segunda-feira, 18 de abril de 2016

Beto, o emotivo


Marcus Vinicius Batista
Deu no New York Times! A frase nos alcançou, e não é o trecho da música W Brasil, de Jorge Ben Jor. Foi o noticiário, com direito à chamada na primeira página. A ligação entre um dos maiores jornais do mundo e a Baixada Santista se deu pelo deputado federal Beto Mansur, chamado de escravocrata por conta do processo contra ele por denúncias de trabalho escravo em uma fazenda, na região Centro-Oeste.
Ao ler o texto, pensei de imediato: como Beto Mansur vai reagir publicamente? Qual emoção vai extravasar desta vez? Podemos ver múltiplos defeitos nele como figura pública, mas não podemos negar que o parlamentar adora colocar para fora seus sentimentos e emoções.

Recentemente, ao ler o pedido de impeachment da presidente Dilma, Beto Mansur não se conteve e chorou. Colocou as mãos no rosto enquanto lia, com voz embargada, o texto no plenário. Emocionou-se diante de tamanho dever cívico e interesse na luta contra a corrupção, muito provável.

A transparência afetiva é uma marca pessoal do deputado. No ano passado, por exemplo, ele teve a percepção de que o incêndio na Alemoa – aquele que durou nove dias e também saiu na imprensa internacional – era um evento importante. Como testemunha da História, Mansur registrou sua alegria ao lado do prefeito Paulo Alexandre em um selfie igualmente célebre, desta vez nas redes sociais.

Em 2012, na campanha para a Prefeitura de Santos, Beto Mansur também demonstrou orgulho perante seu eleitorado. Um dos slogans da campanha foi “É Obra do Beto”, um sinal de reconhecimento por tudo que ele fez pela cidade enquanto exerceu o cargo de prefeito por oito anos. As brincadeiras na Internet que creditavam a Lua, a Torre Eiffel e as pirâmides do Egito como obras do ex-prefeito foram, claro, maledicências gratuitas de inimigos políticos. Que ironia que nada!

Aposto que a inspiração veio de seu mentor anterior, Paulo Maluf, que cravou em certo momento: “Foi Maluf que fez!”. Como coincidências não existem, Beto aparece na matéria do New York Times em companhia de Maluf e do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, seu mentor político atual. Só os adversários para lembrar, neste caso, do ditado “Diga-me com quem andas…”

Em entrevistas, o deputado federal sempre deixou evidente sua irritação quando se fala do processo de trabalho escravo. A irritação traduz, imagino, o sentimento de injustiça que corrói o parlamentar. Poucos entenderão as novas relações trabalhistas do século 21.

Ao deixar vazar – verbo perigoso em tempos de Lava-Jato – suas emoções, Beto Mansur entrará para a história. Ele é o secretário da Câmara, no processo de impeachment de Dilma Rousseff. Será um coadjuvante de seus mentores, é fato, mas um protagonista para nós.

Diante deste caldeirão de sentimentos, ainda estou em dúvida: o deputado federal conhece o preço e os riscos da fama? Deve ser intriga da oposição.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Dom Quixote veste vermelho


Marcus Vinicius Batista

Mais do que o cancelamento do discurso da presidente Dilma Rousseff na TV, ele ficou indignado com a suspensão da nova batalha. Não precisava de armas. A voz e o dedo em riste eram a garantia de resistência contra as panelas que bateriam na vizinhança.

Como sempre, deixaria a mulher em casa, na frente da TV, e iria até o quintal nos fundos do prédio, no Embaré, em Santos. O papel dela se resumia a acompanhar o noticiário e criticá-lo. Lá, no quintal, ele pretendia repelir coxinhas, falar mal da Rede Globo, lembrar dos escândalos que envolvem o PSDB no Governo de São Paulo. Política se faz na rua e, antes de tudo, dentro de casa; era sua prática há décadas, desde que se envolveu com o sindicato e largou a sala de aula.

Respirava e sobrevivia pela política. Passava parte do dia ao telefone, articulando, aconselhando, adiantando soluções, debatendo problemas. O sindicato era sua vida, seu sustento, seu amor. Conheceu, por sinal, a esposa nas batalhas sindicais. Ela é sua maior interlocutora, mas também sua maior adversária. Sempre estiveram na mesma chapa, mas ela não deixa de apontar o dedo quando quer impor sua posição política ou apontar o que julga serem erros dele.

Na guerra contra os coxinhas, ele virou um cavaleiro solitário naquela quadra. Nem a mulher teve coragem de se expor à orquestra de panelas no mês passado. Ele foi sozinho para espinafrar a coxinhada, em suas próprias palavras, audíveis para os vizinhos no café da manhã do dia seguinte. Ele não se incomoda com a privacidade em xeque. Nem as janelas fechadas barram seus discursos.

Na batalha de março, a impressão era de que iria enfartar. Os moinhos de ventos faziam um som ensurdecedor. As panelas esbravejavam, acompanhadas de "Fora Dilma" e palavras indecorosas tanto quanto machistas. Suas veias saltaram, seu cabelo despenteou e ele urrava em cima do cavalo imaginário: "Coxinhas. Estúpidos que assistem à Rede Globo. Tucanos!"

Ele listava os escândalos em torno do PSDB, parte deles inaudíveis por conta das panelas, das risadas e do mantra "Fora Dilma". Andava de uma ponta a outra do corredor de espada quixotesca em punho. Naquela fantasia, abriu várias frentes de batalha, o primeiro sinal de que a estratégia de vitória deveria falhar. Napoleão e Hitler perderam suas guerras porque, entre outras razões, dividiram seus exércitos. E ele, então, que estava sozinho e jamais poderia quebrar a lei da física de um corpo em dois lugares ao mesmo tempo!



Com a voz falhando e a camiseta vermelha suada, ele abandonou o front oeste, onde lutou contra quatro janelas de um edifício de alto padrão. Mudou a tática e resolveu enfrentar uma senhora que estava no segundo andar do prédio ao lado ao dele. Ambos edifícios antigos, de três andares.

O inimigo se encontrava bem perto, ao alcance da espada imaginária de empunhadura vermelha e trabalhista. Contra a vizinha histérica, repetia o discurso, conseguia calar a voz inimiga, restrita ao "Fora Dilma".

Depois de 20 minutos de confronto intercalado com silêncios, um cessar-fogo sem diplomacia. Cansaço, mesmo. Bufava de exaustão. O rosto parecia mais vermelho do que a bandeira da estrela solitária, pregada na janela da sala. Cara fechada de nervosismo de quem volta para o quartel-general sem saber se feriu ou se matou.

Olhando daqui, apostaria que todos perderam pela irrelevância do ato político. Pela caricatura de uma briga comprada, na qual todos morreram de falta de ética há anos. Mas ele resiste. A vida sempre foi de resistência, de enfrentamento, de discussão, de reuniões para ser contra a opressão e a exploração, palavras sempre presentes nas conversas ao telefone ou nas discussões com a mulher na área de serviço.

Na manhã seguinte, ele estava orgulhoso de extravasar contra os coxinhas. Não teve dúvidas: colou dois adesivos na janela da sala. O primeiro deles atacava a Rede Globo. O segundo era o mantra do lado de cá do muro, onde ele morava: "Não vai ter golpe!".

Satisfeito, passou a coleira no cachorro, abriu a porta e foi passear de boné, camiseta e chinelo pelas ruas do bairro. Assim como todos os dias.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Eleição decidida


Uma eleição em clima de férias. Todos a escolher um lugar no resort

Marcus Vinicius Batista

A Operação Lava-Jato monopolizou o noticiário político e, para nosso prejuízo, paralisou os próprios políticos nos próprios umbigos. Agora, aos poucos, as raposas, tubarões e cavalos paraguaios começam a sair das tocas e baias, e se tornou possível enxergar um pouco melhor o cenário eleitoral.

Em Santos, a eleição cumpre a promessa de ser morna diante de um quadro praticamente decidido, com o acerto apenas dos coadjuvantes e figurantes. Todo filme de final previsível é chato assim como toda eleição numa cidade de testemunhas de oposição e maioria em torno do rei cheira a abdicação da democracia.

Qualquer um sabe que Paulo Alexandre Barbosa (PSDB) será reeleito, de preferência no primeiro turno. Os mais otimistas e os puxa-sacos falam em recorde de votos. Os políticos já se coçam para permanecer ou entrar no trem chamado coligação, enquanto cobiçam a divisão de assentos e o vagão que vão ocupar. Quanto mais perto do maquinista, melhor.

O problema de uma eleição assim não é apenas a (quase) ausência de programas consistentes e alternativos para a cidade - e ela precisa de um olhar além das maquiagens para desfile de verão. Uma eleição de candidato único significa, na prática, a presença de concorrentes que sonham com outros cargos, que brigam pela melhor luz na vitrine. Não querem vencer, querem projeção. Este tipo de cenário termina por afogar qualquer candidato disposto a falar outro idioma além do pensamento dominante e deveras absoluto.

A corrida eleitoral está tão monótona que a maior notícia dos últimos dias é a escolha do candidato a vice na chapa de Paulo Alexandre. Com a coligação quase toda costurada, ganhou importância um cargo zero à esquerda. Moradores brigando pela varanda numa casa onde os cômodos já foram divididos ou alugados.

Entre os adversários, ninguém conseguirá fazer sombra ao prefeito. Ou por falta de apoio. Ou por falta de dinheiro. Ou por falta de visibilidade. Melhor escolher todas as alternativas anteriores. O PT, por razões óbvias, virou símbolo de doença política. Tirando os escândalos da cúpula do cerrado, o partido paga pela soberba de seus líderes locais, que comandaram ditatorialmente a legenda na cidade e não formaram novas lideranças. O PT recebe com merecimento o castigo do tempo.

Muitas lideranças saíram nos últimos dez anos, seja para outros partidos, seja para assumir cargos no Governo Federal, seja pela aposentadoria. Na prática, sobrou Telma de Souza, que deverá se candidatar à vereadora para assegurar um mandato em final de carreira. Em outras palavras, quem sobrou para concorrer à Prefeitura, servir de vidraça e carregar alta rejeição?

Um dos que deixaram o barco petista foi o vereador Evaldo Stanislau, hoje na Rede. Ele deve se candidatar à prefeito e personifica os motivos descritos acima. Stanislau é um vereador visto com credibilidade em muitos setores, que se salvou da enxurrada que varreu o PT. Mas Stanislau deverá ser um Dom Quixote na corrida eleitoral. Um cavaleiro solitário, com votação insuficiente para fazer cócegas em Paulo Alexandre, mas capaz de se projetar para a próxima eleição, em 2018. Quem vai se arriscar a ser o Sancho Pança?

Os demais são considerados nanicos. Todos pecam pelo egocentrismo, muitos são líderes de um exército de um homem só - seus partidos - e disputam a eleição quase no anonimato. Parte deles - por enquanto, são sete - terá votação menor do que vereadores eleitos. Muitos sustentam discursos aventureiros ou de extrema esquerda. É um falatório para poucos ouvidos e pregação digna de caixote na praça Mauá. Tão longe, tão perto da Prefeitura.

Seria sensato - quem sabe? - se estes candidatos se unissem e formassem uma frente alternativa, frágil para derrotar o prefeito, mas talvez sólida para conquistar cadeiras na Câmara Municipal. Desde o governo Beto Mansur, o Poder Legislativo é cordeirinho do Paço Municipal, com raras vozes dissonantes, muitas bençãos e distribuição farta de títulos, comendas e abraços.

A eleição para a Câmara se desenha como o lado B do disco eleitoral. O PSDB tem dez vereadores e a briga será entre cachorros do mesmo canil. É triste, pois uma eleição representa o período em que uma cidade fecha para balanço, expondo suas feridas e decidindo qual tratamento deseja para suas doenças.

Pelo jeito, fecharemos os olhos e ouvidos, enquanto a loja fecha não para balanço, mas porque é feriado. No dia seguinte, o proprietário abre o comércio com os mesmo vícios, funcionários e clientes.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Os hospedeiros


Marcus Vinicius Batista

O dinheiro promoveu o acaso. O bloqueio dele pela Justiça. Os dois pacientes, acostumados ao luxo, tiveram que dividir o quarto do hospital. Servir-se do sistema público que tanto execraram ou negligenciaram no trabalho. Estavam lado a lado, cama a cama, isolados por conta de uma doença. Enfermidade que os transformou em hospedeiros.

Os sintomas eram idênticos. Os exames os colocavam no mesmo tratamento, distantes do mundo para se proteger e proteger os outros de contaminação. Pedro Tenório e Paulo Sérgio De Bianchi tiveram origens diferentes, embora morassem perto um do outro, cruzaram-se muitas vezes na vida profissional, chegaram a gritar juntos pelas mesmas causas, mas jamais foram amigos. Haviam respeitado as desavenças eventuais, cutucavam-se mutuamente, mas nunca violência física. Respeito às origens e às semelhanças, medo de virar vidraça na comodidade do telhado.

Pedro e Paulo tiveram que rasgar a fantasia de tantos anos. Muitos apostam que os dois acreditavam cegamente em pertencer à Turma do Bem. Viam-se juntos em duas camas, descobriram-se irmãos de sangue e vírus. O problema é que fingiam não saber o que tinham dentro de si. Ignoraram as recomendações públicas, abusaram do vício e da vaidade. Uma enfermeira comentou que deveria ser do sangue. Um médico pediu novos exames para saber o grau da infecção. Suspeita de herança genética.

Os sintomas se desenvolveram a passos lentos. O vírus ficou encubado por anos, profetizou um atendente. Delírios de grandeza escorriam pelo nariz. Cinismo brotava como manchas na pele. O pus de cicatrizes corrompidas exalava cheiro podre a cada grito de insatisfação. A paralisia controlava com autoritarismo parte do corpo. Mas ambos mantinham a pose; apenas sussurros penetravam pelo vão da única janela do quarto.

Os amigos de farra, de pastores a donos de fazendas, os largaram quando souberam da doença. Tenho medo de pegar, falou um ao telefone. Os dois tinham amigos comuns, chegaram a trocar alianças com gente da mesma família, casaram-se com parentes distantes, de clãs entrelaçados de tempos de chumbo. Chumbo, pau de arara e silêncio constantes.

Os médicos olhavam para Pedro e Paulo sem misericórdia. Estão aqui porque mereceram, afirmou um dos homens de branco. Outro retrucou que paciente é paciente, não importam as escorregadas e a vida de ostentação. Ouviu que era isso mesmo, que ficassem na ala dos desesperados, onde poucos sobreviviam à uma doença que corroia até os ossos. Nem mutilação de partes gangrenadas adiantava no último estágio. Era deixar para morrer. Paulo talvez durasse mais tempo. Pedro dava impressão de que o caixão já deveria ter sido encomendado. Surpresas seriam evitadas.

Pedro e Paulo Sérgio mediam as palavras quando conversavam entre si. Não era o momento de atacar um ao outro. Pedro tinha uma mutação do vírus mais intensa em seu organismo. Paulo havia entrado em processo de cura, ilusão para uma doença que persiste na família desde o século passado.

Pedro Tenório sentia dores mais agudas. Paulo parecia estar em remissão. Parecia, pois o médico tratou de enterrar as esperanças no último boletim. O vírus ainda estava lá. Adormecido, mas pronto para um acordo com aquele organismo.

O médico entrou no quarto com ares de preocupação. Diante da expressão de dúvida dos pacientes, ele foi direto:

— Tenho uma boa e uma má notícia. A boa: Pedro Tenório, o vírus está deixando seu corpo. A má: ele deixou muitos estragos, causou danos demais. Não sei se é possível manter o tratamento. Podem haver sequelas.

Antes de qualquer resposta, até para fugir logo daquele ambiente séptico, o médico olhou para o outro paciente e, com formalidade, disparou:

— Senhor Paulo Sérgio De Bianchi, seus índices pioraram. Não posso afirmar com certeza, mas tenho a impressão de que o vírus ressuscitou, acordou em seu organismo. Os sintomas mais sérios podem voltar. Mas prometo acompanhar o senhor mais de perto, junto com minha equipe.

Pedro fechou os olhos, respirou para medir as palavras:

— Doutor, então o senhor tem um diagnóstico definitivo? Seja honesto!

— Tenho sim. Os exames foram refeitos e é impossível contestar o resultado. Vocês dois sofrem, realmente, do mesmo mal. Hospedaram o mesmo vírus em épocas diferentes de suas vidas, mas ele é mutante, adaptou-se ao corpo de vocês e não perde a natureza de sanguessuga. Avisem seus familiares que a estrada ainda será difícil. O tratamento levará alguns anos, pelo menos, com prescrição médica - talvez, talvez - para o resto da vida. Nós chamamos a doença pela sigla do nome científico do vírus. Não há ainda um nome popular. É o Proselitimus Maracutae Dependentis Brasiliensis.

— Nome comprido, coerente com a gravidade, né?, ironizou Pedro Tenório.

— Melhor chamá-lo de PMDB. É mais simples.

O médico fechou o prontuário, forçou o sorriso e saiu da sala.

segunda-feira, 21 de março de 2016

O Complexo de Clark Kent



Marcus Vinicius Batista

Não é à toa que o Superman sempre se disfarçou de jornalista. Muitos, nesta profissão, se julgam infalíveis, quase deuses. Descobri e confirmei, nos últimos anos, que muitos juízes também padecem do mesmo mal. Por coincidência, ambas as profissões justificam a arrogância de suas decisões com argumentos como imparcialidade.

O juiz Sérgio Moro é o símbolo do momento político atual. Para muitos, ele já veste capa vermelha e cueca por cima da calça. No cenário de política polarizada e de infantilismo democrático, a trama em volta do super-herói da vez permite, no mínimo, uma análise por dois ângulos.

O primeiro deles envolve a própria figura do juiz de Direito. O Poder Judiciário costumava se manter seus representantes nas sombras. As instituições vinham à frente das pessoas. Com a fragilidade e deslizes dos poderes Executivos e Legislativo, o Judiciário - por meio de magistrados de várias instâncias - passou a acreditar que poderia ir além de suas fronteiras e participar como ator principal do processo político. Culpa também da classe política, que governa por meio, inclusive, de aberrações jurídicas.

O problema é que o olhar brasileiro sobre a política é de personificação, e não de compreensão de grupos de interesses ou de projetos de poder. Fala-se em governantes ou parlamentares como se eles estivessem acima das instituições, seja para bajular, seja para espinafrar por erros.

Os juízes passaram a acreditar, da primeira instância ao STF, que poderiam interferir individualmente, sem se ferir, nos processos políticos. O Complexo de Clark Kent é uma enfermidade que tem como um dos sintomas o espetáculo de mídia, que coloca o super-herói na condição de cavaleiro solitário, capaz de salvar o planeta por ser acima de qualquer suspeita.

Ao concordar com esta lógica, o juiz compra as mudanças de humor da opinião pública e se afasta do campo do Direito. A Justiça, na qual o olhar político deveria ter papel menor, se transforma num instrumento de uso quase que exclusivamente eleitoral. Os juízes entraram no palco, quando deveriam estar atrás das cortinas e se esqueceram que esta postura envolve um risco: o de receber tomates e ovos se tomarem decisões impopulares.

O segundo aspecto é quando o juiz com Complexo de Clark Kent adota, no campo da Ética, o pragmatismo de Maquiavel. O pragmatismo reza que uma ação só é ética quando se alcança o resultado desejado, não importando como se chegou nele. Simplificando, os fins justificam os meios.

Esta postura é inerente ao comportamento do político, porém era rechaçada por muitos juízes, que se sustentavam no distanciamento seguro do Poder Judiciário. Não foi o que aconteceu, por exemplo, com o juiz Itagiba Catta Preta, que vetou a posse do ex-presidente Lula como ministro.

O ponto não é a decisão, mas sim quem a tomou. O juiz tinha manifestado publicamente, em redes sociais e com presença em protestos de rua, que era contra o governo atual. Isso se chama, em Ética, de conflito de interesses. O juiz deveria, num campo ideal, se recusar a avaliar a liminar.

Ao se envolverem de maneira tão pessoal em problemas políticos graves, os juízes colocaram em xeque a imagem da Justiça, já desgastada por acusações de lentidão e de proteção a quem possui a conta bancária mais gorda. Infelizmente, vão aprender da pior maneira, a da exposição sem controle.


sexta-feira, 18 de março de 2016

A rainha nua e o primeiro ministro


Marcus Vinicius Batista

À parte a discussão jurídica derivada da guerra de liminares, não dá para aceitar moral e politicamente a decisão da presidente Dilma Rousseff em nomear Lula como Ministro da Casa Civil. Compreender como válida a nomeação implica em tolerar que os fins justificam os meios, prática recorrente e criticada na classe política.

Lula, acima de tudo, passou por cima de seu partido e pensou em salvar a própria biografia. Foi uma atitude de pai, termo usado com frequência pelo próprio ex-presidente enquanto governava o país. Pai tem um significado ambíguo, que transita daquele que protege e acolhe àquele que pune e passa impune por estar acima do bem e do mal.

Na política brasileira, ser pai é um comportamento perverso, repetitivo e aceito por boa parte do eleitorado. De Getúlio a JK. De Maluf a Lula. O pai é visto com cumplicidade, quase um totem a ser preservado pelo seu passado. Isso também reforça a ideia de que Lula estaria acima do PT e deveria se proteger e ser protegido, tanto política como judicialmente. Numa sociedade patriarcal, ironicamente, a culpa pertence à mãe.

O problema é que, ao proteger Lula, o governo sacrifica o PT. Protege uma história, incinera outra. Joga ao fogo o trabalho de milhares de militantes ao longo dos anos. E assume de vez um atestado de culpa derivado da sanha para manter a tal da governabilidade.

Lula agiu com coerência. Agiu como um caudilho latino-americano. Ele manipulou novamente as massas, demonizou seus opositores, se posicionou como um ícone acima das instituições e minimizou a credibilidade construída em setores que veem a política com mais racionalidade.

A cultura política latino-americana adora esses personagens. Valorizamos as personas, desprezamos os grupos como se eles não existissem e se escondessem atrás das personas, num relacionamento de simbiose como projeto de poder. Tenho a impressão, ao conversar com petistas de longa data, que muitos deles cultivam a esperança de ressurreição de um partido dilacerado pela ganância de poder de seus próprios integrantes, que venderam suas almas e terceirizaram a de seus militantes.

Lula, ao ser escolhido como ministro, tornou-se primeiro ministro informal e, ao pensar somente nele, jogou mais querosene no governo de Dilma. Lula, acredito eu, nunca pensou em Dilma. Nunca a deixou caminhar com as próprias pernas. Assim como em outras instâncias do PT, o Lula líder nunca se preocupou em formar novas lideranças, num ato de egoísmo em estado puro.

Na cultura dos caudilhos, os ex nunca são passado. Os ex sempre são atuais em estado de espera. Um general da reserva pronto para o combate e preparado sempre para lustrar seus próprios feitos. O substituto está destinado a ter, atrás de si, a sombra do ídolo de sempre.

A presidente Dilma Rousseff perdeu a oportunidade de demonstrar algum tipo de resistência. Virou coadjuvante na crise política, de modo que o impeachment é pregado mais contra um partido do que contra a ocupante do cargo mais alto.

Dilma é (ou foi) a presidente da continuidade e do continuísmo. Manteve as alianças com ratos que pensam em abandonar o navio que faz água. Reduziu programas sociais, que tinham sido a marca da gestão anterior. Reforçou um projeto de poder cinza, jamais verde. A usina de Belo Monte que o diga.

No campo político, a então ministra que era vista como um trator se apequenou diante do rei e o nomeou primeiro ministro. Apequenou-se também diante do vice-presidente soturno e eventualmente falastrão, premiado com cargos mesmo quando ele ameaçou correr para outros hospedeiros. O PMDB tem seis ministérios no momento.

Mais do que Lula, exposto mas capaz de se defender, quem mais perdeu com a criação do cargo de primeiro ministro foi Dilma. Ela está nua, mas sem notar que perdeu suas roupas, dando ouvidos àqueles que insistem que suas vestimentas são deslumbrantes. Como a fábula que se repete no Palácio do Planalto.

domingo, 13 de março de 2016

Briga de rua

Protesto contra aumento da tarifa de ônibus, em São Paulo

Marcus Vinicius Batista

Entrei na farmácia e encontrei um colega de trabalho. Ele falava alto e se movia como pavão entre os balconistas e o farmacêutico, todos com feições de natureza morta. Vibrava com o som da própria voz, que garantia que tudo mudou naquela manhã.

Quando me viu, atropelou o bom dia e me perguntou de imediato: "Viu o noticiário?" "Vi", entendendo o motivo do carnaval. "Olha, professor, agora tudo vai mudar. Com a prisão do Lula, finalmente o Brasil será outro." O colega pagou e seguiu em fortes bravatas porta afora, desta vez sem plateia.

Penso nessa e noutras conversas dos últimos dias, ao escutar as profecias para o próximo domingo. A promessa de campanha é encher as ruas no dia 13 de março. Tenho medo do que pode acontecer neste dia. Temo que o mundo virtual, dos ativistas protegidos por ar-condicionado, teclado ou monitor, possa ser transportado para um cenário real da pior maneira. Que o discurso Fla-Flu, que a arquibancada de torcida organizada, com suas canções de intolerância, preconceito e maniqueísmo, desfile para as câmeras das emissoras de TV.

O cenário que se desenha é mais uma chance abandonada em qualquer esquina, como bandeiras e adesivos pós-festa. Salvo uma surpresa com cheiro de milagre, minha tendência é acreditar que repetiremos os gritos mimados de uma democracia infantilizada, adepta das soluções de desenhos animados ou telenovelas, que dividem o mundo em dois: os que estão comigo e os vilões, que nasceram contra mim.

Neste mundo preto ou branco, pouco se discute política. Anexar a palavra "pública" à política representa um delírio de grandeza intelectual. É claro que condições democráticas são exceção na história do país. Passamos a maior parte - e desconfio que nos acostumamos e alguns até idolatram - sob tutela das gravatas ou das armas, sob o conforto de quem sempre nos diz o que fazer, como pensar, para onde andar, quem demonizar e eliminar da nossa frente.

A visão política, no geral, reproduz o olhar da classe político-partidária, atrelada a interesses menores e particulares. Aprendemos com os melhores professores como ficarmos cegos para a coletividade, enquanto arregalamos os olhos para os benefícios individuais. Enxergamos com um reducionismo de classe média: desejo de subir, ojeriza de descer.

Neste sentido, falta a capacidade política de compreender os tons de cinza. Tomar ciência dos jogos de interesses. Informar-se sobre o histórico das lideranças e das instituições partidárias. Duvidar do papel de parte da imprensa, que pratica o ditado "casa de ferreiro, espeto de pau", quando arrota conceitos como imparcialidade, neutralidade e objetividade para mascarar seus modelos de negócios. E aprender que política é exercitada por grupos de interesses, e não somente por sujeitos que viram heróis ou vilões como Lula, FHC e o prefeito da sua cidade.

Desconfio que praticamos uma democracia de consumo. Não falo de acessos a todos aos bens materiais; muito pelo contrário. Penso num olhar de cliente, que respira pelo próprio umbigo e finge se interessar por tudo e por todos. Se há condições, compramos ou financiamos. Se há problema, reclamamos no 0800; neste caso, de maneira impessoal como se conversássemos realmente com um gravação.

A política também absorveu a lógica do espetáculo. Prevalecem a imagem, a forma e a retórica fútil de um produto que se vende como barato, eficiente e perfumado. Não checamos as biografias, preferimos reduzi-las às últimas declarações que geram notícias. Escolhemos, com ingenuidade, personagens folclóricas, alinhadas e porta-vozes da nossa virulência, que falam de tudo num tom acima e nada explicam.

Os democratas do maniqueísmo adoram a narrativa novelesca para comprimir um processo político no capítulo do dia. Adicionam uma pitada de individualismo, que se reflete no deixa prá lá de descarte da lei, quando confirmam nossas posições e interesses econômicos. Instalamos um pedestal para promotores e juízes que reagem ao clamor midiático com a fantasia de justiceiros. Vale acusar qualquer político, petralha ou coxinha (perdão pelo estereótipo), desde que renda alguns minutos no noticiário da noite. Construir processo e buscar pela condenação do réu e seus amigos - incluindo os corruptores - é tempo de exceção. A velha máxima se repete: "para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei."

Na compra e venda de indignações, a demanda é por rótulos, simplificadores de rasa explicação dos fatos. Ouvi esses dias alguém falando que o Governo é repleto de comunistas. Gostaria de conhecer um deles, dentro de um contexto de modelo neoliberal, de uma gestão que esmagou diversas minorias - índios, por exemplo -, protegeu bancos e rezou a cartilha internacional das grandes economias, com o mantra "crédito e consumo".

A democracia infantil não deseja aprender, somente brincar. O sistema político se esvai numa entidade espiritual, distante, opaca e desconhecida. Não nos interessa saber como funciona o governo, como se vence uma eleição. Basta que minhas contas estejam pagas e que meu consumismo possa se perpetuar nos desejos da moda.

O domingo não será o dia da mudança, infelizmente. Será um dia de risco, que correremos se optarmos pela arena no sentido de espetáculo romano, e não no sentido de reflexão grega. Nesta democracia tardia, ainda adolescente, é fundamental que, antes de crucificar personas eleitas, tenhamos que carregar espelhos para as ruas das grandes cidades. Poderemos nos ver, e não nos atirarmos aos leões para que os sujeitos criadores do show sorriam e se divirtam com o sangue alheio.

Olhar para a própria ignorância - e se reconhecer como tal - pode ser o primeiro passo para assimilar e vivenciar a ideia de que a corrupção pertence a todos nós, não apenas ao PT e ao PSDB. Deixemos de ser o PMDB, sempre presente, mas apontando o dedo como se nunca estivesse ali.