sábado, 27 de outubro de 2018

Por que perdemos essa eleição? (ou A derrota acima de todos!)



Marcus Vinicius Batista


Conscientes ou em coma induzido, abrimos a Caixa de Pandora nesta eleição. Colocamos para fora – não nasceu hoje nem ontem – nossos piores sentimentos e perspectivas de mundo. Trocamos a chance de aprender com esta campanha pela prisão voluntária de nossas pequenas mesquinharias.

Perdemos a vergonha. O politicamente correto ou a lei mesmo mantinha muita gente com seus preconceitos guardados no fundo da gaveta do armário mais obscuro da casa. Aquele que armazena as tralhas.

Testemunho pessoas pedindo limpeza de outras pessoas, clamando pelo silêncio amordaçado de quem não pensa como elas, defendendo o extermínio absoluto do outro, tão impossível de conviver porque pode representar aquilo que mais se abomina em si próprio.

Perdemos a solidariedade, aquele sentimento que costumamos cultivar quando queremos parecer bons. Adotamos a máscara do cidadão de bem, termo que forma patotas e exclui os diferentes, num maniqueísmo raso (perdoe a redundância, é só para reforçar) que divide o mundo entre bons e maus e dispensa duas das características humanas: a contradição e a imperfeição.

Perdemos pessoas. Desfazemos amizades, ignoramos colegas, ofendemos parentes, esbravejamos em textos, áudios, imagens, histerias pontuais e estruturais. Perdemos pessoas por causa de políticos, que tanto desprezamos. Isso! Perdemos pessoas por sujeitos que viram as costas, convictos da falta de fiscalização, assim que as urnas se apagam. Repito: perdemos pessoas por causa de políticos, muitos deles capazes de nos agredir verbalmente a cada aparição pública.

Perdemos o outro como humano. Deliramos sobre outros sujeitos como se fossem coisas, por causa de suas escolhas, por causa de seus comportamentos individuais. Podemos jogá-los na vala comum, sem identificação, sem passado, sem história, mesmo que a História nos tenha mostrado tanta crueldade e bestialidade em nossos ancestrais.

Fingimos desconhecer o mal que nos habita, com a desculpa esfarrapada de “apenas cumprimos ordens”. Ou porque alguém falou. Ou porque é culpa do sistema. Ou porque só “trabalho” aqui.

Perdemos a capacidade de dialogar. Na nossa arrogância, julgamos sermos politizados só porque falamos de política. Falamos, gritamos, impomos, pouco debatemos, raramente aprendemos. Preferimos ganhar a conversa a qualquer preço, ainda que sacrifiquemos as pessoas ao nosso lado – aquelas que costumam importar.

Talvez façamos isso como ato reflexo dos candidatos que adoramos desde a semana passada. Típico de quem crê que a culpa sempre está no outro corpo. Por que não nos calamos de vez em quando?

Perdemos, como conseqüência, a capacidade de ouvir. Não estamos apenas cegos de ódio, mas surdos diante de qualquer voz que não seja a nossa, que também cacareja, que também digita muito e pouco escreve. O próximo presidente, rezo para que nos escute, deveria implantar um programa gratuito, em caráter nacional, que envolva cursos de Escutatória, conforme pregava Rubem Alves.

Perdemos o valor da verdade. Na hipocrisia e no cinismo de todos nós, adoramos cultuar quem matamos dia após dia. A primeira vítima de uma guerra, como explica o clichê. Não falo das pequenas mentiras cotidianas, mas daquelas que contamos para nós mesmos. Daquelas que minimizamos quando levamos adiante informações caluniosas, argumentos levianos, quando compactuamos com a mentira escancarada, mas dita pelo anônimo, que vai machucar quem não pensa como nós. Estúpidos somos quando nos esquecemos que uma campanha eleitoral se movimenta como bumerangue.

Perdemos a liberdade. Confundimos a ideia de que liberdade de expressão significa o poder de dizer qualquer coisa, sem limites. Rasgamos a liberdade para defender o privilégio de agredir quem não está comigo, como Bush ou Trump em seus olhares belicistas.

A liberdade como prática individualista se chama egoísmo, primo da vaidade. A liberdade sempre será sinônimo de convivência, de ato coletivo. Só seremos livres quando todos o forem. E não enxergamos que defendemos o fim da liberdade justamente porque ... somos teoricamente livres. Teoricamente!

Por contradição, tenho dúvidas: será que perdemos tudo isso mesmo? Então, quando teria sido este escoamento moral pelo ralo da violência? Ou será que apenas rompemos os filtros e agora precisamos descobrir e assumir que somos deste jeito, uma espécie truculenta, selvagem? Francamente, não vejo tanta gente assim fazendo mea culpa.

Desconfio que, como animais, somos menos humanos do que imaginávamos ou editávamos no feliz mundo das redes sociais e das conversas cotidianas.

Se todos perdemos, quem ganhou o jogo sem vencedor?

PT, co-criador de Bolsonaro


Marcus Vinicius Batista

A esquerda brasileira paga o preço pela própria arrogância. Pelo narcisismo político. Pelo egocentrismo de seus líderes. A esquerda, neste caso, é simbolizada pelo seu maior representante nos últimos 35 anos: o Partido dos Trabalhadores. Associar esquerda e PT significa, aliás, dois pontos: 1) esquerda como antítese da direita numa eleição de extremos; 2) esquerda atual está longe de representar a definição ideológica clássica ou a forma de governar. O PT esteve muito mais próximo do centro do que se imagina.

O PT, na figura de seus caciques, desdenhou Bolsonaro. Ignorou o crescimento do fenômeno político e não visualizou nem como miragem o fato de que a extrema direita aprendeu a fazer política eleitoral com a própria esquerda. As críticas de Mano Brown, rechaçada por muitos petistas, são pertinentes e sintetizam o pensamento de vários ideólogos da própria esquerda.

Em janeiro, por exemplo, Bolsonaro oscilava em torno de 8% das intenções de voto. Muitos representantes da esquerda o descreviam como um bufão, como um cavalo paraguaio, que não sobreviveria à corrida eleitoral. Apostavam na repetição da polaridade com o PSDB, que também se apequenou tamanha a quantidade de erros estratégicos de campanha.

O PT foi rifado, em termos institucionais, por suas lideranças. O partido patinou por mais de quatro meses até oficializar Fernando Haddad como candidato, em 11 de setembro. Ele teve pouco mais de três semanas para firmar uma linha mestra de campanha. E pior: ainda luta para se desvencilhar da sombra de quem se coloca como pai novamente.

Usando o futebol como metáfora, compatível com o personagem, Lula jogou com o nome durante boa parte do campeonato. Perdeu o momento de tirar o time de campo, enquanto desejava ser mártir e se colocar acima da história do partido. Em outras palavras, o PT foi o dom que carregou Haddad ao segundo turno, mas poderá ser a maldição que selará uma derrota.

As lideranças, obcecadas por um projeto de poder, e distantes de um projeto de governo, se afastaram da militância, minimizaram sua relevância, passaram a falar somente a língua dos corredores palacianos e acreditaram, após quatro vitórias nas urnas, que não havia necessidade de se reinventar, de renovar nomes. Como Narciso, olharam para o espelho d´água e não perceberam que a mentalidade Bolsonaro – não o homem apenas, mas a forma de pensar, a estrutura moral distorcida – passou por trás delas e aos berros.

O PT perdeu duas vezes a chance de limpar a casa. De se proteger como instituição, de sacrificar parte da sua própria carne. Manteve os órgãos em putrefação, excluiu militantes históricos que questionaram seus líderes e atacou para se defender e ocultar seus esqueletos. Postura adotada no mensalão, repetida na Lava-Jato, insinuada nesta campanha eleitoral.

A esquerda, se pensarmos nos demais partidos, tentou se divorciar do pai falível, mas também não entendeu o século 21. Não compreendeu que precisava se adaptar às novas tecnologias, às novas formas de se comunicar, ao olhar fluído da política e aos novos caminhos de construção e difusão de informações. Cultivou o egocentrismo das reuniões intermináveis, das estratégias utópicas, mas – principalmente – o muro que se ergueu entre as instituições partidárias, seus políticos e a população em geral. Não se sabia mais com quem se conversava. Só com a corte.

A direita representada por Jair Bolsonaro fez política de base adaptada, guardando as devidas proporções. Política de base virtual, por vezes suja e selvagem, mas dentro de um mundo real. Real, mas fora da bolha que envolveu o adversário.

Neste sentido, o baile de marketing político incluiu a cristalização de rótulos infantis como a associação entre PT e comunismo, aproveitando-se de que as redes sociais funcionam como terreno fértil para a fragmentação e a superficialidade de informações. A direita nadou de braçada, armada de intolerância e preconceitos, num modelo anteriormente dominado por ícones e instituições simpáticas à esquerda. A desinformação só fez crescer o bolo belicista.

O PT dá a impressão que descobriu o erro e transmite neste final de corrida eleitoral, nas palavras de Haddad, que pretende comprar material de limpeza e de dedetização. Nenhuma prova concreta até agora. Cedo para dizer.

O problema é que a criatura nunca esteve tão forte como fantasia e mentalidade e, por isso, talvez o PT tenha acordado da soberba tarde demais.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Por que meu voto será nulo





Fernando Rossi*


Quando achava ter chegado ao fundo do poço, redescobri o pré-sal.

Se, em 1989, o então candidato Fernando Collor de Mello surpreendeu o país ao levar em seu programa eleitoral a filha bastarda de Lula para que, entre outros assuntos, acusasse o pai de querer que sua mãe a abortasse, os programas eleitorais de hoje são a prova cabal de que Collor seria, hoje, candidato ao papado.

O termo Fake News tomou o país com a mesma força das pragas do Egito. Parentes e amigos enviam e compartilham, sem checar, os mais diversos absurdos. Sou combatente voraz (e feroz). A praga é tamanha que não conseguimos ouvir propostas.

Mas, afinal, quem as ouve?

Não somos politizados. Cresci com as máximas “brasileiro quer levar vantagem em tudo” e, com frequência, “política não se discute”. Discutimos posturas e falas dos candidatos, apenas isso. Enquanto um propaga “vamos exterminar os vermelhos” o outro diz “vamos subir a rampa com o presidente Lula”. Ambas falsas ou editadas.

Mas, no que queremos acreditar? No “salvador” ou no “amigo do verdadeiro filho de Deus”?

Eu, que até pouco tempo acreditava na necessidade da quebra do status quo, hoje tenho dúvidas. Não são poucas, a começar por todas as entrevistas que vi do atual líder das pesquisas. E, por mais que ouça “isso é só para ganhar voto”, não consigo aceitar nenhuma. Do poste, confesso, sinto pena. As últimas, da Bíblia “roubada” e do “pedido para desligar o whats”, enterraram qualquer possibilidade de outro sentimento.

Meus textos sempre foram pontuados pelas “desgraças que o partido do governo fez ao longo destes 16 anos” e aos “milhões de pessoas que ficaram desempregadas”. Não os nego, não mesmo. Porém preciso ser honesto com minha consciência e dizer que sim, foram anos difíceis, mas nunca me faltou trabalho e condições de pagar minhas contas. Assumi posturas diferentes, procurei novos caminhos na minha área e não desisti.

Trabalhei mais do que a CLT exige? Muito mais. Me arrependo? Jamais. A crise promove mudanças nos que não ficam parados, dirão os especialistas.
Minha crise, neste momento, é de consciência. As decisões tornam-se mais difíceis para quem sempre teve a mente ligada ao coração.

Já fiz campanha para candidatos à vereador e pude entender uma pequena parte de como funciona o “processo” político. As manipulações, aliadas à tecnologia e à falta de escrúpulos, permitiram que vidas fossem destroçadas e não me permito concordar com isso.

Quero um país melhor, mais seguro e justo. Mas não consigo olhar o “Brasil acima de tudo”.

A tecnologia, ao mesmo tempo que encurtou distâncias, promoveu um abismo entre pessoas que tem pontos de vista ou pensamentos divergentes. O algoritmo das minhas redes sociais facilitou o trabalho deste distanciamento.

Meu posicionamento de “PT Não” era minha única justificativa para votar no “Ele sim”.

Perdoem-me os que de mim gostam, mas meu “egoísmo” pulsa: faltando apenas 2 dias para a eleição mais sórdida de toda nossa história, nenhum dos dois candidatos terá meu voto, decisão que se aplica também aos postulantes ao governo do Estado de São Paulo.

O novo presidente será eleito como a “representação da mudança”. Torcerei, talvez, em silêncio.

Minhas opiniões políticas foram deletadas de minha timeline. É um passado que não interessa a ninguém. Foi um trabalho de pouco mais de uma hora. Recomendo à todos.

Respiro, aliviado, por fazer o que sempre fiz: ser verdadeiro e tentar ser sempre melhor para com meus semelhantes.

Sejam felizes.

* Fernando Rossi é publicitário com 25 anos de experiência e trabalhou em diversas campanhas eleitorais.


quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O novo (velho) eleitor


Marcus Vinicius Batista

Ao final da aula de Ética, uma aluna de Relações Públicas veio me procurar.

— Professor, o Bolsonaro tem casos de nepotismo. Por que o adversário não o ataca com isso?

— Porque as pesquisas indicam que esta estratégia tem pouco efeito.

— Como assim, mas é nepotismo? Contratar parentes não é ferir a Ética?

— Você sabia que as pesquisas sobre Ética e Política apontam que entre dois terços e 75% dos entrevistados empregariam parentes se fossem eleitos. Eles entendem que, se o cargo é de confiança, melhor um parente encostado do que um técnico competente.



O eleitor médio, muitas vezes nós mesmos, é um sujeito prático. Ele escolhe seus candidatos por centenas de razões, de estética à comportamento sexual, de parente encaixado na Prefeitura à negação de um favor, de indicação de marido, mãe, pai ou alguém próximo até determinação do chefe. Eventualmente, avalia programas de governo, consome alguma informação, troca opiniões ou assiste debates.

O eleitor não é um sujeito nobre. Sinto que, por trás do discurso em torno do eleitor brasileiro, persiste uma aura de canonização. Isso esconde a cumplicidade e as conivências na hora do voto.

O eleitor também é fruto de instituições que pouco prezam pela educação política – não confunda com doutrinação ideológica, presente em universidades, igrejas e empresas. Porém, não dá para aceitar um determinismo político, com tantas prateleiras de informação disponíveis nos dias de hoje.

O eleitor é um sujeito que também vota por mesquinharia. Por cinismo. Por hipocrisia. Por efeito manada. E depois esquece o que fez, fugindo da responsabilidade. Fruto também da ausência de consciência crítica. Oito em cada dez eleitores não se lembram mais em quem votaram para o Poder Legislativo, seis meses após as eleições.

O eleitor médio é um sujeito que não vota por ideologia. Papo furado, tanto da esquerda como da direita. O eleitor, na sua praticidade cotidiana, vê um como o oposto do outro. E utiliza, mesmo quando enganado pela salada partidária e pela promiscuidade política dos candidatos, o processo de tentativa e erro, como permite de forma saudável a democracia.

Esse olhar pragmático, no qual as teorias e as análises parecem aulas entediantes de História do Ensino Fundamental, é capaz de não enxergar a própria ironia desta campanha presidencial sem precedentes históricos. Talvez porque não tenha visto as tais aulas de História. A ironia reside no fato de assistirmos à defesa veemente da tirania, do autoritarismo justamente num cenário de liberdade de expressão, o primeiro princípio a morrer quando se instala um regime de mão de ferro.

O eleitor não está sentado sobre os cânones éticos. Ele aplica, por conveniência, as expressões típicas do brasileirismo. O jeitinho. O “você sabe com quem está falando”. O “é dando que se recebe” e assim por diante. Neste caminho, o eleitor perdoa deslizes éticos da classe política, ainda que não saiba que está perdoando a si mesmo.

O eleitor tolera o “rouba mas faz”, engole a corrupção generalizada, não apenas a do PT, distorce a própria ideia de corrupção generalizada, classificando o mesmo PT como o dono de todos os males, deixa de lado comportamentos que reprovaria em parentes, amigos, na própria esposa, no próprio marido.

Ele rasga a Ética nas relações diárias e não percebe que tem os políticos que merece. O eleitor os instala numa torre de marfim para que não veja o espelho que nos indica como um político se parece com Dorian Gray, decrépito em seu próprio reflexo, lindo aos olhos do público.

O eleitor costuma ser narcisista. Vê o mundo a partir de seus próprios problemas. Pouco acompanha o contexto por trás de uma campanha ou das medidas dos governantes. È previsível e aceitável. Nenhum demérito, dentro das limitações da própria humanidade.

Nesta corrida, o eleitor se sentiu no direito – também por conta dos candidatos-espelhos – de colocar para fora o que sente perante a política. Frustrações, indignações, fé, intolerâncias, preconceitos, um caldeirão de sentimentos por vezes desfocados, que funcionam melhor quando aplicados num cenário maniqueísta com tons novelísticos. É mais confortável quando o outro se materializa no colega de trabalho, no amiguinho da rede social.

O eleitor costuma se julgar mais inteligente do que a maioria. O ser humano costuma se julgar mais inteligente do que a maioria. Muitos se consideram especiais, únicos. Afirmações previsíveis de pilhas de pesquisas em neurociências (voltaremos no assunto em outra ocasião).

A arrogância o faz presa fácil para o discurso bem encaixado, e baseado em pesquisas e análises, das candidaturas, de quaisquer cores. O eleitor, nesta campanha, comprou nomes, confirmou formas de vida, ignorou partidos – exceto o que veste a máscara do primo leproso -, sem perceber o quanto política e suas estratégias de comunicação podem ser manipuláveis.

O eleitor, com seus defeitos e lampejos narcisíscos, é essencial para a democracia. É vital entendê-lo, ainda que esteja no outro lado de nossas preferências. Não adianta agredi-lo, pois somente reforça suas convicções.

Para convencê-lo a pensar, é preciso seduzi-lo, nas conversas do dia a dia. Na campanha, um dos presidenciáveis o fez com eficiência. O outro, ofuscado pela petulância de seus líderes, mal teve tempo de se apresentar. Políticos, como bons mestres sedutores, são práticos.

A orgia política




Marcus Vinicius Batista

Qualquer criança sabe: a campanha eleitoral reproduz – como bem disse um grande amigo – as brigas entre o 5º ano A e o 5º ano B. Valem cusparadas, xingar a mãe, socos em frente ao colégio, pancadaria dentro de quadra no interclasses e até o grito de “ai ai ai, não deixava”.

Ao longo do ano, os alunos se esquecem porque surgiu a rivalidade entre eles, pois sabem que o que importa é dar a última palavra, mesmo que seja baseada em mentiras deslavadas, que afundam no universo imaginário de um moleque de 11 anos, louco para se afirmar entre os colegas.

Vivemos uma disputa entre dois modos de ver o mundo. Não é preciso explicar quais são, dentro da corrida presidencial. No governo do Estado, não são dois mundos, mas o mesmo endereço e a negação de relacionamento com o primo chamado de leproso, aquele que ninguém quer ver na ceia de Natal (expressão de outro grande amigo).

A luta de classes – interprete como quiser, seja pela veia marxista ou pelo 5º ano da escola – faz com que pouco saibamos o que efetivamente cada candidato pretende para o país. Esqueça os planos de governo, que sempre foram tratados como peças de ficção, pois são reescritos durante a campanha ou têm itens negados para simplesmente sumir no fosso da Internet depois da contagem de votos.

Santos, a cidade onde moro, é um endereço que costuma refletir o cenário político, em termos estaduais. No âmbito nacional, vemos lampejos conceituais, de leitura filosófica dos processos políticos. Em outras palavras, a cidade viveu no final do século passado e no início deste um reflexo do que tinham se tornado as campanhas políticas. Prevaleciam as propostas dos “gerentes”, não porque todos os candidatos eram mais sofisticados, mas porque o eleitorado rejeitava o perfil “metralhadora giratória”, o candidato que só atacava e nada propunha.

Numa das vitórias de Beto Mansur na disputa pela Prefeitura, um dos adversários caiu de terceiro para quinto – e assim acabou em empregos públicos por indicação – por conta de ataques aos candidatos que estavam à sua frente nas pesquisas. Ele acabou visto, por parte do eleitorado, como um pretendente sem conteúdo, sem atrativos para cortejar a noiva. E olha que possuía bons dotes em níveis estadual e federal.

Hoje, os presidenciáveis e os potenciais governadores de SP ultrapassam os limites da ética, da decência, da humanidade. É óbvio que devemos olhar para o comportamento moral de um candidato, mas o moralismo substituiu de maneira porca, perversa o conceito anterior. Enquanto um foge de propostas e alimenta fantasias genéricas, o outro ataca para se defender. As ideias se perdem no cheiro fétido da tampa do esgoto recém-aberta.

Se olharmos como Poliana, saberemos pelo menos que modo de vida, que mentalidade cada candidato – seja em Brasília ou em São Paulo – defende. É um começo, mas parece muito pouco para entendermos o que virá nos próximos quatro anos. Parece-me claro como se processa o funcionamento mental dos presidenciáveis, por distorção comportamental ou por desvio de foco, algo mais nebuloso entre os candidatos ao Governo do Estado.

No entanto, fica difícil desenhar com firmeza uma espinha dorsal de projeto de governo. Vemos projetos de poder. Neste caso, o lápis treme na criação do traço. A ilustração está desfocada, o que aguça a imaginação, a alucinação e até o delírio de quem o observa.

O triste é que temos os candidatos que merecemos. O eleitor é conivente, cúmplice da selvageria e da sangria verbal. Ainda assim, terá que escolher um, por voto útil, convicção ou somente ódio.

Na orgia política, não existem vítimas, tampouco santos. Só os de fala oca. Como as bravatas da turma do 5º ano.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O diálogo entre política e futebol



Marcus Vinicius Batista

* Texto publicado, originalmente, no jornal A Tribuna, de Santos, em 15 de outubro de 2018.

Política e futebol são como primos: apresentam semelhanças, mas não possuem traços iguais; tem grau de parentesco, porém convivem de vez em quando; e dividem paixões quase inconciliáveis, embora muitos não percebam que seguem a mesma dinâmica familiar.

Em tempos de discurso de ódio, a campanha eleitoral se transformou em um Fla-Flu, digno de hooligans, os violentos torcedores ingleses, no auge da selvageria do final do século passado. O interessante é que dirigentes, imprensa e parte da sociedade mantém relações contraditórias quando envolvem jogadores de futebol e manifestações políticas.

Neste período eleitoral, é comum se ouvir que os jogadores são alienados, sujeitos emburrecidos pela dedicação exclusiva ao esporte. Outras críticas os colocam como seres que fogem de quaisquer discursos sociais ou de perspectivas que alcancem um olhar mais aguçado sobre a sociedade contemporânea.

Esta fala esconde um tom de hipocrisia. Por trás dela, mascara-se o desejo de manter os jogadores de futebol profissional dentro do cabresto. Defende-se que abram a boca por conta da visibilidade e da influência que exercem sobre torcedores e simpatizantes, desde que sigam as cartilhas dos cartolas ou dos comentaristas supostamente formadores de opinião. É a mordaça institucionalizada.

Jogadores que pensam além dos muros dos centros de treinamento são vistos como incômodos, chatos ou até subversivos (termo, aliás, ressuscitado e distorcido na era da infantilização política via rede social). Afonsinho, nos anos 70, Sócrates, a Democracia Corintiana e as Diretas Já, nos anos 80, Alex e Rogério Ceni, na década passada, e Paulo André, nos últimos anos, são exemplos de como atletas podem sofrer com estigmas ou ter a imagem manipulada por interesses políticos, inclusive dentro dos clubes onde atuaram.

Governos de diversas linhagens sempre utilizaram o futebol como instrumento político. Mussolini e o fascismo italiano na década de 30. Getúlio Vargas e a profissionalização do futebol, em 1933. Os 90 milhões em ação, cantados em verso e prosa pelo regime militar, em 1970. A curiosa cambalhota de Vampeta, em 2002, na rampa do Palácio do Planalto, sob os olhares de FHC. Lula e as metáforas sobre futebol, faturando com a escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo, em 2014.

Jogadores de futebol são cidadãos com um poder imenso em suas palavras e atitudes, principalmente os de elite, que ganham visibilidade midiática diária. Estes e os demais operários do esporte têm a obrigação de driblar o desinteresse pela política.

Os destinos do futebol – e deles também – são decididos nos gabinetes de criaturas engravatadas, que se sustentam dos milhões gerados pelo trabalho de muitas pessoas, cujas vidas significam abrir mão de familiares, amigos e estudos. Jogadores têm que tomar posição política – diferente de defender candidato – para melhorar, direta ou indiretamente, a profissão que exercem, com tempo limitado.

Política e futebol se discutem sim, dentro dos limites de um diálogo. Rivalidades alimentam o espetáculo e engrandecem o esporte como ação política. Futebol como política não tem relação alguma com intolerância, independentemente de se dizer: alguém sim, o outro não.


segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O que é ser (ou não) professor



Marcus Vinicius Batista

Tenho 44 anos e, fazendo uma conta grosseira, percebi que estou há 37 dentro da escola, como aluno, como professor. Nos últimos anos, os dois ao mesmo tempo. Este internato voluntário me dá a clareza de que professor e escola transcendem um ao outro, independem dos muros institucionais que podem, inclusive, cegá-los para o que importa na formação humana.

Professor não é quem comanda os trabalhos dentro de uma sala de aula em caráter absoluto, é cada vez menos o sujeito que fala e os outros ouvem, quando não se sugere que abaixem as orelhas. Professor é quem abre as portas para a pluralidade de vozes, para a conversa coletiva, para a construção de pontos de vista, com suas contradições, angústias, retrocessos e avanços.

Professor não é o sujeito sentado sobre os almanaques do saber. Professor não é quem restringe conteúdos por medo de ficar ultrapassado, por pavor de ser ultrapassado por seus alunos. O professor não é um pai, mas como tal, sabe que seus alunos nasceram para voar mais longe. O professor sorri quando os vê numa altitude mais elevada, jamais ceifa suas asas.

Professor não é somente o homem dos diplomas pregados na parede, dos títulos, das comendas, das honrarias. Muitas das maiores atrocidades dentro de uma escola foram ditas e cometidas por quem se veste de “doutor” ou se fantasia de “mestre”. Grandes professores podem também não ter um único diploma, mas ensinam pelo exemplo, pelas ações, raramente pela retórica ou pelas aspas decoradas. As citações só valem no contexto do ato.

Professor não é aquele que amarra seus alunos pelas provas difíceis ou pelas chamadas ou listas de presença. Professor conquista sua platéia a cada apresentação, de corpo, alma e espírito. E sabe, acima de tudo, que bons alunos não se definem pelas notas de suas provas amedrontadoras. Bons alunos são definidos pelo caráter, pela decência, pela dignidade em torno de suas escolhas, daquilo que pretendem levar adiante em suas biografias.

Professor não é aquele que transmite um único modo de pensar, mascarando uma ideologia como se não existissem outras. Professor tem ideologia, mas é honesto intelectualmente para denominá-la, reconhecê-la como falível, entendê-la como parte de sua vida.

Professor não é aquele que defende um candidato ou que defende o silêncio de quem pensa diferente dele. Professor é quem dá voz à coletividade, pondera sobre as escolhas políticas, consciente de que o homem como ser político se sobrepõe a quaisquer camisas, dentro dos limites da humanidade.

Tento ser um professor há 16 anos. Por vezes, este ofício me conduz ao limite da fadiga. Por vezes, este ofício salva meu dia, minha semana com pequenas vitórias. Em certos dias, a burocracia e a estupidez humana quase me fazem desistir. Em outros, as pessoas me fazem voltar no dia seguinte. Eventualmente, a ausência de reconhecimento – inclusive de quem deveria nos apoiar – nos empurra para a sensação de indigência. De vez em quando, o aplauso de quem sabe que a evolução humana pode acontecer nos garante que os medíocres não vão permanecer por perto. Ser professor é pisar em solo movediço, paradoxal como o próprio caminhante.

Professor não é somente o sujeito que está em sala de aula. Professor está em todos os cantos, onde há gente, onde há diálogo, onde há respeito pelo outro, onde ele mal consegue perceber que assim o é. Um professor jamais é professoral. Ele é professor quando não percebe que está em aula!