quinta-feira, 10 de março de 2016

Tecnologia, a arma verde

Mário Mantovani, diretor da ONG SOS Mata Atlântica
Marcus Vinicius Batista

* Matéria publicada, originalmente, na revista Guaiaó, edição n.9


O ambientalista Mário Mantovani, de 59 anos, só confirmou sua vocação no ano retrasado. Quando visitava os pais, ele recebeu a notícia pela mãe. Ela contou ao filho que, quando ele tinha 10 anos, os dois tiveram uma conversa. Mário não se lembrava, mas assina embaixo das palavras da mãe. Dona Maria do Carmo teria dito ao menino: “Mário, sua missão na vida é cuidar da natureza”. Hoje, ela – aos 83 anos – acompanha e adora programas sobre ecologia na TV.

Profecias à parte, Mário Mantovani é um dos principais ambientalistas brasileiros, tanto em visibilidade quanto em ações e influência política. Ele é um dos fundadores da ONG SOS Mata Atlântica, entidade criada em 1986 e que possui 300 mil contribuintes anuais.

Mas Mário começou antes, em 1973, na União dos Escoteiros, ainda adolescente. Não havia movimento ambientalista organizado. Os escoteiros haviam sido convidados para divulgar a mensagem da Conferência de Estocolmo, na Suécia, que ocorrera no ano anterior: “pensar global, agir local”.

Depois de dois cursos técnicos, virou bancário. Por ironia, gerente de crédito agrícola. Em meados dos anos 70, Mário foi estudar Engenharia Florestal no Rio de Janeiro, animado por conta de fundos financeiros de reflorestamento. Largou logo início e se mudou para São Paulo, atrás de cursos de ciências sociais. Acabou em Geografia, na PUC-SP. Na política estudantil, Mantovani se envolveu nas lutas pela Estação Ecológica da Jureia. Daí, o ambientalismo profissional. “Tive a sorte de estar no lugar certo na hora errada.”

Hoje, o ambientalismo – para Mantovani – necessita de uma estrutura profissional, que envolva conhecimento jurídico e científico, estratégias de comunicação e tecnologia. A SOS Mata Atlântica compra, por exemplo, imagens de satélite para mapear 17 Estados brasileiros. “Precisamos dos melhores profissionais e da melhor tecnologia, porque seremos contestados. Mas o Meio Ambiente vive seu melhor momento porque eu consigo quantificar e qualificar todas as informações e fazer política com estes dados.”

A Mata Atlântica possui, hoje, 8% da área original. No Estado de São Paulo, chega quase a 20%, mas da área protegida pela legislação. Do território devastado no país, a ONG estima que metade serve para especulação fundiária, não mais para a produção agrícola.

A conversa com a revista Guaiaó aconteceu em três partes, numa tarde com termômetros flertando entre 35 e 38ºC. O primeiro encontro se deu durante almoço num restaurante do Centro de Santos. Depois, o cenário foi a Biblioteca de Artes, da Secretaria Municipal de Cultura. O desfecho, na antessala do gabinete do secretário Fábio Nunes, o Fabião. “Faço política 24 horas diárias. Sempre”, explicou o ambientalista.

Na entrevista a seguir, Mantovani falou sobre a evolução da luta pela preservação ambiental, do fascínio pela tecnologia como arma de envolvimento das pessoas e sobre o que move a agenda do ambientalismo profissional, menos preocupado com protestos, mais consciente de que informação é o futuro verde.

Guaiaó: Você entrou no ambientalismo pela defesa das florestas. Como você enxerga o Código Florestal? Foi uma derrota política?

Mário Mantovani: Foi uma derrota política para o Brasil. Se fosse só para nós, estava resolvido. (risos) Não teria nenhum impacto na nação. O grande drama é o impacto para o Brasil. O fato de se retirar proteção de margens de rios e dar uma anistia foi grave. E o mais grave foi retirar uma conquista da Constituição, quer era a função social da terra. Quando o Brasil colocou na função social da terra os temas ambientais, éramos um país evoluído. O maior problema ambiental brasileiro é fundiário. Em um país onde 80% das terras pertencem a menos de 20% dos proprietários, tem alguma coisa errada. E a coisa errada prosperou. A anistia foi ampla, geral e irrestrita. O nosso dinheiro continua financiando a compra de veneno. No crédito agrícola, sai mais dinheiro para compra de veneno do que para a agricultura familiar. Veneno não é que os ruralistas chamam, em Brasília, de defensivos agrícolas. Qualquer embalagem com duas caveiras e dois ossos não é defensivo, é veneno. Esse lobby tem mais dinheiro do que a agricultura familiar. (O Brasil utiliza nas lavouras, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa – pelo menos 10 produtos banidos pela União Europeia e pelos Estados Unidos. Um deles, no Paraguai.)

Guaiaó: A que você credita essa derrota? Quais foram os motivos?

Mário Mantovani: O Governo, nos últimos tempos, vem cedendo a todo tipo de chantagem por causa da governabilidade. Aceitou vender a mãe e – o que é pior – entregava. No país com recessão brava, de onde vinha o dinheiro? Da venda do agronegócio. Brigamos como movimento social a vida toda: o Brasil não poderia ser um país de monocultura. Um país que só entrega a bolinha de soja. Por que não processa aqui? Por que tem que sair uma bolinha de Rondônia, atravessar o país e chegar no Porto de Santos, parando a Via Anchieta com os caminhões? Olha que insanidade! O crédito agrícola que usa 70% das águas brasileiras exige que um motorista, com salário R$ 800, dirija em estradas cheias de buracos, arriscando a vida dele e de outros para embarcar no Porto de Santos. Não tem sentido ou lógica. Derruba matas e concentra terras. Expande a fronteira agrícola para cima da Amazônia e o Poder Público tem que levar escola, posto de saúde e transporte. É um custo muito caro para o Brasil.

Guaiaó: Qual é o quadro hoje?

Mário Mantovani: São cinco milhões de propriedades, que ocupam 560 milhões de hectares. Deste total, 60 milhões são áreas de cultivo, de abobrinha à soja. 200 milhões são pasto para gado, para sermos um dos maiores exportadores de carne do mundo hoje. O pasto saiu das regiões Sul e Sudeste e hoje se desloca para a região da Amazônia. E onde estão os 300 milhões? Especulação! Ora, 60 milhões tem na Mata Atlântica para serem usados. Não precisa invadir outros biomas, levar uma infraestrutura. Por que não se fazem agrovilas planejadas na Amazônia? Com a garantia de energia, água, transporte, silagem. Hoje, é especulação. E a irrigação é feita com dinheiro público.

Guaiaó: No litoral de São Paulo, o maior adversário da Mata Atlântica é a especulação imobiliária? Qual é a situação hoje?

Mário Mantovani: É. Mas a situação hoje é muito boa. Temos um aliado que ninguém possui: a Serra do Mar, que estabelece o limite. Você tem bairro-cota, as ocupações de parque, claro. O Estado não faz a intervenção que precisa. É um conflito bem específico. O litoral daqui, do ponto de vista de preservação da Mata Atlântica, é o melhor do Brasil. O Vale do Ribeira está bem, em termos de preservação. Mas não podemos deixar nas mãos de prefeitos e vereadores. Tem que estar nas mãos da sociedade. O primeiro mapeamento do Brasil foi feito pela sociedade, com apoio das universidades e dos meios de comunicação.

Guaiaó: O que significam, para as cidades do litoral de São Paulo, os Planos Municipais de Mata Atlântica?

Mário Mantovani: No nosso caso, é garantir o que sobrou. O que a natureza nos deu, a Serra do Mar. Combater as desigualdades nas áreas especulativas. Aqui, retira-se o pequeno proprietário, os caiçaras. No Plano Municipal de Mata Atlântica, onde há cobertura florestal, onde o código genético está preservado, o proprietário tem que ser reconhecido como protetor de floresta. A área com impacto precisa ser estudada. A ideia é que a sociedade reconheça a mata como ativo, como patrimônio. Não é a SOS ou o Governo do Estado quem vai dizer o que fazer.

Guaiaó: Qual é a sua expectativa sobre a reação das Prefeituras? As Prefeituras sofrem pressões políticas do capital especulativo imobiliário.

Mário Mantovani: São 3400 municípios no país. É um aprendizado. Nós queremos trazer informações para a sociedade. Assim como quando publicamos o Atlas da Mata Atlântica. Na época, os produtores de celulose do Paraná mudaram para conseguir o selo internacional e vender lá fora. Denunciamos Minas Gerais, pelo quinto ano consecutivo, como o Estado que mais desmata no país. Nossa ideia no litoral é a mesma coisa. Pré-sal, inadequação dos portos, especulação imobiliária comprometem a qualidade de vida. O maior problema do litoral é a ocupação irregular e a criação de atividades econômicas só para o turismo, para alguém que vem aqui seis vezes por ano, no máximo. Nós invertemos. Colocamos aqui o que tinha de mais fácil.

Guaiaó: Mas dá para mudar?

Mário Mantovani: Não pode continuar. O que posso mudar? Olha o contrassenso. Até alguns atrás, ninguém queria morar no mato. Hoje, mora em frente. Passou a ser um ativo. Qual é o discurso? More perto da natureza, more no verde. Pintam até de verde o chão. Uma área natural é um ativo. Chegar para o sujeito e dizer: seu mar está cheio de cocô, sua qualidade de vida está comprometida, não há mais áreas de circulação, há problemas de segurança, saúde e educação. Você vai continuar neste roteiro ou seguir outro modelo? Essa escolha tem que ser feita pela sociedade. A sociedade precisa comprar essa história e interferir. A válvula de escape são as leis que envolvem a Mata Atlântica. Não podem mais ser papéis do promotor chato, do ambientalista chato. O Plano Municipal é isso!

Guaiaó: No caso de Santos, há a Área Continental, com grande concentração de Mata Atlântica e pouca densidade populacional. Há a possibilidade de criação de Unidades de Conservação por lá?

Mário Mantovani: Quanto custaria para as cidades abrir uma área como essa? Em 1988, apoiamos um estudo da Magda Lombardo, uma jovem de 25 anos da USP. Ela falava naquela época em ilhas de calor. Diferenças em São Paulo de até 8ºC. (Em Santos, a diferença chega a 6ºC, comparando a orla e bairros atrás de duas linhas de prédios). Na época, era uma besteira. Hoje, é conceito mundial.

Guaiaó: E os mananciais do litoral do Estado?

Mário Mantovani: Vou inverter a pergunta. Qual é a luta da SOS Mata Atlântica? Que nenhum dos rios receba esgoto. Se não houvesse esgoto, teríamos uma possibilidade muito maior. A Bilings, por exemplo. Não temos a visão de planejamento. As cidades crescem de qualquer jeito. Não se pode crescer em direção à Serra do Mar. Essa terra tem que ficar para nossos filhos, nossos netos. Os parques, as áreas de preservação ambiental, não são do Governo. São meus, são nossos! Mas é preciso educação. Se a sociedade decidisse acabar com o despejo irregular de esgoto, não teríamos mais praias impróprias. O sujeito vê a placa e, mesmo assim, toma banho de mar. 70% das doenças têm origem hídrica.

Guaiaó: Como pode ser feito politicamente hoje? O que você quer dizer com papel da sociedade?

Mário Mantovani:
As pessoas precisam ocupar os Conselhos Municipais de Meio Ambiente. Hoje, há muita pressão do setor especulativo, que interfere na Lei de Uso e Solo. Deve haver o Parlamento. Mas a sociedade precisa pressionar para garantir qualidade de vida. Fizemos uma proposta mais interessante. Na Lei da Mata Atlântica, quem faz cumprir a legislação é o conselho, que inclusive está acima do prefeito. Já que temos uma condição ambiental favorável, quem poderia cuidar disso? A sociedade, como sempre foi. Todas as denúncias e enfrentamentos vieram da sociedade. 

"A luta ambiental mudou de estratégia", diz Mantovani

Mário Mantovani adora falar de Internet. Adora conversar via Internet. Ele vê, no meio virtual, o novo caminho para o discurso ambiental. Para ele, o que vale é falar de meio ambiente, ainda que sejam ambientalistas de teclado e sofá. O novo ambientalismo se faz por pequenas mudanças, no nível da individualidade do cidadão, ao mesmo tempo em que se envolve com temas amplos, em escala global. “A revolução saiu do gueto. Muitos movimentos fracassaram porque ficaram nos guetos e sofrem com isso.”

As redes sociais seriam instrumentos essenciais para a descoberta e difusão das cadeias de consumo. Qual é o caminho do produto, da matéria-prima até às prateleiras das lojas? Onde se pratica o trabalho escravo? São perguntas que podem ser respondidas com maior velocidade pelos meios virtuais, na opinião de quem começou no ambientalismo se comunicando por mimeógrafo.

Guaiaó: Como você entende a participação da sociedade, quando muitos dos comportamentos estão ligados ao consumo?

Mário Mantovani: Pois é. Comecei brigando, nos anos 70, contra os militares. Mas acho que a grande sacada, para o futuro, é o consumo. Sua pegada é o consumo, a prática. Tudo o que for feito passa pelo consumo, da roupa ao combustível, da comida ao cartão de crédito. As primeiras informações vinham pelo mimeógrafo e a turma ainda queria beber o álcool. (risos) Anos 80! Hoje, você tem a imagem. As pessoas falam do panda, do urso polar. O mundo globalizou. Você consegue falar de Belo Monte, na região Norte. Nos anos 80, eu falava de Jureia e o sujeito me olhava com aquela cara de “sobre o que você está falando?” As pessoas me perguntavam em que lugar da Amazônia ficava a Mata Atlântica. Criamos um tema, levamos para a sociedade, justificamos e ele virou um tema científico-técnico. No caso do Código Florestal, conseguimos levar o debate em âmbito nacional. É o processo civilizatório. O Brasil é muito novo. Pegamos a rebarba do mundo.

Guaiaó: A forma de sensibilizar o cidadão deixou de ser mais abstrata, de valores, e passou a ser uma discussão mais concreta, do cotidiano? Ou seja: o que o consumidor pode ou não comprar?

Mário Mantovani: Não é ainda, mas será. Você já tem exemplos em várias partes do mundo. Quando eu imaginaria que uma folha de papel é de fontes conhecidas renováveis? Quando eu imaginaria que as sacolinhas dos supermercados virariam uma discussão nacional? Hoje se fala do teor de sódio no alimento. É o máximo. É uma discussão importantíssima e que ainda não chegou nas classes mais baixas. A mídia ainda vende produtos nocivos, sem responsabilidade.

Guaiaó: Mas não pode ser apenas imagem?

Mário Mantovani: Mas é a imagem que está vendendo. Estamos falando de micro-revoluções. Pode ser um tema da semana. É mais fácil pressionar o Poder Público. É mais fácil conseguir uma celebridade. A árvore da sua rua, tua coleta seletiva, a praça da tua rua que está abandonada. Um bilhão de pessoas no mundo estão no Facebook. E olha que no Brasil o celular não pega. Imagina se pegasse! Nós vamos aprender a usar. Eu sou um tiozão de 60 anos que conta histórias no Facebook. Antes, contava no boteco, hoje falo imediatamente com 20 mil pessoas. O ciberativismo tem os dois lados, como o ativismo tinha antes da Internet. Tem o ativista de sofá que faz o papel dele. O legal do Meio Ambiente é que cabe tudo. Nunca teve altruísmo. Antes, tinha ideologia. Quando briguei contra as usinas nucleares, eu queria mesmo era brigar com os militares. E as usinas eram um jeito legal de engajar as pessoas. Antes, eu tinha que procurar informações na Barsa, hoje a informação está disponível para todos.

Guaiaó: A crise da água tem relação com isso, não?

Mário Mantovani: Claro, é um problema de consumo. A irrigação no Brasil, que desperdiça água para todo lado. Retira-se água do rio sem controle. Vejo a crise como oportunidade, como a do apagão de energia, de alguns anos atrás. Vamos ter que repensar. Qual é o grande drama do Brasil? Achar que nada tem limite. Deus que deu. A floresta, a água. 40% da água tratada é perdida. Dentro da visão do consumo, se conseguirmos acabar com o desperdício, avançaremos como civilização. Tudo é desperdício. 60% das verduras se perdem no caminho. É uma cadeia de desperdício. Alguns países já sentiram a falta, talvez por causa de guerras, e aprenderam. Nós, não.

Guaiaó: Como você vê o papel do Estado, no caso de São Paulo?

Mário Mantovani: Vários aspectos. O assunto foi mal encaminhado pelo Governo do Estado. Primeiro, foi usado como tema de campanha eleitoral. Segundo, o governador não tinha que chamar para si a responsabilidade. Desde 1991, existe o Comitê de Bacias Hidrográficas. O cenário estava aí desde a década de 90. Além disso, tem um problema sério: a tendência de transferir a responsabilidade. Na Sociedade de Consumo, precisamos entender que temos direitos. Pagamos os impostos mais altos do mundo.

Guaiaó: E as empresas? Elas mudaram mesmo de postura?

Mário Mantovani: Primeiro, as empresas descobriram que a poluição era, na verdade, desperdício. Olha o conceito! Pesou no bolso. Não era amor à causa nem precisa. Estavam jogando fora matéria-prima. Tecnologia também. As empresas perceberam que esta mudança se pagava e ainda dava lucro. Depois, o maior capital da empresa: a imagem dela. O nome de uma empresa pode valer mais do que todos os ativos. As empresas precisam mostrar que são limpas. E há também a pressão da opinião pública.

*****

Mário Mantovani é viciado em política. Ele passou as duas últimas décadas em Brasília. “Paguei mico por 14 anos. Só nos últimos seis, aprendi como lidar com os parlamentares e com o Governo.”

São três dias por semana na capital federal, onde discute, apresenta e pressiona os parlamentares por mudanças e aprovações de leis ambientais. “Fico mais tempo lá do que muitos deputados. Virei um lobista pelo Meio Ambiente. Mas nunca tive filiação partidária.”

Guaiaó: O que mudou depois de 20 anos em Brasília? Você precisou sair da rua para as coisas acontecerem?

Mário Mantovani: São duas coisas. É preciso ter uma causa, uma causa importante para o país dentro de um processo civilizatório. Isso te dá liberdade para fazer qualquer coisa em Brasília e não pagar mico. É preciso dar sentido. Antigamente, você não tinha. Eu tinha uma prática da redemocratização do Brasil, das Diretas, de alguns movimentos nos anos 80. Ver as pessoas combatendo a ditadura. Cada ato, por menor que fosse, tinha sentido da multidão. Estávamos aperfeiçoando a história que o Brasil estava construindo. O processo de redemocratização criou uma onda de cidadania tão forte que assuntos mais diversos apareceram. E eles se materializaram na Constituição de 1988. Não era direita, não era esquerda. Eu era ambientalista. Tanto que o pessoal me chamava de melancia, verde por fora, vermelho por dentro. Nascia no Brasil essa semente ambientalista, que gera um movimento social. Os ambientalistas elegeram um deputado constituinte, o Fábio Feldmann. Dizíamos que tínhamos uma Kombi, onde cabiam todos os ambientalistas do Congresso. Hoje não é muito diferente, mas temos outra dinâmica.

Guaiaó: Como é essa dinâmica hoje?

Mário Mantovani: Hoje, a gente está em movimento de formação. Não é ideológico e não queremos que seja ideológico. Se naquele momento (anos 80) interessava ter uma cara verde para marcar posição, hoje quero que o cara da Cultura, o cara da Tecnologia, o cara da Habitação, o cara da Saúde e o da Educação. Todos eles têm que ser verdes. Se não, fica rotulado como grupo. Não quero ser chamado de ambientalista para competir com o ruralista, com alguém de outro lobby. Naquele momento, quando se conseguiu colocar na Constituição o capítulo do Meio Ambiente, isso mudou a perspectiva. Em outros países, isso não existia. A Carta Magna trazia direitos que antes eram impensáveis. Nós tínhamos a visão de um país que teria a Lei dos Crimes Ambientais, a Lei das Águas, a Lei da Biodiversidade. O Brasil falava disso em 1990. O movimento depois arrefeceu, entrou em 1992 embalado (Rio 92). O mais importante era que uma base de Meio Ambiente estava muito bem feita. Qualquer movimento estava calçado. A luta pela Mata Atlântica era fazer a regulamentação de um bioma, previsto pela Constituição. Com aquela prática, viemos para o Congresso Nacional. O primeiro movimento era testar a democracia.

Guaiaó: Como você lida hoje com o Congresso dividido, todo fatiado em bancadas, mesmo com intersecção entre elas?

Mário Mantovani: Buscando um ponto comum. Por exemplo: a Lei de Resíduos Sólidos. Buscamos um deputado que tinha conhecimento, profundidade, trouxemos os interessados, de catadores às indústrias, porque esta lei estava há 20 anos no Congresso. Fazíamos manifestações de todo tipo. Levávamos bolo para comemorar 10 anos da lei, entrávamos com crianças, abraçávamos, subíamos de balão, invadíamos, levávamos grupo de palhaços.

Guaiaó: Hoje, estes protestos perderam o sentido ou precisam de outros caminhos?

Mário Mantovani: Isso nunca vai perder o sentido. Você tem que ter uma ação para fora, para aparecer, gritar, espernear, mas tem que ter um grupo lá dentro, negociando e conversando, com advogados. É o que se faz em Brasília hoje.

Guaiaó: Foi necessária a profissionalização da causa ambiental para se lidar com as instituições de poder?

Mário Mantovani: Tinha que ter, mas não pode perder o sentido de movimento social. O que diferencia o movimento ambiental é juntar pessoas com as mais diversas queixas. Árvores, águas, construção de barragens. Este grupo que se junta para o embate e busca direitos coletivos não pode morrer nunca. Mas uma parte disso precisou se profissionalizar. Nós nos inspiramos em grandes movimentos, como Greenpeace, WWF, Conservation. Precisa de um CNPJ, precisa de gente para responder, entrar com ações na Justiça. Precisa de uma ação mais efetiva. A SOS Mata Atlântica contrata imagens de satélite para mapeamento. São 3400 municípios. Qualquer coisa com três hectares, nós pegamos. Numa ação na Justiça, tem a outra parte, que pedirá indenização por danos morais. A SOS fez uma profissionalização que é referência. Muitas entidades começaram e ficaram pelo caminho.

Guaiaó: Neste cenário que você coloca, o Partido Verde perde o sentido de existência?

Mário Mantovani: Não perde. Mas há um partido, o Partido Ecológico Nacional (PEN), que não tem nada de ecológico. O Partido Verde ganhou espaço no mundo todo, mas viveu momentos de altos e baixos como outros partidos. Todos os partidos estão em baixa. Cada partido ganhou uma marca. O PMDB, de oportunistas e negociatas. O PT, que chamam de petralhas, foi muito importante. Essa dinâmica partidária não pode estar atrelada ao ambientalismo. Se eu me filiar a um partido, posso ser reduzido a isso. Se eu me candidatar, podem alegar que faço pela candidatura.

Guaiáo: Você já pensou em desistir? Qual foi o pior momento na tua história como ambientalista?

Mário Mantovani: Foram muitos momentos, cada uma à sua maneira. Eu diria que a situação mais difícil não é a luta com Brasília. Nenhuma organização tem esse histórico de política pública, com a legitimidade de ser nacional. Não me lembro de um momento em que quase parei. Tomei pancadas fortes, como o Código Florestal, mas voltei lá só de raiva. A luta contra as usinas nucleares foi outra derrota.

Guaiaó: Qual é o futuro da política ambiental?

Mário Mantovani: Não há mais espaço só para amor à causa, o bicho-grilo, paz e amor. Aquilo era intuitivo. Era o tempo da metamorfose ambulante. Hoje, a transformação é rápida, mas se trabalha com informação e tecnologia. Neguinho vê a informação e diz: “vamos fazer um aplicativo disso.” Um exemplo: estava na Universidade Santa Maria, falando para 200 pessoas sobre água, um grupo heterogêneo. A palestra estava difícil, ninguém perguntava. Até que sugeri que se fizesse uma grupo no WhatsApp para as perguntas. Em três minutos, um moleque organizou e choveram perguntas. Choveram perguntas! Depois, outro menino sugeriu fazer um aplicativo para o Plano Municipal de Mata Atlântica.

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O que não precisava ser dito

Mário Mantovani nasceu em 20 de dezembro de 1955, em Assis, no interior de São Paulo. Passou a infância às margens do rio Parapanema. Estudou técnico em Contabilidade e Mecânica Industrial na cidade natal e trabalhou como bancário.

Ele entrou na PUC-SP aos 19 anos, em 1975, e se formou em Geografia cinco anos depois. Em 40 anos de ambientalismo, Mário passou do voluntariado à profissionalização. Atualmente, ocupa o cargo de diretor de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica, organização que ajudou a fundar em 1986.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Onde vivem os monstros


O monstro carbonizado (Foto: Carlos Abelha/G1-Santos)
Marcus Vinicius Batista

Acuado, o monstro nada pôde fazer contra o fogo. Ele estava preso ao chão que escolheu viver, pela mente acovardada dos homens, desde o século 16. O Ipupiara, endeusado em monumento, queimou onde se consolidou como lenda. A figura mitológica que apavorava os viajantes ficou inofensiva diante dos monstros deste século.

O Ipupiara é uma fotografia em fibra de vidro e histórias. É a alegoria de tempos em que os homens pilhavam, matavam, violentavam enquanto temiam a terra desconhecida, enquanto construíam seu próprio medo diante do que não poderiam controlar. Eles continuam assim, porém seus medos são de outra natureza, registráveis em fotos, localizáveis pelo teclado.

Hoje, o Ipupiara é o retrato do medo de nós mesmos. O pavor da violência gratuita, sem motivo consistente, apenas sustentada pelo prazer perverso de demolir aquilo que não conheço como símbolo, que não reconheço como parte de mim, que entendo somente como obstáculo ou como descarga de ódio inconsequente.

Por mais que as sucessivas administrações locais insistam em fingir interesse no passado, o Ipupiara materializa um dos poucos instantes em que se torna possível conversar com a São Vicente de outro dia. Compreender, pelas escamas do monstro, por que homens resolveram aportar aqui e reconstruir a vida, quais seus desejos, seus temores, os estragos que fizeram, a cultura que assimilaram e a cultura que modificaram. O Ipupiara, esquecido no cotidiano da praça 22 de janeiro, teima em nos dizer quem somos nas entranhas e, infelizmente, ainda nos indica o quanto bebemos na nossa maldade.

O Ipupiara vinha sendo torturado em silêncio. Primeiro, levaram suas mãos. Na quarta-feira de madrugada, as chamas o consumiram até a carcaça. O incêndio incinerou também parte do legado do escultor Daniel Gonzalez, um filósofo de olhar único, um artista criativo e múltiplo.

São Vicente é o sarcasmo e o espelho de como quem tem o poder se comporta para preservar a cultura. A primeira vila do Brasil – esqueça a papagaiada de primeira cidade, que é Salvador – fala de si mesma como pioneira, mas é anacrônica na conservação da própria imagem. O Porto da Naus, hoje mais um terreno baldio, é a verdade histórica não apenas do começo de São Vicente, mas da forma bizarra em que se olha pelo retrovisor.

O Ipupiara carbonizado dá um suspiro e nos aponta que os monstros estão entre nós há muito tempo. Não em forma de estátua em fibra de vidro, mas na incompetência de quem desconhece que a história segue como memória, identidade e pensamento, em beleza e monstruosidade.


terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Uma carta infantil

Eles estão de mal?

Marcus Vinicius Batista

A carta escrita pelo vice-presidente Michel Temer, mais do que servir como gatilho para ser mais do mesmo na crise que congela o país, representa o retrato de como se pratica política por aqui. É um espelho sobre como ainda somos juvenis - por que não infantis, eventualmente? - quando temos que lidar com os processos democráticos.

A carta - qualquer alienígena sabe - foi a tentativa de Temer de se divorciar de um casamento que lhe deu muitos benefícios em cinco anos. Ao contrário do texto, o vice-presidente sempre usufruiu do poder e participou com garras e fome da festa da distribuição de cargos que alcançou a insanidade de 39 ministérios.

A carta não é um desabafo, é uma jogada de quem sempre teve ambição desmedida e sede de poder. Temer tem ciência, acima de tudo, de que jamais será presidente do Brasil pelas vias tradicionais. Nunca foi puxador de votos, sempre entrou pelas portas da legenda, o PMDB.

Desvencilhar-se de Dilma Rousseff é a chance de procurar o bilhete premiado. Tanto que Temer procura passar a imagem de conciliador, de unificador de todas as correntes. Outra ilusão, diante de um partido multifacetado, que se sustenta por alianças internas e externas de ocasião, pouco importa o preço das almas a serem vendidas ou compradas.

O texto de Michel Temer o trai, e não precisamos das entrelinhas para perceber suas razões. O vice-presidente fala de fisiologismo com a naturalidade e coerência de um congressista brasileiro. Presentear e dividir cargos não é uma atitude ética, caro vice-presidente. É o retrato escarrado da podridão que norteia a política nacional, vide a confusão em torno do reizinho Eduardo Cunha que, em outras bandas mais sérias, já estaria algemado e atrás das grades. No mínimo, com a carta de renúncia nas mãos.

O histórico de Michel Temer o denuncia. Quem acompanha o Porto de Santos sabe o quanto sua influência foi forte pelos armazéns e, principalmente, pelos gabinetes da Codesp. Duas décadas como eminência parda. O controle de cargos e salários é visto, dentro da política, como uma qualidade, marcante em sujeitos classificados como articuladores, conciliadores, mestres das sombras, parte da responsabilidade de um vice-presidente, que nada tem de decorativo.

A carta de Temer também significa os reais desejos de um político, palavra sinônima de vaidade. Até os homens que se escondem são vaidosos e se traem, eventualmente. Como conhece a fundo o PMDB - e se cobriu com esta colcha de tantos retalhos -, Temer personificou sua função no Governo Dilma. É um traço juvenil de uma cultura tropical.

O sistema político brasileiro é personalista. Os partidos (34, no momento, mas pode mudar ao final deste texto) são, em sua maioria, prateleiras de um supermercado de influências e interesses. O eleitor, que não é bobo nem vítima, percebe onde o voto aperta e escolhe as personalidades. Temer é o reflexo deste comportamento, em que tudo se resolve na caneta de quem manda, e pouco no grupo que o cerca.

O vice-presidente se sentiu excluído do Governo Dilma. Mas a história não pode ser redesenhada de acordo com o pincel do pintor. O PMDB esteve abraçado com o PT enquanto o dinheiro corria pelas veias das instituições, assim como foi parceiro de primeira hora do PSDB durante a gestão Fernando Henrique e o abandonou com a derrota no horizonte. O que esperar de um partido com centenas de prefeituras e milhares de parlamentares em todas as instâncias, mas incapaz de apresentar um candidato à Presidência nos últimos 25 anos?

A carta de Michel Temer foi comparada, pelos apressados, ingênuos ou mal intencionados, com a carta de suicídio do ex-presidente Getúlio Vargas. Foi, de fato, a morte do mínimo de seriedade que restava neste cenário de crise. Mais coerentes foram as piadas em torno do texto na Internet.

A carta do vice-presidente entrará para a História, mas para mostrar outra vida, uma biografia de rodapé, um pingo que integrará um dos períodos mais sujos e tristes de um país que ainda não sabe como fazer política em tempos de democracia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O curso e os pecados

Quer aprender a ocupar escolas? Curso no Palácio dos Bandeirantes
Foto: Jornalirismo

Marcus Vinicius Batista

Abri o jornal na tarde de hoje e vi o seguinte anúncio: "Matrículas abertas! Aproveite suas férias e participe do curso de extensão mais procurado do verão. Vagas limitadas!"

Não havia ninguém ao meu lado para dividir a fantasia. Apanhei uma tesoura e resolvi guardar o recorte. Vai que um inimigo precise. Era de graça. O número de telefone, no canto direito inferior, me fez ligar para matar a curiosidade.

Liguei e, no terceiro toque, uma moça atendeu: "Palácio dos Bandeirantes."

"Oi, desculpe-me, foi engano. Queria saber sobre um curso."

"Ah, é aqui mesmo. O Curso de Reorganização de Escolas."

"Isso. Fiquei curioso."

"Claro, você quer se inscrever?"

"Não, não. Apenas vi um anúncio no jornal."

"Olha, se inscreva rápido. Tem muita procura e as aulas são com o próprio governador."

"Sério?"

"Sério. Inclusive porque falta professor por aqui. Vou te mandar um programa das aulas."

Cinco minutos depois, recebi um e-mail. Ao abrir a mensagem, o cronograma. Curso apostilado, com aulas em vídeo e toda a parafernália da educação fast-food.

O curso tem sete lições. Uma semana de aulas. A primeira se chama Soberba. Nesta aula, o Governo vai te ensinar como reduzir a importância dos estudantes, com argumentos que sustentam que jovens não são capazes de saber nada. Até porque não tiveram tantas aulas assim, explica o folheto.

Na lição seguinte, de nome Avareza, o curso pretende mostrar que a ordem é sempre não investir sem falar de dinheiro. Fecham-se escolas, alega-se falta de recursos - jamais mencione números financeiros, apenas estatísticas manipuláveis a seu favor - e usam-se palavras como otimização, sinônima de reorganização, no sentido pejorativo da bagunça.

Na terceira aula, fale de Gula. Sede e fome de poder. Tome decisões sem consultar ninguém. Imponha as regras de cima para baixo, sempre contando com a falta de crítica política das pessoas. Gula, deste modo, é irmã da soberba. No folheto, uma observação: as aulas são interligadas. Chame de interdisciplinaridade.

Para equilibrar o ritmo, acelerado na aula anterior, o curso traz a Preguiça. Não há necessidade de esforço no debate público. Fale em uso político pelo movimento estudantil. Tudo que acontecer é política. Na cortina de fumaça, diminuímos a política estudantil, transformando o mérito em deficiência.

O próximo encontro aborda a Ira. Morda e assopre, na prática. Finja conversar, convoque as autoridades fardadas. Fale em Guerra. Troque o giz e lousa por cassetetes e sprays de pimenta. Estudantes são baderneiros que deveriam fingir que aprendem nas escolas sem infra-estrutura e com professores desmotivados.

O auge do curso parece ser a Luxúria. Neste ponto, aprendemos como sacrificar todos pelo prazer do poder. O Reorganizador de Escolas precisa responsabilizar professores, culpar os gestores locais, criminalizar estudantes e, como gozo final, decapitar o secretário de Educação em praça pública, enquanto fala muito sem dizer algo diante de câmeras e microfones.

A última aula se chama Vaidade. Diante da pior popularidade, o Reorganizador precisa manter a pose. Dizer que está aberto ao diálogo, mesmo que o tenha sempre negado. Adiar as medidas autoritárias, descansar o sono de beleza e sonhar com a retomada do processo quando a caldeira esfriar.

Terminei a leitura, pensei por um segundo, fechei a mensagem e voltei a cogitar sobre como as férias são valiosas demais para desperdiçar com cursos preparados às pressas.

sábado, 14 de novembro de 2015

A guerra faz parte do show



Marcus Vinicius Batista

Vivemos sob estado de guerra. Não se trata apenas dos conflitos em andamento, seja na Nigéria, na Síria, no Afeganistão, no Iraque ou em Paris. Não me refiro somente aos ataques de grupos típicos do mundo pós-moderno, que falseiam os territórios, que desprezam governos, mas não o poder, no qual prevalecem - como pano de fundo - os olhares mercadológicos sobre a vida e a morte.

Os conflitos ultrapassam os limites entre perspectiva ocidental e olhar islâmico sobre o mundo. O choque de civilizações ruiu como conceito e prática política desde que a globalização aportou como nova versão do tempo-espaço.

A guerra em que vivemos é maior do que uma crise de valores, que me soa mais permanente do que transitória, como se caracterizam as crises. Talvez tenhamos que admitir que somos assim, não em crise, que pressupõe mudanças amanhã, ao nascer do sol.

A guerra e sua face violenta sempre esteve entre nós. Sem entrar no mérito, o terror também sempre esteve entre nós, depende do ângulo de quem conta a história. O terror é irmão gêmeo da violência e da retórica, duas características humanas. Basta abrir qualquer livro de História, de qualquer período, de qualquer corrente de pensamento.

Vivemos, neste momento, uma guerra sob as asas do espetáculo, da transformação instantânea da tragédia humana em falso ineditismo, em novidade que camufla nossos velhos defeitos e desvios, nossas eternas doenças. O show precisa parir comoção. O show nos atrai por causas nobres, eleitas pelo senso comum e pela correnteza do pensamento único, que nos tornam melhores sem que precisemos sair do lugar.

Não há necessidade de se mobilizar, tampouco impulso em compreender com profundidade o que se passa (demanda tempo!), com motivações, impactos e rol de responsáveis e cúmplices. Basta um grito, uma imagem e estamos dentro do palco, integrantes do espetáculo que quantifica e localiza desastres alheios, sem que sejamos por vezes capazes nos incluirmos como distantes e indiferentes.

O show clama por súditos, ávidos por um novo conflito a partir do conflito midiático que o sensibilizou. Aí está nossa guerra, um combate seguro, de agressões genéricas, espalhadas pelos ventos virtuais que não refrescam ou assustam ninguém. Teclados e monitores são escudos blindados contra a crueza além da janela. É tudo retórica, a polêmica da semana que sobrevive pela sobreposição de fatos, pelo horror em estado de imagem, enquanto despreza a reflexão, o contexto e o processo histórico por natureza.

O espetáculo se alimenta da plateia. E uma plateia se organiza pelo barulho e, em parte, se houver um adversário. Um apenas, não vários, como se vê em quaisquer fenômenos políticos, econômicos e sociais. É uma peça de propaganda de guerra, que simultaneamente conquista corações e mentes - com o perdão do clichê - e define quais corações e mentes devem ser odiados. Uma história cinematográfica, na qual mocinhos e vilões precisam ter papéis claros, para rápido consumo, como nas dependências de uma lanchonete fast-food.

A lógica envolve a construção imediata de um inimigo, que tenha ao menos cheiro de instituição. Instituições legitimam oponentes. A vilanização cria a primeira camada maniqueísta para que, armados de discursos prontos, possamos lamentar e vociferar com a diferença de uma postagem. O problema é que o maniqueísmo passa por etapas de metamorfose, reproduzindo novos elementos para a virulência, para engrossar o juízo de valores que esconde nossa própria hipocrisia.

Mais do que a lógica econômico-financeira do noticiário, nós nos mobilizamos por um caminho e acabamos exorcistas dos demais. A hipocrisia ou a solidariedade não se manifestam por exclusividade ou eliminação. Amar uma tragédia não significa ignorar a outra. Só que o espetáculo se agarra no choque oco para se perpetuar nos próprios conteúdos que integram esse drama. Mariana vira Paris. Paris vira Nigéria. Nigéria se opõe à Mariana.

Enquanto nos preocupamos em apontar o dedo para determinar qual tragédia merece mais pontos na Bolsa de Valores, ficamos à mercê da superficialidade e da fragmentação que navegam como hóspedes nas costas da desinformação. O foco vira erguer armas que disparam saliva e vulgarizam palavras.

O espetáculo adora quando a guerra e a negligência reais não são questionadas com medidas políticas, populares ou não, em detrimento de quem pode dar a última palavra, ainda que espessa como brisa. O show alcança o gozo se a guerra for ganhar a conversa, se a ordem for colocar vidas humanas numa balança que pesa por nacionalidade, status via conta bancária, religião ou quaisquer outros fatores criados pela estupidez humana.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Diabo mora do lado


O deputado federal Beto Mansur. Foto: Agência Câmara

Marcus Vinicius Batista

O deputado federal Beto Mansur (PRN-SP) está no auge da carreira. Ele não está apenas na casa que pediu à Deus. Ele deixou de ser baixo clero, tornou-se um cardeal e está bem próximo do Diabo que comanda o país, o sujeito que se faz temer por toda a fauna, dos tucanos às raposas.

Mansur, como integrante da casa que o acolheu, reza pela cartilha da moral e dos bons costumes, o que reforçou seus valores e práticas políticas. Embora seja um homem do seu tempo, Beto tem uma postura bastante peculiar a ponto de me fazer pensar sobre comportamento humano. Não a ponto de duvidar de mim mesmo, mas de tentar compreender que tempo é esse, que visão ética é essa que se desenha a cada presença no noticiário.

A última peripécia foi o pagamento de mais de R$ 90 mil só esse ano para serviços de pareceres jurídicos que, descobriu-se depois, foram copiados da Internet. O copia e cola cada vez mais comum em trabalhinhos escolares. Não vejo necessidade de longos raciocínios sobre o ex-chefe do Cidoc na gestão Mansur, Wagner Mendes, ser um dos sócios do escritório de advocacia, autor dos pareceres. E nenhum dos pareceres se transformou em projeto de lei.

Quando se estuda Ética, aprende-se que não existem grandes ou pequenas ações. O valor ético ignora o valor financeiro. Vale a atitude dentro de um contexto social e cultural. Há dezenas de casos em que alunos de Direito, inclusive de pós-graduação, foram punidos por "pegar emprestado" textos alheios na Internet. Dois aconteceram numa universidade, aqui mesmo, de Santos. Portanto, sinta-se à vontade para entender a declaração do deputado federal, dada ao jornal A Tribuna: "Hoje todo mundo faz pesquisa na internet e vai buscar informações lá."

Esse episódio me remete a outro "pequeno" ato que retrata a lógica de pensamento peculiar do parlamentar. No primeiro semestre, Beto Mansur fez um selfie ao lado do prefeito Paulo Alexandre Barbosa durante o incêndio da Alemoa, a imagem que se tornou e o tornou notícia internacional.

A vaidade é uma característica inerente aos políticos. Ninguém desejaria tanto o poder, as trocas de interesses e os holofotes se não tivesse o pecado no sangue. Tanto que até o marketing político foi um tiro no pé nas eleições municipais de 2012, quando ficou em quinto lugar, com votação de vereador. Na ocasião, o atual deputado virou hit na Internet por conta do slogan "Foi obra do Beto". Exemplos acima justificados.

É preciso reconhecer que, no mundo da política, as histórias acima serão notas de rodapé na ficha dele. Hoje, ele se vê diante de um clássico dilema ético, mais complexo do que a simples decisão entre o certo e o errado. Ato falho, me perdoem: o certo e o errado dentro da maior casa legislativa soa sempre como "depende".

Beto Mansur assumiu o cargo de relator no processo de cassação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Uma vitrine para quem se alimenta de poder, mas com consequências proporcionais. Eis a encruzilhada! Se autorizar a abertura do processo de cassação, vai atrair a ira do Diabo e arriscar a própria carreira. Se travar o processo, será lembrado pela História como aquele que referendou o pacto com o Sete Peles, vendendo o próprio pescoço.

Qual será a próxima obra do Beto?

domingo, 13 de setembro de 2015

Sou contra!

Tatiana Evangelista, Marcus Vinicius Batista e Rafael de Paula

Marcus Vinicius Batista

Tive o prazer de mediar, na noite da última quinta-feira, um debate sobre a redução da Maioridade Penal. O encontro aconteceu no Pátio Iporanga, em Santos, após a exibição do filme “De Cabeça Erguida”, dirigido por Emmanuelle Bercot e protagonizado por Catherine Deneuve.

A conversa envolveu os advogados Tatiana Evangelista, contrária à redução da Maioridade Penal de 18 anos para 16 anos, e Rafael de Paula, favorável ao projeto que tramita no Congresso Nacional. Como mediador, minha responsabilidade era dar o maior espaço possível aos dois convidados, com perguntas abertas, o mais próximo possível de isenção. O debate, que se estendeu após a meia-noite, foi um momento cristalino de liberdade de expressão.

Por isso, escolho me manifestar nesta coluna, um espaço individual. Pelo título do texto, você já deduziu qual é meu posicionamento sobre o tema. Entendo que o projeto é mais uma manobra política dos parlamentares do que uma preocupação real e consistente com as causas e consequências que envolvem a violência no Brasil. 



Mais uma vez, os políticos pensam de olho nas urnas eletrônicas e com os ouvidos colados nas enquetes que pipocam na imprensa. A resposta em favor da redução solidifica um eco popular, a partir da postura da própria imprensa, incapaz – na maioria das vezes – de acompanhar histórias de maneira estrutural, de ir além dos registros pontuais do caso da semana. Falta contexto, sobra espetáculo.

Discutir a redução da Maioridade Penal é como saborear a cereja do bolo, tapando o nariz para a massa e o recheio que azedaram. É como ministrar aspirinas para um enfermo em estado terminal, cuja UTI – no quadro clínico atual – é o último endereço antes do velório.

Menores de idade não representam mais do que 10% dos crimes brasileiros. Dois terços do total são roubos e tráfico de drogas, boa parte assinou a “bronca” de criminosos adultos. Quando falamos em crimes hediondos, os menores são réus em 3% dos casos.

É claro que ambos os lados – e a existência de somente dois lados me preocupa – podem despejar pilhas de dados estatísticos para confirmar suas teses. O que me incomoda é que não testemunho parlamentares, imprensa, Poder Executivo e sociedade civil se movendo para debater, diagnosticar e propor saídas para o caos da segurança pública no país. Foco temporariamente perdido.

Preferimos eleger um dos atores da trama e culpá-lo pelos problemas da violência urbana. Apelamos para argumentos simplistas e individualistas como “e se fosse sua família?”, sem a capacidade de refletir socialmente, compreendendo que segurança pública não é uma questão isolada ou eleitoreira. Violência e segurança são temas diretamente conectados com má qualidade dos sistemas de saúde, de educação, fora a perpetuação da desigualdade social, dos preconceitos de classe e de cor. Assuntos que renderiam cada um deles uma coluna. 

Mallony, personagem principal, e a mãe
Observação final: assistam ao filme quando estiver no circuito comercial, a partir do dia 17. “De Cabeça Erguida” – guardando as proporções – é capaz de nos fazer refletir sobre o problema dos menores infratores no Brasil. O filme expõe variados ângulos, de assistentes sociais a psicólogos, de problemas familiares à gravidez adolescente. Ótimo cinema, que ajuda a pensar.