sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O biquíni e a política




Marcus Vinicius Batista

Uma rotatória transformou-se em vilã do trânsito, em Santos. E uma pichação tornou o VLT uma vítima do vandalismo. Duas situações, em tese, distintas, mas que nos indicam como o umbigo pode ser o ponto mais importante do corpo.

Na rotatória inaugurada no canal 7, dois acidentes em dois dias fizeram com que a nova sinalização fosse responsabilizada por muitos motoristas. Não tenho competência para avaliar a (im)perícia dos condutores envolvidos, mas é possível refletir sobre dois comportamentos comuns, seja no trânsito, seja no entendimento da política pública de transporte.

O primeiro deles é a ausência de educação para conviver com outros seres humanos motorizados. Testemunhamos viúvas de Ayrton Senna, artistas do xingamento, mágicos capazes de tagarelar ao celular e pilotar ao mesmo tempo. E todos, por coincidência, creem ter razão sempre, como fregueses das vias públicas. Um patinete no tapete da sala.

Os alunos mal educados desconhecem que a rotatória funciona em endereços onde há cortesia, responsabilidade social, noção dos riscos que se corre quando se senta dentro de um carro. Não há pontuação para quem sai primeiro da rotatória. Só há a preferencial para quem entra nela antes.

Muitos motoristas, politizados até a página 3 da cartilha do Detran, choram e batem o pé, com queixas de que faltam semáforos no local. É a criança mimada, que sempre transfere os deveres. No caso, o hábito de ser tutelado pelo Estado para se fazer o mínimo como cidadão. Vamos encher a cidade de semáforos para reduzir acidentes, conter a sanha selvagem dos (outros) ases ao volante. Aí o trânsito fica mais carregado, como no Canal 4, e os motoristas pedem a volta da liberdade de ir e vir (desde que eu primeiro).

Por trás da polêmica de final de semana, a ausência de um debate consistente sobre o cenário do trânsito municipal. Queixas sobre congestionamentos, soluções paliativas e localizadas, por vezes revertidas, e ninguém se atreve a conversar (ou planejar) sobre a qualidade do transporte público e a mentalidade de endeusar e sonhar com o consumo do transporte individual.

A pichação de vagões do VLT ganhou ares de terrorismo. Vândalos destruíram o patrimônio público e aumentaram os gastos com o veículo. Não carreguem nas tintas que decoram os vagões. Se a pichação é um ponto negativo, o VLT está sempre no mesmo ponto de parada. Parado!

Ao contrário de reportagens ufanistas que indicam uma cidade colorida com a obra, o cotidiano retrata a morte do planejamento urbano, a inexistência de um projeto definitivo, a condução paquidérmica dos trabalhos. O trecho da avenida Francisco Glicério, entre a avenida Conselheiro Nébias e o canal 3, já foi pista de atletismo para estudantes de Educação Física. Hoje, é estacionamento de carros, alguns talvez dos mesmos universitários.

O VLT nos foi vendido como um projeto-símbolo da metropolização fictícia, cujo cenário são nove cidades. Depois, foi reduzido a um ferrorama de origem espanhola entre Santos e São Vicente. O trem de brinquedo vai para frente e para trás, até porque as curvas seguem indefinidas pela política, enquanto o dinheiro alheio escorre pelos trilhos, como brincadeira de criança.

Nessas horas, me lembro do jornalista Fernando Gabeira e sua definição de biquíni. Para ele, biquíni é – sarcasticamente - a roupa que “mostra tudo, mas esconde o essencial.” Na política, acidentes e pichação vestem roupas novas para velhos problemas, os acessórios que camuflam o que interessa.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

"O melhor café é o que você gosta"



O empresário Michael Timm (Foto: Marcos Piffer)

* Entrevista publicada na revista Guaiaó, n.8 (novembro/2014).

Marcus Vinicius Batista

Até os 25 anos, Michael Timm não pensava em café. Apenas tomava a bebida. Não analisava variações do produto e a concorrência internacional. Não quebrava a cabeça para compreender as oscilações de mercado do principal cartão postal brasileiro de exportação. Até então, jurava que seguiria carreira no mundo corporativo: um ano no Banco Francês e Brasileiro e mais três na General Eletric do Brasil.

Era a primeira metade da década de 80. Final da ditadura militar, inflação alta, instabilidade econômica e política. Em janeiro de 1985, há pouco mais de 30 anos, Michael atendeu a um pedido do pai e mudou o curso da própria biografia. “Esperava quebrar o ciclo da família.” Tornou-se a terceira geração da família, tanto paterna quanto materna, no setor cafeeiro. Uma história com início na Alemanha.

Os irmãos não seguiram a mesma carreira. Christian é fazendeiro, criador de gado e cavalos, na região de Marília, no interior de São Paulo. A irmã Sylvia é proprietária da escola Verde que Te Quero Verde, em São Vicente.

Em 1988, Michael assumiu a gerência da Stockler Comercial e Exportadora. Em 1995, alcançou a diretoria. O Grupo Stockler é, hoje, a quarta maior empresa do setor no país. Possui 180 funcionários diretos, entre escritórios e armazéns. Michael representou a empresa fora do Brasil por duas vezes. Trabalhou em Nova Iorque durante um ano e meio e em Hamburgo, na Alemanha, por outros seis meses. O mercado atual exige, pelo menos, três viagens anuais ao exterior.

Em 2009, Michael experimentou liderar uma entidade de classe. Ele assumiu a presidência da Associação Comercial de Santos, cargo que ocupou até o primeiro semestre deste ano. “Acabei ficando cinco anos por mudança de estatuto. Minha saída foi tranquilíssima.”

Pai de um casal de filhos, Michael Timm, de 55 anos, tem rosto de estrangeiro. Mas só não é brasileiro de certidão de nascimento. Nasceu na Alemanha e veio para o país com três meses de idade. Formou-se em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.

Após três décadas entre grãos e números financeiros, Michael Timm ainda enfrenta 10 horas de trabalho diárias. “Mas quem trabalha com commodities precisa pensar no negócio 24 horas”. Ele se diverte quando avalia a hipótese de se aposentar. “A gente pensa desde que começa a trabalhar.”

Ambos os filhos, Sabrina e Marcelo, estudam Administração de Empresas. Michael não sabe se eles serão a quarta geração da família no negócio. “Eu brinco com eles. Se quiserem entrar no negócio de café, dou para vocês um torrador. Vocês vão torrar café e vender.”

A conversa com a Guaiaó aconteceu na sede da Stockler, uma casa branca de dois andares, com detalhes em amarelo, na rua XV de Novembro, a menos de uma quadra do prédio da antiga Bolsa do Café. O escritório dele fica no andar superior. Entre fotos de família, papelada da empresa e cinco xilogravuras na parede, Michael se orgulha de livros antigos sobre a indústria cafeeira. Abre dois deles para mostrar as origens da família no negócio.

Na entrevista a seguir, Timm analisa o mercado de café, da produção à prateleira de supermercado, e as mudanças que aconteceram na cidade a partir da década de 80.

Guaiaó: Como era o cenário cafeeiro quando você começou? O que mudou em 30 anos?

Michael Timm: Em 1985, havia o Acordo Internacional do Café. Tinha cotas de exportação, baseadas em performance, estoque. Éramos engessados pelo Governo. Um sistema político demais. Não havia como crescer. Diminuíamos de tamanho por causa das regras do jogo. Muitos exportadores brigando contra estas restrições, até 1990. Os preços subiram muito. Houve intervenções desastrosas do governo brasileiro. O Governo até hoje não pagou a conta, do que fez em 1986. Em 1990, com a entrada do (Fernando) Collor, acabou o Instituto Brasileiro do Café. Ficamos livres para crescer. Pagávamos até 70% de impostos sobre o café exportado. A partir de março de 1990, o mercado de café ficou mais livre, o que tornou o Brasil mais eficiente.

Guaiaó: As condições atuais são satisfatórias?

Michael Timm: Sou da opinião que quanto menos o Governo se mete melhor. É lógico que temos que ter uma política de financiamento para o produtor nas horas que necessita. Dar condições para o produtor estocar café para vender em épocas melhores. Todas as intervenções são feitas em horas erradas. São feitas por causa de lobby. Mas há lobbies e forças políticas sempre.

Guaiaó: Ano de eleição é um ano difícil por conta das pressões políticas?

Michael Timm: Não. O café tem uma vantagem. O café não é elástico quanto ao consumo. A produção de café não aumenta ou diminui por causa de consumo. Uma recessão não afeta o consumo de café. O café, no Brasil, está atrelado ao valor do dólar. É claro que há a Bolsa de Valores. Mas é difícil um político atrapalhar o negócio de café. Não existe risco hoje porque não existe mais a vontade de intervenção, de se criar cotas de exportação.

Guaiaó: Como você vê o café brasileiro em um cenário cada vez mais globalizado, com disputas acirradas por novos mercados?

Michael Timm: A Europa Ocidental está consolidada, com crescimento estável de 1% ao ano. Os Estados Unidos são a mesma coisa. Crescimento sustentável, mas pequeno. O crescimento é forte na Ásia. Há aumento de consumo em mercados produtores, como Indonésia e Índia. Mas não são adversários. O interessante no mercado de café é que não existem adversários. Na verdade, quando acabaram as cláusulas econômicas, ficaram aqueles que possuem competitividade. Há uma demanda mundial equilibrada com a oferta. Então, você não compete com outros países. Somos, de longe, os maiores exportadores. As crises internacionais, como a de 2008 e a da Rússia, não têm impacto no setor. Os preços não oscilam por causa de crise. Em 2008, chegamos no pico do preço por causa de especulação de fundos de investimento, mas depois caiu.

Guaiaó: Qual é o tamanho do Brasil neste mercado?

Michael Timm: A produção mundial anual é de 150 milhões de sacas. O consumo mundial também é de 150 milhões de sacas. O Brasil produz um terço disso, entre arábico e robusto, e é o segundo maior consumidor do mundo atrás somente dos Estados Unidos. Tem mercado para todos. O consumo cresce 2% ao ano, basicamente por causa da Ásia e Leste Europeu.

Guaiaó: Por que cresce nestas regiões? Há alguma mudança cultural específica?

Michael Timm: Mudança cultural, mudança no gosto. Aumento no número das cafeterias. Aumento de empresas como Starbucks. No Japão, há o consumo de café gelado, que concorre com os refrigerantes. Vende-se muito café solúvel. É o que normalmente abre mercados, pela facilidade de preparo. O café solúvel não é, em geral, de qualidade tão alta. O consumidor, depois, começa a aprimorar o gosto. É como vinho.

Guaiaó: Qual é o papel da Colômbia neste tabuleiro?

Michael Timm: A Colômbia possui um café de altíssima qualidade. Sofreu muito nos últimos anos com o envelhecimento do parque cafeeiro. Mas investiu em inovação da produção. A Colômbia está voltando a patamares do passado, de 11, 12 milhões de sacas por ano. Nos anos 80 e 90, havia marketing demais em torno do café colombiano. O café deles é bom, com volume e qualidade.

Guaiaó: Você mencionou a Starbucks. E o crescimento dos cafés gourmets, inclusive na linha solúvel, nas prateleiras dos supermercados? Como você entende a convivência entre o café fast food e os mais refinados?

Michael Timm: No Brasil, tem uma coisa engraçada. São poucas as redes. Elas se instalam, mas falta algo para continuar a crescer. É minha impressão. É diferente dos Estados Unidos e do Canadá. Não sei o porquê. Uma das razões pode ser a dificuldade de se trabalhar no Brasil. Impostos, relações trabalhistas, burocracia, tudo é complicado. Não acredito que seja por falta de demanda. Aqui é difícil entender. Outro ponto é supermercado. As prateleiras de café me atraem. Hoje, há uma variedade enorme, fica até confuso para o consumidor. De onde saiu tanto café?

Guaiaó: O consumidor tem como diferenciar os cafés?

Michael Timm: O consumidor tem que experimentar. A questão é que, no sachê, o consumidor paga a grama do café muito mais cara do que no pacote de 500 gramas. São nichos de mercado. Nós temos sete mil marcas no Brasil. Café especial, orgânico, com certificação. Há diferenças entre eles. Qual é o melhor café? É o café que você gosta. O importante é manter a qualidade. Café é como vinho. Cada garrafa é diferente.

Guaiaó: No final da cadeia produtiva, há o cafezinho. O preço no Brasil é ou não é elevado?

Michael Timm: Não acredito que seja elevado. O pó de café não é caro. Cara é a estrutura para você colocá-lo na xícara. Quantas xícaras se tem que vender a R$ 2,00 para pagar aluguel e mão-de-obra? A bebida sempre foi baratíssima.

Guaiaó: Santos tem parte da história atrelada ao café, que provocou mudanças substanciais no espaço urbano desde o século 19. Qual é o papel do café em Santos hoje, apesar de um porto bastante caro?

Michael Timm: O Porto, mesmo sendo o mais caro, ainda é atraente por estar mais perto da zona produtora. O custo total da logística ainda compensa. O frete rodoviário é muito caro. Quanto à comercialização, mudou. Antes, você tinha que estar em Santos, ter escritório e armazém em Santos. Hoje, você não precisa de nada disso. Tem outras praças importantes. Santos perdeu importância na comercialização do café, nos últimos 30 anos. Minha empresa tem escritórios espalhados por regiões produtoras, no interior de São Paulo e Minas Gerais e, em Vitória, no Espírito Santo.

Guaiaó: Por que Santos perdeu este espaço?

Michael Timm: Um fator foi a evolução tecnológica das comunicações. O centro de produção mudou. Antes, São Paulo e Paraná. Hoje, 50% da produção está em Minas Gerais. Lá, surgiram centros de comercialização. Faltou também modernização dos corretores, pensar a longo prazo. Os corretores do interior estão mais perto dos produtores. Faltou investir em infraestrutura no interior. Tive que ter acesso ao café para ser competitivo. No meu caso, o escritório central é Santos, mas poderia estar em qualquer lugar. A questão é que estamos aqui há 70 anos, consolidados. (Ele consulta o computador e liga para um funcionário. Quer confirmar o tamanho do mercado na cidade) Das 185 firmas de exportação de café, só 20 estão em Santos. Das dez primeiras, seis têm escritório aqui. Mas algumas não fazem a venda aqui.

Guaiaó: Santos pode ser atraente para quem quer começar no setor?

Michael Timm: Pode. Mas no ramo do café é difícil atrair talentos. Porque precisamos de poucos e bons. Não se consegue pagar salários altos e competir com o mercado financeiro. As empresas de café são normalmente familiares, que parecem grandes, mas são pequenas. Não é difícil começar, mas poucos querem fazer isso.

Guaiaó: Os provadores de café são uma profissão em extinção?

Michael Timm: Sempre vamos precisar dos provadores de café. Escuto falar em língua eletrônica, mas nada substitui o provador. Não é um equipamento que define a qualidade do café. Cada cliente quer uma qualidade específica. E só o provador consegue distinguir os cafés. Santos tem cerca de 80 provadores, cem talvez. Ninguém vai longe no mercado se não tiver um bom classificador de café. O provador faz o curso, mas aprende fazendo no dia a dia.

Guaiaó: E a história de que o café exportado é sempre melhor do que o cafezinho da esquina? É real ou senso comum?

Michael Timm: Em geral, eu diria que sim. Dependendo de onde você for, você até consegue café melhor do que o exportado. No supermercado, é possível encontrar cafés iguais ou melhores do que aqueles que são exportados. Depende do que você gosta. Não podemos falar que existem cafés ruins. O mercado interno usa mais o café robusto, produzido em Minas Gerais, Espírito Santo e sul da Bahia. Representa por volta de 60% do mercado interno. Os asiáticos também consomem café do tipo robusto. O consumidor estabelece a diferença por marca. O consumidor não sabe a diferença entre os tipos de café. O importante é que quem fornece o café forneça sempre igual. Não pode haver flutuações grandes no sabor. Há lealdade às marcas.

Guaiaó: Como você foi parar na Associação Comercial de Santos? Como é sua história lá, como presidente?

Michael Timm: Por insistência dos pares. A experiência como presidente foi boa, mas poderia ser melhor. A função da associação é trabalhar para os associados. É a casa do associado. Me escolheram para tocar a casa. É difícil atrair o associado. Como te disse, Santos tem 20 exportadores, uma parte importante dos associados. Tem os outros setores de porto, petróleo e gás. As pessoas só procuram a associação para resolver problemas. Eu era contra o aumento de tempo na presidência. Era tempo demais para se dedicar à Associação Comercial.

Guaiaó: A Associação Comercial perdeu força política no contexto da cidade ou apenas no setor cafeeiro?

Michael Timm: Na área do café. É uma entidade importante, que trabalhou muito com o Governo Municipal. Teve bastante contato com o Governo Estadual, que chegou a fazer da Associação Comercial – simbolicamente – a casa dele. Politicamente, está muito bem. A associação perdeu importância na área por causa do Conselho dos Exportadores de Café. A Associação Comercial era o interlocutor do setor de café com o Governo Federal. Hoje, deixou de ser.

Guaiaó: Qual é a perspectiva para o mercado de café?

Michael Timm: Penso nisso todo dia. O Brasil continuará sendo um participante importante do mercado mundial. Em 1994, nossas safras eram menores, na média, do que 30 milhões de sacas. Vinte anos depois, estamos em 50 milhões de sacas. Só não é maior por problemas climáticos. O mercado interno é grande, com 20 milhões de sacas. Você tem bastante espaço para tentar crescer.

Guaiaó: Você toma muito café? Prepara o próprio café?

Michael Timm: Tomo muito café, sim. Faço quando é expresso, o que qualquer um sabe fazer. Não sou expert em café de coador, mas tomo todos os dias pela manhã. No passado, não pensava nunca em comprar um café no supermercado. Hoje, os torradores apresentam bons cafés para o meu paladar. Gosto do café do sul de Minas, Mogiana, do cerrado. Você consegue coisas que gosta. Não tive tempo de provar este aqui. (Ele mostra dois sacos de um lote específico de Minas Gerais)

Guaiaó: Seu olhar é sempre profissional, de ler tudo na embalagem?

Michael Timm: Sempre leio tudo. Me assusta ver que algumas marcas não estão nos supermercados. É falha impressionante na distribuição. Tomo café todo santo dia. Tomo entre cinco e dez cafés por dia. Consigo viver sem café, mas eu gosto. Dizem que faz bem para saúde (neste momento, Michael ri). Tomo café bom ou ruim. Se tiver só ruim, tomo o ruim.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Osasco somos nós!


Quando criança, me lembro de uma vizinha – uns 10 anos mais velha do que eu – que tocou a campainha de casa para pedir à minha mãe uma xícara de açúcar. E qualquer barulho mais forte no prédio significava portas abrindo e vizinhos procurando o problema, seja para resolvê-lo, seja para fofocar sobre ele.

Hoje, muitos de meus vizinhos se esforçam para soltar grunhidos quando cruzamos na escadaria ou no corredor principal do prédio onde moro. Na madrugada, qualquer som mais forte ou repentino não provoca reações. Apenas ouvimos atônitos, viramos para o lado e retomamos o sono. Desconfio que as paredes ficaram mais grossas ou que prevaleceram os produtos zero e as dietas contra o açúcar.

Estamos em guerra! Vivemos um conflito que fingimos ser invisível ou silencioso. Um combate que não tem nada a ver conosco, pois ocorre em outros edifícios, ou melhor, em terras distantes, reinos que muitos só visitam pela televisão, nos programas de final de tarde.

As chacinas na Grande São Paulo, particularmente em Osasco e Barueri, vem desaparecendo com discrição do noticiário. Quase ninguém investiga, fica a impressão de que o assunto perdeu a relevância. Isso em um país que registra 50 mil assassinatos por ano. Desde a Segunda Guerra Mundial, só Ruanda – com um genocídio de 800 mil pessoas em 100 dias (números oficiais) – conseguiu ser mais violenta.

O número de chacinas dobrou no Estado de São Paulo em 2015. Foram 10 chacinas, com 38 mortos. Lembre-se de que, para ser chacina, são necessários três assassinatos no mesmo local. O número de mortos, também não se esqueça, aumentou três vezes. Dados extra-oficiais, como da Ponte, agência independente de Jornalismo, falam em 72 corpos. Não importa a matemática; casos assim seriam alvo de investigação internacional.

No entanto, o Governo do Estado prefere brincar de faroeste. E muitos jornalistas engolem a bravata. Enquanto o governador Geraldo Alckmin posa de xerife, estipula recompensa e insinua que se trata de uma ação isolada, muitos jornalistas são rápidos em estender o microfone e o gravador, e cegos em enxergar as histórias das vítimas e daqueles que ficaram para carregar os caixões.

Tudo se resume à ausência de passagens de polícia. Números e falta de humanos, seus nomes, suas trajetórias. E o governador, o mesmo que negou a falta de d´água e ignorou as reivindicações dos professores, adota o silêncio na bagunça da segurança pública.

É perfeitamente compreensível pedir ajuda aos cowboys. 90% dos homicídios no Estado de São Paulo não tem o autor identificado. A Polícia Técnica vive à míngua. Em Osasco, por exemplo, o Instituto Médico Legal levou 12 horas e meia para chegar ao local de uma das chacinas.

Na Polícia Militar, existem pilhas de casos de policiais que sofrem de problemas de saúde mental diante das pressões do trabalho. No outro lado da corda, PMs matam e morrem – em serviço ou não - como saldos de uma guerra negada. Em 2015, 11 policiais morreram. 358 pessoas foram mortas pelas Polícias Civil e Militar, segundo a Folha de S.Paulo.

No ano passado, 926 pessoas foram mortas pela PM – uma a cada 10 horas. 72 policiais morreram. O ano de 2014, em números, foi o mais violento desde 1995, quando o Governo do Estado passou a divulgar as estatísticas com regularidade.

Não basta somente esclarecer as chacinas de Osasco e Barueri, como disse Alckmin. É como detectar o barulho no vizinho e voltar a dormir, à espera de novos sons saltitantes. Às vezes, pode-se fingir que era o barulho da geladeira. Mas não dá para negar quando várias campainhas tocam ao mesmo tempo, por conta de gritos, de tiros, de sangue a ser lavado na calçada, como naquele bar de Osasco.

sábado, 15 de agosto de 2015

Quanto valem os partidos?




Marcus Vinicius Batista

Em democracias mais maduras, partidos ainda são capazes de representar um conjunto de ideias e construir uma agenda de propostas, a serem seguidas por seus políticos com mandato. Em democracias mais jovens e pouco confiáveis, partidos atendem às desconfianças do eleitor, da imprensa e da própria classe política, que os vê como portos provisórios para projetos individuais, quando não como legendas de aluguel.

O eleitor, bobo só de vez em quando, sabe disso e – quase sempre – vota em pessoas, e não em siglas partidárias. Até porque, em um país com 34 partidos, as próprias legendas nada cumprem o que esbravejam ou sussurram.

A eleição para a presidência da Câmara de Santos simbolizou o carnaval partidário brasileiro. O vereador Manoel Constantino, do PMDB, foi eleito com 14 votos. Era candidato único. Sete vereadores não votaram e, portanto, não houve abstenções.

A votação coroou o teatro político da semana. Embora ninguém fale abertamente, a costura já estava pronta quando o ex-presidente Marcus de Rosis foi enterrado. Na segunda-feira, dois dias depois da morte do vereador, 12 vereadores anunciaram a escolha de Constantino como novo presidente do Legislativo. Ele havia presidido a casa em 2011/2012.

O outro parlamentar do PMDB, Antônio Carlos Banha Joaquim, não fazia parte do time. Chiou, mas votou em favor do colega na quinta-feira. Hugo Dupreé, do PSDB, integrava o grupo, ignorou os colegas de partido e confirmou seu voto em Constantino.

O problema é que os demais parlamentares tucanos, mais os do PR, reclamaram que não foram consultados da “eleição” antecipada de segunda-feira e se retiraram do plenário antes da votação. Mas não apresentaram uma alternativa ao longo da semana.

A bagunça se estende nas relações com o Poder Executivo. O PMDB é da base aliada do governo Paulo Alexandre Barbosa e se sabe que De Rosis sonhava com uma candidatura à vice-prefeito em 2016. Ou, pelo menos, um representante do PMDB. Agora, a ideia perde impacto e outros jogadores mostrarão as cartas. Entre os vereadores, os que votaram e os que saíram do plenário, pode ter certeza, haverá paz em breve.

A morte de Marcus de Rosis, na prática, faz com que o PMDB, que teve dois dos cinco prefeitos anteriores à Paulo Alexandre, fique ainda mais fraco. Constantino é o vereador mais antigo, é visto como conciliador, mas não poderá fazer verão sozinho diante da saída de tantos militantes.

A vaga de Marcus de Rosis reforça a fragilidade do sistema partidário. Geonísio Pereira Aguiar, o Boquinha, seria o primeiro suplente. Mas, com o final do governo Papa, voou para o lado de quem venceu. Ele pleiteou a vaga, mas perdeu provisoriamente o lugar para Fabio Duarte, hoje sem partido.

Duarte assumiu com uma liminar nos braços, alegando infidelidade partidária de Boquinha. Duarte ficaria com a vaga por ser do PSD, que integrava a coligação. Mas, como é PM, não pode ser filiado a partidos, exceto em períodos eleitorais. O segundo suplente, Fabiano da Farmácia, está hoje no PHS.

Diante de uma briga jurídica, quem perde é o PMDB. O partido perdeu, de fato, um vereador, pois qualquer um dos substitutos não têm vínculos com a sigla. O PMDB, que protagonizou as lutas políticas da cidade no século passado, hoje é um desenho nítido do que se transformaram os partidos, principalmente pelas ações dos próprios políticos.

E olha que nem mencionei as relações entre PT e PMDB no Governo Federal e na Câmara dos Deputados, sob as asas de Eduardo Cunha.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O político clássico

O ex-presidente da Câmara de Santos, Marcus de Rosis
Marcus Vinicius Batista

O ex-presidente da Câmara de Santos, Marcus de Rosis, tinha o perfil clássico do político. O vereador, falecido no último sábado, reunia uma série de características comuns aos parlamentares da velha escola. Não é o caso de entrar no mérito de suas gestões como comandante do Poder Legislativo nem endeusá-lo, como se faz usualmente quando há a morte de uma liderança, e sim tentar compreender qual papel ele exercia dentro do contexto político contemporâneo da cidade.

De Rosis tem a herança genética, a exemplo dos Barbosas, Franças e Bargieris. Ele era filho do ex-vereador Oswaldo De Rosis, que dá nome ao plenário da Câmara Municipal; aliás, nome escolhido pelo próprio Marcus. Como em muitos casos na Baixada Santista, o filho perpetua a carreira do pai.

Marcus de Rosis tornou-se vereador aos 28 anos e presidiu o parlamento de Santos pela primeira vez, aos 33. Foi o mais jovem presidente da história da cidade. Ele não era um político da velha escola somente pela longevidade como vereador – cumpria o sexto mandato e, provavelmente, se candidataria para o sétimo -, mas também porque foi picado pela mosca azul, gíria para os políticos sempre próximos do poder.

Ninguém se sustenta como presidente do Poder Legislativo por tanto tempo à toa, sem a capacidade de transitar pelos diversos órgãos do corpo que movimenta a política. Embora tivesse um temperamento explosivo, traduzido pela fala em tom mais elevado, Marcus de Rosis era o articulador clássico. Sabia costurar uma aliança, com amigos e adversários. Elegeu-se, por exemplo, presidente da Câmara pela última vez com 18 votos, de colegas de sete partidos, inclusive do PT.

O lado temperamental aflorava nos debates histéricos no plenário, como as brigas com a então vereadora Cassandra Maroni Nunes, do PT. Discussões que entraram para a história e o folclore da política recente.

De Rosis também soube canalizar para si o foco das relações com o Poder Executivo. Representou o governo Papa no Legislativo, assim como manteve o nível das relações com o atual prefeito, Paulo Alexandre Barbosa. Por conta disso, chegou a ocupar a secretaria de Esportes na gestão Beto Mansur e tinha voz ativa na composição de uma aliança com o PSDB para as eleições de 2016. O PMDB lutava para indicar o vice-prefeito.

O ex-presidente da Câmara era, como manda a cartilha da escola tradicional, um homem de partido. Filiou-se ao PMDB no tempo em que Oswaldo Justo não apenas era prefeito, como o homem-forte da sigla. De Rosis resistiu como uma das últimas lideranças de um partido enfraquecido, mesmo depois da saída de Papa e da debandada de muitos militantes para a terra dos tucanos.

Como adepto do estilo antigo, Marcus de Rosis havia se adaptado ao novo cenário, sem abandonar as velhas teorias. De vez em quando, ao se sentir preterido, ele esbravejava publicamente e nasciam os boatos de que o PMDB poderia ter candidato próprio ou até lançar o próprio De Rosis à Prefeitura. Os balões de ensaio se quebravam quando ele conseguia o que desejava e a gritaria esvaziava em palavras de conciliação.

Quem acompanha política sabe que até poderia haver o sonho de ser prefeito, mas De Rosis jamais embarcaria numa aventura, com o risco de perder o lugar onde cresceu e se desenvolveu na política, a Câmara Municipal. Ali, ele praticava outro tipo de poder, capaz de diálogos horizontais com o Poder Executivo e obter ganhos secundários em termos políticos.

Marcus de Rosis também carregava outra característica comum aos políticos que nasceram eleitoralmente no século 20. O ex-presidente da Câmara estendia seu exercício político para o futebol, outra esfera em que se misturam paixão e poder, arquibancada e plenário. De Rosis, irmão do ex-jogador Rui, presidiu a Portuguesa Santista no início dos anos 90, época do retorno ao futebol profissional.

A partir de quinta-feira, a Câmara de Santos terá novo presidente. 12 vereadores se comprometeram a votar em Manoel Constantino, outro político da velha guarda, com três décadas de Legislativo. O tom de voz pode diminuir em plenário, mas o jeito de fazer política se manterá nos mesmos decibéis.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Por que estupramos?

Mulheres indianas protestam contra a cultura do estupro

Marcus Vinicius Batista

O Tribunal de Justiça de São Paulo não aceitou recurso e manteve a condenação de um homem, na semana passada, por sucessivos crimes de estupro. O sujeito, cujo nome não pode ser divulgado por segredo de Justiça, estuprou a filha durante 18 anos. A sentença foi de dez anos e nove meses de prisão.

Pai e filha moram no Guarujá. Do relacionamento que o desembargador Luis Soares de Mello considerou “verdadeira escravidão sexual”, nasceram três filhos-netos, dois meninos e uma menina, conforme comprovação de paternidade por exame de DNA.

A violência sexual aconteceu entre 1991 e 2008. A defesa do réu pedia prescrição dos crimes. Em parte, conseguiu. Os abusos sexuais entre 1991 e 1995 foram prescritos, como se fizesse alguma diferença. Os estupros, de acordo com relatos da vítima no processo, começaram quando ela estava com 16 anos. O pai alegou também que o relacionamento era consensual.

O horror não terminou aí. O sujeito responde a outro processo, desta vez em 1º instância, no Guarujá. A vítima, neste caso, é a filha-neta. O avô-pai, se é possível denominar assim, responde às acusações em liberdade.

A história descrita acima tem que provocar repulsa por si mesma e jamais ser encarada como uma exceção, como um desvio único no comportamento humano e daí gerar indignação. Este sujeito tem muitos semelhantes no Brasil e em outros endereços pelo mundo. Aqui, em sete de cada dez casos de violência sexual, o agressor é uma pessoa próxima da vítima, seja parente, vizinho ou amigo da família.

Na semana passada, também, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou o balanço da criminalidade no primeiro semestre de 2015. Sabemos que os números, por conta da falta de muitas notificações, tendem a ser maiores. Os casos de estupro, estatisticamente, caíram na Baixada Santista. Foram 114 casos, contra 163 no primeiro semestre do ano passado, redução de 30%.

Das nove cidades da região, apenas Santos registrou crescimento, de 20 para 21 estupros. Guarujá – coincidência? – se mantém na liderança, com 28 casos.

Francamente, os números são tão frágeis quanto necessários para pensarmos sobre esta doença social. 114 casos no primeiro semestre! É um estupro a cada 36 horas, a cada dia e meio. E não nos esqueçamos que muitas histórias de violência sexual são marcadas pelo silêncio do agressor e da vítima, como o exemplo de pai e filha no Guarujá.

O estupro representa mais do que uma epidemia. É uma pandemia, com registros elevados em todos os continentes. O que muda é somente o endereço e o pano de fundo cultural. Índia, por exemplo, com sua sociedade de castas e tolerância em muitos locais. Países escandinavos e o silêncio social. Nações africanas e o estupro como arma, para demonstração de poder contra os adversários em guerras civis. Mulheres simbolizam, de maneira explícita, propriedade e moeda de troca.

As sociedades contemporâneas, com particularidades culturais, fazem vistas grossas para a violência sexual. Em muitos cenários ditos civilizados e desenvolvidos economicamente, as mulheres não são vítimas, e sim encaradas como estímulo ao agressor. As roupas viram argumentos para justificar o estupro, inclusive com conivência e discursos agressivos de outras mulheres.

Não é incomum ouvirmos frases como: “Mas ela estava de shorts curto!”, “Se ela se vestisse melhor, não seria estuprada!” São variações que, na prática, se traduzem numa placa que deveria estar, na opinião dessas pessoas, pendurada no pescoço da vítima: “Por favor, me coma!”

Voltarei ao assunto, por causa da complexidade e também porque o caso de Guarujá acontece mais perto do que nós imaginamos (ou ignoramos).

Obs.: Caro leitor, há outros dois textos sobre tema, escritos por mim em 2013. São eles: Cultura do Estupro I e Cultura do Estupro II

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Onde os fracos não têm vez


Thaís Moraes Macedo

Quantas e quantas vezes não ouvimos a expressão: “Estude, pois a caneta é mais leve do que a pá”? Curiosamente, para aqueles que nos ensinaram durante toda a vida e tentam diariamente nos mostrar o real significado dessa expressão, pode não ser bem assim. Professores estudam, se aprimoram, montam aulas, corrigem provas em casa, comem o pão que o diabo amassou e sentem a caneta, ou melhor, o giz pesar cada vez mais.

Quem quer ser professor?, perguntavam os mestres no Ensino Médio e ninguém levantava a mão. Acredito que pensavam o seguinte: “Estudar muito para ganhar pouco e ainda encarar uns pentelhos feito a gente? Tô fora!”. Para ser professor, tem que ser muito corajoso, pelo menos aqui no Brasil. Essa falta de interesse dos jovens é explicada pela indiferença que os governos dão àqueles que estão na linha de frente dessa batalha chamada educação.

Salários baixíssimos, falta de estrutura e ausência de plano de carreira, na maioria das vezes, deixam a profissão ainda menos atraente. Só os fortes sobrevivem. Enquanto nos países nórdicos, como a Suécia, tornar-se professor é muito mais difícil do que passar no vestibular de medicina e ser a profissão mais respeitada, aqui os mestres são tratados por como meros seres que ensinam as crianças a escrever e decorar a tabuada e devem, segundo muitos pais, dar educação, no sentido familiar da palavra.

A falta de investimento faz com que professores não se dediquem integralmente à profissão, não por opção, mas por mera necessidade. Em Santos, a segunda melhor cidade do país para se criar filhos (???), de acordo com ranking divulgado pelo Exame.com, em levantamento com 100 cidades brasileiras, quase metade (44,5%) dos professores da rede básica são obrigados a ampliar a jornada para conseguir pagar suas contas. Trabalhando com educação ou não. E ainda reclamam quando fazem greve.

Em pleno 2015, na Era do Conhecimento, para muitos a caneta tem sido mais pesada do que a pá.