
Marcus Vinicius Batista
Os apaziguadores podem ser sujeitos perigosos. O perigo mora na ambiguidade de suas atitudes e como elas podem usadas pelos lados do balcão (sempre mais de dois). A turma do deixa disso pode pecar pela ingenuidade, vestida de Poliana enquanto um dos lados ladra e ladra no limite da agressão.
O pacifismo, quando mal intencionado, mascara a crueldade, camufla as intenções de enfraquecer quem pensa e age diferente, vendendo e comprando a ideia de que todos os envolvidos estão de bandeira branca erguida. Na verdade, bandeira que encobre o desejo por sangue alheio daqueles que incentivam a falsa palavra de paz.
Independentemente do que carregam atrás do palco, os apaziguadores acabaram, no passado recente, por comprar um discurso distorcido de quem virou situação pelo voto, antes pelos conchavos, na política brasileira. Os mensageiros da paz engoliram a ideia que resistir significa, no automático, torcer contra, pensar que quanto pior, melhor, expelir ranhetice, não saber perder. De alguns, pode ser. De todos, é se sentar na infantilidade generalizada.
Esta postura esconde, de maneira voluntária ou não, uma série de pontos. O autoritário deseja, em todos os níveis, ser a única voz. O autoritário goza ao som das próprias notas, sem ruídos, sem interferências, sem contestações. Resistir é mostrar a ele que a voz pode ter vários timbres, diversos autores, inúmeros instrumentos. A resistência aponta para a mudança de repertório com alguma influência de todos os músicos da orquestra, e não exclusivamente do maestro.
O segundo ponto é a própria existência da democracia em si. A democracia representa o regime da maioria e um governo só cresce, só se mostra efetivo quando conversa e ouve, de fato, todos que se sentam à mesa. Resistir pode elevar o nível do debate, apontar novos ângulos, olhar novas perspectivas que não podem ser esquecidas por quem se senta à cabeceira da mesa e hoje dá as cartas.
Resistir é fazer oposição. E fazer oposição é diferente de ser do contra. O ser do contra, cedo ou tarde, se esvazia no próprio discurso oco, sem ideias oxigenadas, sem propostas que arejem o ambiente político. A resistência nasce até com o risco de ser plagiada, quando o poder não sofre da arrogância cega da tirania. O poder inteligente é capaz de aproveitar os questionamentos da oposição igualmente sagaz, nem que seja com o objetivo maquiavélico de tornar seus adversários figuras decorativas.
Resistir é sinônimo de liberdade, de livre trânsito político, de pensar na coletividade, de escapar do destino de repetir mensagens superficiais a serem ruminadas pela manada. Resistir é ser livre para escolher caminhos de proteção contra os excessos do poder constituído, exercitar a fiscalização, vigiá-lo de perto para que não confunda liberdade com ausência de limites, equívoco que resulta em violências de todas as ordens.
A resistência não tem cor de partido derrotado nem cheiro de sigla contaminada pela mosca azul que voa nos palácios dos acordos, porcentagens e dinheiro vivo guardados em todos os buracos do corpo humano e institucional. Resistir é ecumênico, inclusos os que votaram no próximo ocupante da cadeira, caso ele e sua turma decidam pela estrada das patotas, das panelinhas, dos amigos dos amigos. A resistência veste a toga não para se beneficiar, mas para indicar que governar significa mais do que projeto de poder pessoal ou de um grupo.
Resistir é política saudável. Sem contraponto, a democracia adoece, as instituições balançam as pernas, os donos do poder se embriagam sem que ninguém tenha força para fazê-los contornar alucinações e delírios de grandeza. A resistência pode ser o remédio para a soberba política, para o complexo de Deus (ou o caráter messiânico) que acomete e acometeu muitos “pais” da República brasileira.
Os apaziguadores, quando pedem que a resistência desapareça, se esquecem de um ponto vital: quem é situação hoje foi ou pode ter sido oposição ontem. Quem estará no poder amanhã compôs os quadros da oposição agora há pouco ou ontem. Resistir é parte da democracia. Sem ela, temos tirania. Sem resistência, caminhamos sem freios para o totalitarismo.
Nele, o pelotão de fuzilamento atira na verdade, no diálogo, no debate, no pensamento crítico, na contestação, não exatamente nesta ordem de corpos ao solo. A lista de cadáveres inclui os que quiseram costurar panos quentes.

Marcus Vinicius Batista
O maior humanista que conheci tem cerca de 85 anos. É um sujeito de hábitos, entre eles, estudar todos os dias. Ler, escrever, dialogar, incentivar a produção de conhecimento alheio. Sou fruto desta frase.
Quando discordamos, ele sempre me presenteia com ponderações, com análises – conceito diferente de opinião -, com sugestões de textos, links ou outras fontes de informação que possam reforçar a conversa entre nós. Jamais partiu para a desqualificação pessoal. Jamais se colocou numa posição de superioridade ou discursou em tom professoral. Sempre me ensinou sem nunca me dar aula.
Como um humanista, ele sempre entendeu que o amor pelo conhecimento nunca se coloca acima dos homens. Que os homens necessitam do conhecimento a favor de si como coletividade, nunca como individualismos. Ajudou muitos em momentos difíceis, formou inúmeros em contextos iniciais de suas vidas, orientou quem ansiava por aprendizagem, inclusive aqueles que o utilizaram como trampolim. Ossos do ofício. Sedução pela utopia filosófica, talvez.
Este humanista foi juiz de Direito. Desculpe, é, pois não se trata de uma questão de estar, de almejar saltos vantajosos ou oportunos. Ele chegou no alto da hierarquia do Poder Judiciário do Estado de São Paulo e ali se aposentou. Sempre por méritos próprios, nunca por conchavos, acertos ou trocas de favores. Estudou como um condenado à prisão perpétua para concursos, inclusive enquanto criou cinco filhos ao lado de uma mulher de visão, fibra e postura semelhantes. Todos, em sua casa, souberam compreender o valor que se deve dar para a construção do pensamento próprio. Sou testemunha ocular.
Este juiz nunca desejou os holofotes. Nunca se envolveu em polêmicas pela imprensa, concedeu entrevistas coletivas para absorver os louros de uma decisão judicial ou posou para fotos com políticos em eventos de cunho esquisito.
Como juiz, lutou para se aproximar da isenção e consistência máximas, da neutralidade, consciente de que tais termos são falhos e limitados, mas que devem ser perseguidos com obsessão para se aproximar de uma sociedade menos desigual, mais equilibrada, mais justa (com o perdão do trocadilho).
Este juiz jamais tentou interferir em decisões do Poder Legislativo feito deputado ou agir como substituto eventual do Poder Executivo. Conhecia suas fronteiras e atribuições e atuava com a distância de quem é responsável por definir, a cada canetada, os rumos da biografia de outra pessoa. Sempre foi politizado, justificou suas escolhas em âmbito privado, mas se esquivou de maneira obsessiva da política partidária e das tentações dos corredores dos palácios.
Ele escreveu livros (ainda o faz), incansável na busca do entendimento do humano. Sempre repudiou, óbvio dizer, a corrupção. Curioso quase patológico, estudou tão fundo o tema que produziu um livro de 600 páginas. Coincidência ou não, a obra foi editada por uma editora portuguesa, não por estas bandas.
Ele falhou diversas vezes como qualquer sujeito, na vida cotidiana. Cultivou defeitos e manias como todos nós e tentou revê-los na velhice, em exercícios de autorreflexão. Autorreflexão porque a leitura de homem como ser biopsicossocial e espiritual estava incompleta até pouco tempo.
A percepção da incompletude só veio aos 75 anos, quando quebrou resistências internas, descobriu a Psicanálise e se sentou na poltrona dos pacientes em terapia. “Por que não descobri isso antes?”, me perguntou entusiasmado, certa vez, num restaurante.
Na última vez que nos encontramos, não podemos conversar muito. Ele comprou meu livro novo. O anterior, adquiriu pela terceira vez. Dei risada, autografei e perguntei:
“O senhor sabe que comprou pela terceira vez?”
“Não tem problema. Vou dar de presente.”
Dois de seus filhos foram para o mundo jurídico. Outros dois foram para a Saúde. O mais novo milita na Educação. Todos admiráveis pela politização, senso de Justiça, caráter e decência no trato com o humano. Repetem, no cotidiano, as qualidades expostas acima, não como mérito, como obrigação inerente às relações humanas.
O humanista mais importante que conheci deixou de ser professor há uns dez anos. Quando perguntei o motivo, ele me disse estar cansado. Cansado das pequenas corrupções, assim vistas como menores no ambiente institucional. Cansado dos plágios, das negligências, da política provinciana e feudal em muitos ambientes do Ensino Superior.
Ele preferiu estudar em casa, aprender sempre, escrever quando possível. “Estou aprendendo húngaro”, me contou há quatro anos. Era seu décimo idioma, na minha contagem, pois nunca o vi se gabar disso, sequer contabilizar em público. Achei desnecessário perguntar.
Este juiz, cujo nome preservo pelas óbvias motivações descritas ao longo deste texto, nunca quis ser celebridade. Nunca cortejou lado. Jamais seria ministro. O humanista não fez ou faz política partidária. Ele tem a alma de um juiz.

Marcus Vinicius Batista
Caro eleitor punitivo,
Com a vida voltando ao normal e o novo presidente agindo dentro de sua normalidade, você acreditou que poderia se despir da fantasia social de domingo. Não precisaria mais ser eleitor, cumpriu sua obrigação, e era hora “de deixar o homem trabalhar”.
Você conseguiu o que desejava e é seu direito. É importante dizer, não a você, mas aos truculentos, que é direito. Só que há uma distância entre colaborar com a derrota do adversário – rejeitado por você, não por Deus! – e evitar as discussões cotidianas sobre política.
Numa eleição sem precedentes, caro amigo, política ainda será rastilho de pólvora por algum tempo. Ainda bem. Você não pregou que era fundamental acompanhamento contínuo de quem exercita o poder com mandato. Democracia é assim. Assim talvez o seja para ti.
Sei que você se enxerga como uma pessoa moderada, típica da classe média, pagadora de impostos, trabalhadora em excesso, horrorizada com tanta corrupção. Não questiono este discurso, e creio que seja uma postura, de fato. Você é meu espelho, você mora em meu microcosmo.
A diferença entre nós é o fardo que colocou no seu lombo. Agora que a raiva começa a se diluir no dia-a-dia, você me dá sinais de que o voto emocional, o voto de indignação, o fez simbolicamente violento. Estender o próprio limite, antes desconhecido, pode machucar. Isso talvez o deixe constrangido, comportamento que transparece nas entrelinhas das rodas de conversas, das discussões do intervalo de trabalho, nos elevadores e até no banheiro.
Diante desta tarefa rara, você busca escapar das conversas sobre política. Elas tocam geralmente nos atos do presidente a ser empossado, na sua equipe, no seu palavrório de campanha, nas especulações de nomes de caráter e gosto duvidosos. Você não se manifesta, abaixa a cabeça, sorri de canto de boca. Mea culpa seria necessário? Não sei, emoção e razão caminham juntas dentro de nós.
Como se considera um sujeito ponderado, avesso à desqualificação do outro, equilibrado nas opiniões e nos atos, você evita o argumento falho, mas real, que justifica seu voto. Por que falar do perdedor? Um mérito no pós-jogo. Ele é passado no Executivo federal; por sinal, há dois anos, embora suas heranças povoassem seus pensamentos por semanas até a decisão de clicar outro número na urna eletrônica.
Quem sabe o silêncio calculado mascare a dificuldade em encontrar argumentos consistentes no novo? Você pensou nisso antes? Defender sua escolha, sem cair na tentação de atacar o outro?
Lembre-se: a escolha foi seu direito. Mas assinou um papel pelas razões erradas? Não jogue nas costas do tempo, não o utilize como solução do destino. O tempo é volúvel por natureza, perceptível de forma particular por cada um de nós.
Sua incerteza é o preço do voto útil, do voto que guilhotina o réu nosso de cada eleição. Assim, seu silêncio é justificável. Na dúvida entre a sanidade e a confissão de obsessão, melhor ficar em pose monástica, com sorriso de Dalai Lama.
Você votou também pela dúvida. E se apoia nela quando se encoraja em participar da conversa. O benefício da dúvida para o novo presidente. Você se mostra um sujeito otimista, mas que legisla em causa própria, quase um Poliana.
“Vamos esperar”, você diz.
“Vamos torcer”, você reforça.
“Ele não vai fazer tudo o que falou”, você teme.
“Deus vai nos ajudar”, você apela, sem reconhecer que transfere responsabilidade.
Certamente, o Altíssimo tenha ocupações demais para nos informar, outra vez, que não nasceu no Brasil. Qualquer argumento morre de inanição depois de cinco séculos de violência.
Você caiu em si. Você é diferente daqueles que acompanharam Bolsonaro desde o início da campanha. Estes eleitores não são da mesma crença que você. Eles têm fé no homem. Compartilham de seus valores, muitos até se expõem, inclusive de forma violenta, em nome Dele. São convertidos, parte do processo.
Você votou por descrença e agora, nos olhares, na fala um tom abaixo do normal, na saída à francesa da sala, indica que a racionalidade faz com que seu medo mude de endereço. Você tem medo do que fez? O liquidificador de sentimentos é tão previsível nesta altura quanto foi seu voto. Só que a raiva, ensina a cultura popular, é o veneno que tomamos enquanto desejamos a “desgraça” do outro.
Como Deus virou água na boca dos políticos, só te resta reconhecer os pecados, caso os julgue deste modo. Nunca vou apontar o dedo para ti. O “te avisei” será seu, se houver a dor única do arrependimento.
Compreendo seu sofrimento, que se parece com o meu, ao ver a política se vestir de guerra, com suas propagandas, derrubando soldados feito pássaros pelas mãos de um menino inconsequente e ressentido, armado com uma espingarda de chumbinho.
A má notícia é que ele não governará para você. Ele deveria governar para todos, mas os primeiros passos indicam que o caminho da seletividade está definido. Não silencie. Dialogue. Ouça, acima de tudo. Proponha. Acompanhe de perto.
Estes são os primeiros degraus para quem fechou os olhos com raiva e agora percebeu que talvez tenha falado demais. Ou apertado um botão vermelho, o da emergência, não o do partido-gatilho de obsessões eleitorais.

Marcus Vinicius Batista
O funcionário do supermercado fechou o caixa e virou a placa que informava a suspensão do atendimento. Um consumidor, na faixa de 45 a 50 anos, ignorou o aviso e começou a colocar suas compras no balcão.
O funcionário, de maneira educada, pediu:
— Senhor, por favor, coloque as mercadorias no caixa ao lado. Aqui está fechado e, se o senhor colocar as compras, outros clientes vão achar que o caixa está aberto e vão formar fila.
— Vou colocar minhas compras sim e você vai me atender!, o cliente retrucou aos gritos
— Sinto muito, mas eu tenho direito a um intervalo para ir ao banheiro. Aquela moça vai me substituir e, daqui a pouco, haverá atendimento.
O rapaz, negro e homossexual, virou o corpo para deixar o caixa, quando ouviu o senhor dizer, no mesmo tom alto, pelas costas:
— Ah, a moça vai fazer xixi sentada? Olha, gente, a moça vai fazer xixi sentada.
— Vou sim, senhor, e o senhor não tem nada a ver com isso.
Todos os clientes que estavam nas filas aos lados do caixa ouviram a conversa. Apenas uma mulher respirou fundo e sussurrou: “Já começou!” Todos os homens da fila permaneceram em silêncio.
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Enquanto o próximo presidente da República oscila entre as bravatas de campanha e os anúncios iniciais sobre ministérios, seus súditos voluntários começam a colocar as mangas e a irracionalidade de fora. Há vários registros de casos de violência, entre ameaças, atos caricaturais na Internet e registros em delegacias.
A ressaca eleitoral ainda não se dissipou e, mesmo quando acontecer, será difícil conter os comportamentos agora explícitos de quem se sente autorizado, legitimado pelo líder político em suas palavras de ordem contra quem não se encaixa em seu estereótipo de menino valentão.
Os agressores, em todos os episódios que testemunhei, se intitulam cidadãos de bem (voltarei neste conceito em outro texto). Consideram-se, na sua estupidez de baixa cidadania e certezas dogmáticas, legítimos representantes acima de lei e da ordem. Querem, na verdade, privilégios dados aos escolhidos (ou mantê-los), seja pelo discurso irresponsável dos políticos, seja por Deus – quem seria? – que tem seu nome surrado em vão por gente que dá a impressão de cultuar os princípios daquele que foi expulso do paraíso.
A eleição serviu, entre outras coisas, para nos esfregar na cara o quanto somos uma população que chafurda em violência cotidiana, em preconceitos, em intolerância, em mesquinharias, na capacidade de enxergar o outro como diferente, como ser humano. Gente que defende a morte de gente apenas por ser gente...diferente. E olha que, muitas vezes, a diferença se dá somente na vida pública, na máscara do personagem.
O novo presidente tem a obrigação moral de reduzir sua valentia atrás das telas e apaziguar aqueles que pregam truculência em seu nome. Se já é um irresponsável quando faz apologias violentas, será cúmplice quando se sentar na cadeira em janeiro. O problema é esperar uma postura distinta, além dos limites éticos e intelectuais que talvez Bolsonaro não possa nos entregar.
Em vários ambientes, vejo discursos de união, de redução de danos, de expectativas positivas para o novo Governo. Soam mais como justificativas para o cheque branco assinado em vez leituras concretas. Até porque Bolsonaro se elegeu sem pouco propor. Estamos acompanhando seus interesses mais explícitos na economia e na política palaciana nos últimos dois dias, muito pouco para atender 55 milhões de pessoas, no mínimo.
O discurso apaziguador vem, na maioria, daqueles que votaram em outros candidatos e fizeram a escolha por Bolsonaro para punir o Partido dos Trabalhadores. Mas esta fala está se misturando com fatos previsíveis.
O preconceito e a selvageria, em nome de Deus, da família ou quaisquer outras razões cínicas e hipócritas de muitos que não as praticam (conheço tantos assim!), saíram da sala de jantar e das mesas de boteco. Começam a se transformar em ações, que expõem a frágil fronteira entre a civilidade e a barbárie de quem cansou de interpretar o papel de tolerância, de ser humano.
O ciclo de estupidez só ficará completo quando estes sujeitos, muitos de classe média ou baixa e ausentes de crítica política, feito crianças numa democracia cheia de falhas, perceberem que o Estado truculento e seus súditos são míopes também para os “cidadãos de bem”. Que ser eleito significa muito mais do que esbravejar, de forma covarde, na fila do supermercado, como se pagar as compras o tornasse uma criatura acima das demais. Um feitor do “olha com quem está falando” que sonha em viver os tempos áureos das chicotadas nos moradores da senzala.
O feitor, mal sabe ele, só distribui lambadas porque o senhor dos escravos não gosta de sujar as mãos. Um dia, ele se cansa e troca a mão que faz sangrar. E envia, sem escalas, o feitor de volta à senzala.
O senhor, neste momento, está mais preocupado em fazer campanha, enquanto joga a conta nas costas de Deus e flerta com seus falsos profetas.

Marcus Vinicius Batista
Eu não rezo. Respeito quem o faz e crê nas respostas. Tenho minha fé, nunca a impus a sujeito algum, mas desconfio que meu Deus talvez seja diferente do de muitas pessoas. Meu Deus não se mete em política eleitoral. Meu Deus não agride adversários. Meu Deus não acende velas para maus defuntos, não importa a camiseta que vista, o líder religioso que fala em nome Alheio, edite textos sagrados ao bel prazer (e dinheiro) e abrace o candidato do versículo da vez.
A decisão das urnas neste domingo não é uma questão de oração. Vejo como uma posição a ser vista com o melhor dos olhares racionais. É preciso pensar, refletir sobre o cenário, mesmo que não alcancemos uma conclusão definitiva, melhor assim, aprender que política é bem mais do que gritar em rede social ou tirar sarro do outro como se eleição fosse clássico de domingo.
Aos eleitores de Bolsonaro, me permitam uma sugestão: tentem amenizar ou se libertar da obsessão pelo PT. A derrota foi punição suficiente para o partido. Caso contrário, só se confirmará a impressão da campanha eleitoral: retirar o PT do poder – algo já feito há quase dois anos – e colocar qualquer sujeito no lugar. Mais do que assinar um cheque em branco, seria também fornecer a senha bancária. Por favor, comemorem a vitória em vez de celebrar exclusivamente a derrota do adversário.
Aos eleitores do Haddad, outra singela dica: unam-se como adeptos de políticas sociais decentes; briguem por tolerância nas práticas cotidianas, não somente na retórica; e deixem o PT cuidar das suas próprias feridas. O Partido mereceu a lambada e tem a obrigação de limpar a casa. Ultrapassar o limite da promessa e provar que é capaz de se reinventar. Ser oposição é a chave do recomeço.
O novo presidente pode ser tudo, menos burro. Ele encabeçou uma estratégia de marketing brilhante para vencer, marcada pela alimentação da fantasia em torno de si próprio. Mas ele sabe que possui uma maioria apertada e boa parte está desconfiada da decisão que tomou. Basta ouvir as falas mais serenas de “vamos ver”, “o futuro dirá” etc. São frases condicionantes e vagas diante da desinformação do rumo a ser tomado. Medo de que ele transfira a senha do banco para terceiros?
Não podemos ser ingênuos de acreditar que o governo Bolsonaro será fiscalizado na unha. Muitos que prometem isso são os mesmos que ignoraram as trapalhadas do atual presidente depois do Fora Dilma se concretizar. Normal vindo de olhares pouco comprometidos e infantilizados sobre o que é fazer política. Não é preciso cobrar de ninguém que seja cidadão exemplar. Muitos se contentam com o título hipócrita de “cidadão de bem”. Sejamos nós exemplares.
Espero que os ativistas se mantenham unidos, ativos de verdade, além da contaminação dos discursos eleitoreiros que vez em quando renascem. Acabou a eleição. É hora de defender quem foi massacrado pela verborragia do novo presidente. Temer? O remédio é se organizar, dialogar, estabelecer estratégias, fortalecer e cobrar das instituições que ainda fazem o Brasil um país teoricamente democrático.
Somos humanos. Erramos. Escolhemos. Aprendemos. Refazemos. Tentamos. Observamos. Corrigimos. Refletimos. Sentimos. Acima de tudo, respeitamos. E erramos novamente. E corrigimos outra vez. Humanos.
Perdoem-me: Deus não tem a nada ver com isso. A decisão foi tomada por homens e mulheres, fiéis às suas consciências. Sem determinismos transcendentais, assumam suas ações, abracem suas responsabilidades como cidadãos e fiscalizem o novo Governo. Afinal, o voto foi seu! E não era pra valer?

Marcus Vinicius Batista
Caro Fernando,
Quando passar a ressaca da festa, uma virada histórica sem precedentes, tenho certeza de que você vai colocar a mão na cabeça e pensar: venci de que maneira? E o que fazer agora? Como conquistar a outra metade que me rejeitou com veemência?
Você, certamente, não terá uma longa lua-de-mel com a vitória. A fiscalização será acirrada, ao menos nas primeiras semanas do seu governo. A curto prazo, haverá truculência, possíveis protestos, violência, nada incoerente do trajeto percorrido por esta campanha eleitoral, suja, sem debates, com raras propostas, inclusive da sua parte, convenhamos.
Muitos vão te acusar de ser um fantoche. O adversário, você sabe, o intitulava “poste”. É um ponto a ser contestado no poder. Assim como foi feito na Prefeitura de São Paulo, cidade territorialmente favorável ao quase nanico PSDB.
Espero que você reaja, como muita gente escreveu, conversou, bradou, pregou. Ao se sentar na cadeira do Palácio do Planalto, desejo que a criatura se volte contra o criador. Ou, pelo menos, ande com as próprias pernas. Você não estaria onde se encontra sem o apoio ou a chancela de Lula.
No entanto, até para ser decente com a figura de pai que tanto Lula gosta de cultivar, é preciso inseri-lo no lugar adequado da História. Lula é um líder, independentemente de seus atos, mas é a hora de pegar o boné. Não quero mártir sonhando com a capa de super-herói. Desejo um líder que saiba a hora de sair de cena e resolver seus próprios fantasmas.
Fernando, você tem a oportunidade única – com o poder em mãos – de reabilitar seu partido. Terceira chance, o que poucas pessoas recebem na vida. Limpe a casa. Estimule a punição de quem pecou além dos limites. Isso reforçaria a tais instituições, tão defendidas por você e por outros para manter a democracia de pé.
O PT te levou ao segundo turno. O PT quase provocou sua derrota. Você sabe o quanto o voto punitivo (anti-autoritário) colaborou com sua vitória. Dois candidatos com mais de 40% de rejeição. Foi uma eleição sui generis.
Não permita que os demais caciques rifem o partido outra vez. O PT precisa voltar a fazer jus ao nome que compõe essa sigla tão manchada pelos seus “companheiros”. É, creio eu, a última oportunidade de dedetizar um partido que passou por tantos buracos em quase quatro décadas. Que quase fechou as portas por causa do fedor exalado por uma minoria.
Fernando, você tem a obrigação de ser um presidente acima de todos. Todos quem? De saída, as lideranças que tentam sobreviver jogando e ditando cartas nas prisões. O PT não é apenas eles. O PT é aquele militante que vota com esperança. O PT é aquele que mudou de voto porque se decepcionou e ouviu tantos “eu te disse” depois de testemunhar a arrogância política de quem vislumbrou projetos de poder, e não de governo.
Tenho ciência de que você é um sujeito preparado para o cargo. Sei que, no máximo, saiu chamuscado do incêndio que corroeu aqueles que ajudaram a te construir. Mas é fundamental provar, inclusive para quem defende limpeza étnica, social e um monte de outros aspectos que justificam violência verbal, psicológica e física, que a democracia apanhou e segue de pé.
Não haverá outra oportunidade, caro presidente. Como professor, aprenda com os erros seus e de seus colegas, dialogue em vez de ser professoral, a arrogância dos didáticos, ensine seus adversários. Governe para todos e resista aos peixes podres que nadam sorridentes pelos corredores do Congresso Nacional. Vá além dos muros do Partido dos Trabalhadores.
Boa gestão! Um abraço!

Marcus Vinicius Batista
Caro Jair,
Não acho que o senhor seja o melhor nome para a Presidência do país onde nasci e resido. O senhor considera uma informação irrelevante, porém é preciso localizar meu lugar de fala. Não creio que o senhor esteja preparado para exercer o cargo ao qual se candidatou, mas tenho consciência de que o presidente, como figura política, é capaz de montar uma equipe que reduza danos ou possibilite avanços.
Imagino que, na festa da vitória, aconteceram muitos tapinhas nas costas, muitos parabéns, muitas promessas, muitos sorrisos, muitas outras coisas mais. Presidente, sinto dizer: a lua-de-mel será também curta para o senhor, como seria para seu adversário, caso ele tivesse vencido.
A lua-de-mel será restrita por razões diferentes. Sabemos que, entre as mentiras contadas por tantos candidatos, uma delas foi a distância da corrupção de sua candidatura. Não o acuso de coisa alguma, mas seus aliados – ligados em vários níveis a Deus, o Diabo e outros grupos que pulam entre as duas entidades – vão cobrar a conta da festa. E cobram sem pudor, sem misericórdia, rezando até. Assim o fizeram com o partido do seu adversário.
Sabemos também, caro presidente, que sua estratégia de campanha se transformou num caso a ser estudado, discutido – e jamais repetido – na História político-eleitoral. Seus eleitores não te conhecem. Votaram numa fantasia, num personagem construído e alimentado, inclusive pelo senhor, que reforçava o voto punitivo ao PT, a limpeza generalizada, os preconceitos, as pequenas violências cotidianas, o pensamento e as práticas da violência institucional.
O senhor tem total consciência de quanto a facada se tornou o divisor de águas nesta campanha. Jamais defenderia tal ato, mas também repudio o uso indiscriminado do vitimismo que o senhor tanto rechaça. A facada te fez fugir de um debate público, organizado, sobre propostas. Por quê? O que temia? Murchar a candidatura?
Meu maior medo é não ter a menor ideia do que o senhor pretende fazer como presidente. Um programa reduzido e vago – ainda que saibamos que programas são peças ficcionais, mas que insinuam a visão de um político e seu grupo de interesse -, e aparições por telas, tão artificiais e limitantes quanto os discursos que carregam, impostos, sem a chance de contestação, do contraditório, da continuidade da reflexão.
O senhor apostou num eleitor insatisfeito, punitivo em ambos os lados da moeda. Um eleitor que não te quer, quer a ausência do seu adversário, não o homem, e sim o partido, do poder. Um eleitor que acredita – em sua ingenuidade – que retirar um presidente é como expulsar um síndico incompetente na reunião do condomínio, na sexta-feira à noite.
Este eleitor, caro presidente, não te escolheu por ser quem é. Ele te escolheu pelo que o senhor representa. Jair Bolsonaro (falar em terceira pessoa significa um sintoma) é uma mentalidade, uma forma de viver para certas parcelas da sociedade. Se todo político sonha em entrar para a História, aí está a sua boa nova. Mas a que preço?
Nunca se esqueça, caro presidente. O senhor está onde está porque a democracia, ironicamente, permite que se fale contra dela dentro de si mesma. O autoritarismo, também vivido pelo senhor, não. Entre os autoritários, só abrem a boca as patotas, ainda assim cerceadas por sólidos protocolos e hierarquias rígidas. O senhor é um homem de posições rígidas, mesmo que sua biografia indique diversas flexibilidades pessoais. A coerência seria uma qualidade, não?
Presidente, seus novos amiguinhos vão mudar o tom da conversa em breve. Seus eleitores, tenho sérias dúvidas, talvez te cobrem um pouco. Seja pelo voto punitivo, seja pela mesma forma de ver o mundo, seus eleitores só queriam a mudança. Talvez a mudança de país, certamente a mudança de grupo de poder. Será que apostou certo? Será que as sombras não são as mesmas?
Jair, me perdoe, tenho quilos de dúvidas sobre o senhor como presidente. Certeza, quem sabe uma só e ela não precisa ser dita: o teor desta singela e curta carta explica.
Boa gestão! Um abraço!