de trabalho, quase todos professores universitários com seus títulos e honrarias. Consciência Negra pra quê?

Eu poderia confirmar a dúvida de uma amiga de faculdade, que vivia entre o comércio no Gonzaga e o prédio de alto padrão no Campo Grande, a um quilômetro do trabalho dela. Onde estão os negros em Santos (a cidade onde moramos)?

Poderia ainda colocar em debate – na verdade, sucessivos monólogos de confirmações de tese – a questão posta por um colega de futebol, anos atrás. Ou uma dúvida nada infantil de um aluno de universidade, que prefiro dizer que se matriculou em minha disciplina, mas a assistiu com aqueles fones de ouvidos resistentes ao barulho de britadeira. Por que não temos o Dia Nacional da Consciência Vermelha? Por que não temos o Dia Nacional da Consciência Humana?
Sou um branco, num país onde a maioria das pessoas são negras ou pardas, esta última uma classificação peculiar da cultura brasileira, uma parcela da sociedade que preferia (já explico o verbo no passado) o silêncio sobre o racismo, quando defende uma fantasia chamada democracia racial e suas derivações delirantes.

Escrevo há anos sobre o tema. Escrevi uma dissertação de mestrado sobre o assunto. Levo o problema para sala de aula, para uma plateia majoritariamente branca, todos os semestres. Ouço os argumentos brancos, os da negação, e busco refutá-los com informações, com serenidade. E testemunho como as mudanças estavam acontecendo de maneira lenta; lenta, mas gradual.

Não tenho mais ânimo para argumentar com estatísticas. Se alguém duvida de que o Brasil é desigual até a alma (sem cor, aliás), faça uma pesquisa chinfrim na Internet. Qualquer ângulo: saúde, políticas públicas, sistema prisional, segurança pública, universidades, política e até futebol. Se está com preguiça, ande na rua e converse com as pessoas. O racismo só não aparece para os cegos, surdos e mudos de consciência política.

Se não quer sair de casa, acesse qualquer rede social. Ali, você verá o que mudou. Não deixamos de ser racistas. Passamos a acreditar que é possível ser racista sem maiores consequências. Autorizados ou não pelo próximo Governo, muitos saíram do armário da ignorância e da vergonha, se vestiram de colonizadores e resolveram falar como personagens de novela de época do século 19.

O palavrório discriminatório saiu da negação, em muitos cenários, para a agressão com nome e sobrenome. Se no Planalto pode, por que não poderia na terra batida gourmet?

Jamais saberei o que é o racismo, na combinação cor da pele e posição social, no sentido mais profundo, aquele que dilacera a essência, aquele que corrói a identidade e a dignidade de alguém. Ao conhecer sua existência, porém, é vital não ficar calado ou me omitir pela inércia da falsa naturalidade das coisas.

Não é porque uma parcela estúpida se sente legitimada a vomitar sua boçalidade travestida de inteligência que deveremos aceitá-la como parte das relações humanas. O racismo é uma falsa característica humana, ela pertence aos selvagens.

Como disse recentemente a antropóloga Lila Schwarcz, o racismo brasileiro diz respeito aos brancos, pois é provocado por eles. E, desta forma, o ativismo branco é essencial para que seus supostos pares de cor se retraíam na vergonha, na mediocridade e no crime que cometem a cada vez que abrem a boca na mesa de jantar ou escondidos atrás de uma tela de computador.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Mais Médicos: quem se importa?


Marcus Vinicius Batista

Este texto não é para você, meu costumeiro leitor. É um texto para aqueles que, provavelmente, por falta de acesso não o lerão. É para quem terá uma infinidade de problemas mais urgentes do que usar uns minutos para uma reflexão política.

Vivo numa cidade onde muitos não se importam com a saída de profissionais que pertencem ao programa Mais Médicos. Não se tratam de cubanos, alienígenas ou corintianos. Trata-se de pessoas que, dentro de sua invisibilidade, dependem deste programa para não morrer de causas que deveriam estar nos livros de História sobre Idade Média, como diarreia e infecção urinária.

Vivo numa cidade onde muitos reclamam dentro do que consideram ser um direito dos privilegiados, uma expressão contraditória em si. Privilegiados em ter plano de saúde, mesmo que tenham que esperar três meses por uma consulta com um médico que os atenderão por 15 minutos porque precisa receber um monte de pacientes, pois – como privilegiado também – recebe uns R$ 30 por consulta. Aliás, sem garantias de pagamento porque um erro num formulário burocrático vai significar “pagamento indeferido”.

Não precisamos do programa Mais Médicos porque entendemos que nossa rede hospitalar é suficiente para atender a todos, principalmente aqueles que podem acionar a rede de favores, do médico que é primo do primo, amigo da ex, tio do chefe, o profissional capaz de arrumar um leito para internação do nosso parente. O parente que pagou décadas por impostos, assim como nós – os pedintes de favor -, mas que desprezamos o SUS porque é ruim e, por isso, não serve para a classe média que atira verbalmente no alvo errado.

Não precisamos do programa Mais Médicos porque, muitas vezes, a minha cidade de muros simbólicos possui uma farmácia em cada esquina nos bairros “bons” (os nossos), fingindo descontos já embutidos no preço da concorrência quase cartelizada, mas que alivia nosso ego que adora um discurso fraudulento de lesa consumidor. O consumidor que acha que leva vantagem, como se estivesse num cassino, local onde vantagem é utopia.

Dispensamos o programa Mais Médicos porque podemos entrar no cheque especial – alguns até fazem empréstimos consignados – para pagar pela consulta particular, que será amanhã cedo em vez dos três meses de espera. Na mentalidade do consumidor, podemos pagar R$ 350 pelos mesmos 15 minutos – ou um pouco mais para justificar o “investimento” e receber uma lista de exames que será bancada pelo mesmo plano que paga esmolas aos médicos. Mas cuidado: dependendo dos exames, senha, fila, auditoria, culpa do sistema, atendente uniformizada pior remunerada do que você e que te olha com cara de misericórdia.

O programa Mais Médicos não tem nada a ver com a origem dos profissionais, para um paciente que nada tem. Ele somente expôs o que não queremos ver, a podridão que permeia as relações entre Governo e população, governo de todas as camisetas, caro amigo que julga um grupo corrupto e os demais limpinhos. Não vivemos num filme de super-heróis baseados em histórias em quadrinhos.

O Mais Médicos coloca na vitrine – com 8 mil profissionais – o quanto somos vários países em um só. Vários países na sua cidade. Falta saúde digna de seres humanos, com seres humanos e para seres humanos na cidade onde você mora. No mesmo bairro que você reside. Do outro lado da rua.

As pessoas não precisam de médicos cubanos. Elas precisam de médicos, assim como precisam de outros tipos de serviços públicos. Não é preciso andar tão longe. O buraco da saúde pública está no posto há uma quadra e meia da minha casa. Da sua, caro leitor, a variação da distância não o deixará cansado do passeio que nem podemos chamar de caminhada.

Este texto não é para aqueles que ficarão sem os médicos e que podem morrer de diarreia, infecção urinária e outros problemas medievais. Este texto é para você, leitor, que queima dinheiro em impostos e se vê como privilegiado porque paga para esperar por três meses por consulta. Contraditório, não? Sim, como nossas ações diante do que deveria ser feito neste país.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Resistir é legítimo!


Marcus Vinicius Batista

Os apaziguadores podem ser sujeitos perigosos. O perigo mora na ambiguidade de suas atitudes e como elas podem usadas pelos lados do balcão (sempre mais de dois). A turma do deixa disso pode pecar pela ingenuidade, vestida de Poliana enquanto um dos lados ladra e ladra no limite da agressão.

O pacifismo, quando mal intencionado, mascara a crueldade, camufla as intenções de enfraquecer quem pensa e age diferente, vendendo e comprando a ideia de que todos os envolvidos estão de bandeira branca erguida. Na verdade, bandeira que encobre o desejo por sangue alheio daqueles que incentivam a falsa palavra de paz.

Independentemente do que carregam atrás do palco, os apaziguadores acabaram, no passado recente, por comprar um discurso distorcido de quem virou situação pelo voto, antes pelos conchavos, na política brasileira. Os mensageiros da paz engoliram a ideia que resistir significa, no automático, torcer contra, pensar que quanto pior, melhor, expelir ranhetice, não saber perder. De alguns, pode ser. De todos, é se sentar na infantilidade generalizada.

Esta postura esconde, de maneira voluntária ou não, uma série de pontos. O autoritário deseja, em todos os níveis, ser a única voz. O autoritário goza ao som das próprias notas, sem ruídos, sem interferências, sem contestações. Resistir é mostrar a ele que a voz pode ter vários timbres, diversos autores, inúmeros instrumentos. A resistência aponta para a mudança de repertório com alguma influência de todos os músicos da orquestra, e não exclusivamente do maestro.

O segundo ponto é a própria existência da democracia em si. A democracia representa o regime da maioria e um governo só cresce, só se mostra efetivo quando conversa e ouve, de fato, todos que se sentam à mesa. Resistir pode elevar o nível do debate, apontar novos ângulos, olhar novas perspectivas que não podem ser esquecidas por quem se senta à cabeceira da mesa e hoje dá as cartas.

Resistir é fazer oposição. E fazer oposição é diferente de ser do contra. O ser do contra, cedo ou tarde, se esvazia no próprio discurso oco, sem ideias oxigenadas, sem propostas que arejem o ambiente político. A resistência nasce até com o risco de ser plagiada, quando o poder não sofre da arrogância cega da tirania. O poder inteligente é capaz de aproveitar os questionamentos da oposição igualmente sagaz, nem que seja com o objetivo maquiavélico de tornar seus adversários figuras decorativas.

Resistir é sinônimo de liberdade, de livre trânsito político, de pensar na coletividade, de escapar do destino de repetir mensagens superficiais a serem ruminadas pela manada. Resistir é ser livre para escolher caminhos de proteção contra os excessos do poder constituído, exercitar a fiscalização, vigiá-lo de perto para que não confunda liberdade com ausência de limites, equívoco que resulta em violências de todas as ordens.

A resistência não tem cor de partido derrotado nem cheiro de sigla contaminada pela mosca azul que voa nos palácios dos acordos, porcentagens e dinheiro vivo guardados em todos os buracos do corpo humano e institucional. Resistir é ecumênico, inclusos os que votaram no próximo ocupante da cadeira, caso ele e sua turma decidam pela estrada das patotas, das panelinhas, dos amigos dos amigos. A resistência veste a toga não para se beneficiar, mas para indicar que governar significa mais do que projeto de poder pessoal ou de um grupo.

Resistir é política saudável. Sem contraponto, a democracia adoece, as instituições balançam as pernas, os donos do poder se embriagam sem que ninguém tenha força para fazê-los contornar alucinações e delírios de grandeza. A resistência pode ser o remédio para a soberba política, para o complexo de Deus (ou o caráter messiânico) que acomete e acometeu muitos “pais” da República brasileira.

Os apaziguadores, quando pedem que a resistência desapareça, se esquecem de um ponto vital: quem é situação hoje foi ou pode ter sido oposição ontem. Quem estará no poder amanhã compôs os quadros da oposição agora há pouco ou ontem. Resistir é parte da democracia. Sem ela, temos tirania. Sem resistência, caminhamos sem freios para o totalitarismo.

Nele, o pelotão de fuzilamento atira na verdade, no diálogo, no debate, no pensamento crítico, na contestação, não exatamente nesta ordem de corpos ao solo. A lista de cadáveres inclui os que quiseram costurar panos quentes.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O juiz


Marcus Vinicius Batista

O maior humanista que conheci tem cerca de 85 anos. É um sujeito de hábitos, entre eles, estudar todos os dias. Ler, escrever, dialogar, incentivar a produção de conhecimento alheio. Sou fruto desta frase.

Quando discordamos, ele sempre me presenteia com ponderações, com análises – conceito diferente de opinião -, com sugestões de textos, links ou outras fontes de informação que possam reforçar a conversa entre nós. Jamais partiu para a desqualificação pessoal. Jamais se colocou numa posição de superioridade ou discursou em tom professoral. Sempre me ensinou sem nunca me dar aula.

Como um humanista, ele sempre entendeu que o amor pelo conhecimento nunca se coloca acima dos homens. Que os homens necessitam do conhecimento a favor de si como coletividade, nunca como individualismos. Ajudou muitos em momentos difíceis, formou inúmeros em contextos iniciais de suas vidas, orientou quem ansiava por aprendizagem, inclusive aqueles que o utilizaram como trampolim. Ossos do ofício. Sedução pela utopia filosófica, talvez.

Este humanista foi juiz de Direito. Desculpe, é, pois não se trata de uma questão de estar, de almejar saltos vantajosos ou oportunos. Ele chegou no alto da hierarquia do Poder Judiciário do Estado de São Paulo e ali se aposentou. Sempre por méritos próprios, nunca por conchavos, acertos ou trocas de favores. Estudou como um condenado à prisão perpétua para concursos, inclusive enquanto criou cinco filhos ao lado de uma mulher de visão, fibra e postura semelhantes. Todos, em sua casa, souberam compreender o valor que se deve dar para a construção do pensamento próprio. Sou testemunha ocular.

Este juiz nunca desejou os holofotes. Nunca se envolveu em polêmicas pela imprensa, concedeu entrevistas coletivas para absorver os louros de uma decisão judicial ou posou para fotos com políticos em eventos de cunho esquisito.

Como juiz, lutou para se aproximar da isenção e consistência máximas, da neutralidade, consciente de que tais termos são falhos e limitados, mas que devem ser perseguidos com obsessão para se aproximar de uma sociedade menos desigual, mais equilibrada, mais justa (com o perdão do trocadilho).

Este juiz jamais tentou interferir em decisões do Poder Legislativo feito deputado ou agir como substituto eventual do Poder Executivo. Conhecia suas fronteiras e atribuições e atuava com a distância de quem é responsável por definir, a cada canetada, os rumos da biografia de outra pessoa. Sempre foi politizado, justificou suas escolhas em âmbito privado, mas se esquivou de maneira obsessiva da política partidária e das tentações dos corredores dos palácios.

Ele escreveu livros (ainda o faz), incansável na busca do entendimento do humano. Sempre repudiou, óbvio dizer, a corrupção. Curioso quase patológico, estudou tão fundo o tema que produziu um livro de 600 páginas. Coincidência ou não, a obra foi editada por uma editora portuguesa, não por estas bandas.

Ele falhou diversas vezes como qualquer sujeito, na vida cotidiana. Cultivou defeitos e manias como todos nós e tentou revê-los na velhice, em exercícios de autorreflexão. Autorreflexão porque a leitura de homem como ser biopsicossocial e espiritual estava incompleta até pouco tempo.

A percepção da incompletude só veio aos 75 anos, quando quebrou resistências internas, descobriu a Psicanálise e se sentou na poltrona dos pacientes em terapia. “Por que não descobri isso antes?”, me perguntou entusiasmado, certa vez, num restaurante.

Na última vez que nos encontramos, não podemos conversar muito. Ele comprou meu livro novo. O anterior, adquiriu pela terceira vez. Dei risada, autografei e perguntei:

“O senhor sabe que comprou pela terceira vez?”

“Não tem problema. Vou dar de presente.”

Dois de seus filhos foram para o mundo jurídico. Outros dois foram para a Saúde. O mais novo milita na Educação. Todos admiráveis pela politização, senso de Justiça, caráter e decência no trato com o humano. Repetem, no cotidiano, as qualidades expostas acima, não como mérito, como obrigação inerente às relações humanas.

O humanista mais importante que conheci deixou de ser professor há uns dez anos. Quando perguntei o motivo, ele me disse estar cansado. Cansado das pequenas corrupções, assim vistas como menores no ambiente institucional. Cansado dos plágios, das negligências, da política provinciana e feudal em muitos ambientes do Ensino Superior.

Ele preferiu estudar em casa, aprender sempre, escrever quando possível. “Estou aprendendo húngaro”, me contou há quatro anos. Era seu décimo idioma, na minha contagem, pois nunca o vi se gabar disso, sequer contabilizar em público. Achei desnecessário perguntar.

Este juiz, cujo nome preservo pelas óbvias motivações descritas ao longo deste texto, nunca quis ser celebridade. Nunca cortejou lado. Jamais seria ministro. O humanista não fez ou faz política partidária. Ele tem a alma de um juiz.