sábado, 15 de agosto de 2015

Quanto valem os partidos?




Marcus Vinicius Batista

Em democracias mais maduras, partidos ainda são capazes de representar um conjunto de ideias e construir uma agenda de propostas, a serem seguidas por seus políticos com mandato. Em democracias mais jovens e pouco confiáveis, partidos atendem às desconfianças do eleitor, da imprensa e da própria classe política, que os vê como portos provisórios para projetos individuais, quando não como legendas de aluguel.

O eleitor, bobo só de vez em quando, sabe disso e – quase sempre – vota em pessoas, e não em siglas partidárias. Até porque, em um país com 34 partidos, as próprias legendas nada cumprem o que esbravejam ou sussurram.

A eleição para a presidência da Câmara de Santos simbolizou o carnaval partidário brasileiro. O vereador Manoel Constantino, do PMDB, foi eleito com 14 votos. Era candidato único. Sete vereadores não votaram e, portanto, não houve abstenções.

A votação coroou o teatro político da semana. Embora ninguém fale abertamente, a costura já estava pronta quando o ex-presidente Marcus de Rosis foi enterrado. Na segunda-feira, dois dias depois da morte do vereador, 12 vereadores anunciaram a escolha de Constantino como novo presidente do Legislativo. Ele havia presidido a casa em 2011/2012.

O outro parlamentar do PMDB, Antônio Carlos Banha Joaquim, não fazia parte do time. Chiou, mas votou em favor do colega na quinta-feira. Hugo Dupreé, do PSDB, integrava o grupo, ignorou os colegas de partido e confirmou seu voto em Constantino.

O problema é que os demais parlamentares tucanos, mais os do PR, reclamaram que não foram consultados da “eleição” antecipada de segunda-feira e se retiraram do plenário antes da votação. Mas não apresentaram uma alternativa ao longo da semana.

A bagunça se estende nas relações com o Poder Executivo. O PMDB é da base aliada do governo Paulo Alexandre Barbosa e se sabe que De Rosis sonhava com uma candidatura à vice-prefeito em 2016. Ou, pelo menos, um representante do PMDB. Agora, a ideia perde impacto e outros jogadores mostrarão as cartas. Entre os vereadores, os que votaram e os que saíram do plenário, pode ter certeza, haverá paz em breve.

A morte de Marcus de Rosis, na prática, faz com que o PMDB, que teve dois dos cinco prefeitos anteriores à Paulo Alexandre, fique ainda mais fraco. Constantino é o vereador mais antigo, é visto como conciliador, mas não poderá fazer verão sozinho diante da saída de tantos militantes.

A vaga de Marcus de Rosis reforça a fragilidade do sistema partidário. Geonísio Pereira Aguiar, o Boquinha, seria o primeiro suplente. Mas, com o final do governo Papa, voou para o lado de quem venceu. Ele pleiteou a vaga, mas perdeu provisoriamente o lugar para Fabio Duarte, hoje sem partido.

Duarte assumiu com uma liminar nos braços, alegando infidelidade partidária de Boquinha. Duarte ficaria com a vaga por ser do PSD, que integrava a coligação. Mas, como é PM, não pode ser filiado a partidos, exceto em períodos eleitorais. O segundo suplente, Fabiano da Farmácia, está hoje no PHS.

Diante de uma briga jurídica, quem perde é o PMDB. O partido perdeu, de fato, um vereador, pois qualquer um dos substitutos não têm vínculos com a sigla. O PMDB, que protagonizou as lutas políticas da cidade no século passado, hoje é um desenho nítido do que se transformaram os partidos, principalmente pelas ações dos próprios políticos.

E olha que nem mencionei as relações entre PT e PMDB no Governo Federal e na Câmara dos Deputados, sob as asas de Eduardo Cunha.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O político clássico

O ex-presidente da Câmara de Santos, Marcus de Rosis
Marcus Vinicius Batista

O ex-presidente da Câmara de Santos, Marcus de Rosis, tinha o perfil clássico do político. O vereador, falecido no último sábado, reunia uma série de características comuns aos parlamentares da velha escola. Não é o caso de entrar no mérito de suas gestões como comandante do Poder Legislativo nem endeusá-lo, como se faz usualmente quando há a morte de uma liderança, e sim tentar compreender qual papel ele exercia dentro do contexto político contemporâneo da cidade.

De Rosis tem a herança genética, a exemplo dos Barbosas, Franças e Bargieris. Ele era filho do ex-vereador Oswaldo De Rosis, que dá nome ao plenário da Câmara Municipal; aliás, nome escolhido pelo próprio Marcus. Como em muitos casos na Baixada Santista, o filho perpetua a carreira do pai.

Marcus de Rosis tornou-se vereador aos 28 anos e presidiu o parlamento de Santos pela primeira vez, aos 33. Foi o mais jovem presidente da história da cidade. Ele não era um político da velha escola somente pela longevidade como vereador – cumpria o sexto mandato e, provavelmente, se candidataria para o sétimo -, mas também porque foi picado pela mosca azul, gíria para os políticos sempre próximos do poder.

Ninguém se sustenta como presidente do Poder Legislativo por tanto tempo à toa, sem a capacidade de transitar pelos diversos órgãos do corpo que movimenta a política. Embora tivesse um temperamento explosivo, traduzido pela fala em tom mais elevado, Marcus de Rosis era o articulador clássico. Sabia costurar uma aliança, com amigos e adversários. Elegeu-se, por exemplo, presidente da Câmara pela última vez com 18 votos, de colegas de sete partidos, inclusive do PT.

O lado temperamental aflorava nos debates histéricos no plenário, como as brigas com a então vereadora Cassandra Maroni Nunes, do PT. Discussões que entraram para a história e o folclore da política recente.

De Rosis também soube canalizar para si o foco das relações com o Poder Executivo. Representou o governo Papa no Legislativo, assim como manteve o nível das relações com o atual prefeito, Paulo Alexandre Barbosa. Por conta disso, chegou a ocupar a secretaria de Esportes na gestão Beto Mansur e tinha voz ativa na composição de uma aliança com o PSDB para as eleições de 2016. O PMDB lutava para indicar o vice-prefeito.

O ex-presidente da Câmara era, como manda a cartilha da escola tradicional, um homem de partido. Filiou-se ao PMDB no tempo em que Oswaldo Justo não apenas era prefeito, como o homem-forte da sigla. De Rosis resistiu como uma das últimas lideranças de um partido enfraquecido, mesmo depois da saída de Papa e da debandada de muitos militantes para a terra dos tucanos.

Como adepto do estilo antigo, Marcus de Rosis havia se adaptado ao novo cenário, sem abandonar as velhas teorias. De vez em quando, ao se sentir preterido, ele esbravejava publicamente e nasciam os boatos de que o PMDB poderia ter candidato próprio ou até lançar o próprio De Rosis à Prefeitura. Os balões de ensaio se quebravam quando ele conseguia o que desejava e a gritaria esvaziava em palavras de conciliação.

Quem acompanha política sabe que até poderia haver o sonho de ser prefeito, mas De Rosis jamais embarcaria numa aventura, com o risco de perder o lugar onde cresceu e se desenvolveu na política, a Câmara Municipal. Ali, ele praticava outro tipo de poder, capaz de diálogos horizontais com o Poder Executivo e obter ganhos secundários em termos políticos.

Marcus de Rosis também carregava outra característica comum aos políticos que nasceram eleitoralmente no século 20. O ex-presidente da Câmara estendia seu exercício político para o futebol, outra esfera em que se misturam paixão e poder, arquibancada e plenário. De Rosis, irmão do ex-jogador Rui, presidiu a Portuguesa Santista no início dos anos 90, época do retorno ao futebol profissional.

A partir de quinta-feira, a Câmara de Santos terá novo presidente. 12 vereadores se comprometeram a votar em Manoel Constantino, outro político da velha guarda, com três décadas de Legislativo. O tom de voz pode diminuir em plenário, mas o jeito de fazer política se manterá nos mesmos decibéis.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Por que estupramos?

Mulheres indianas protestam contra a cultura do estupro

Marcus Vinicius Batista

O Tribunal de Justiça de São Paulo não aceitou recurso e manteve a condenação de um homem, na semana passada, por sucessivos crimes de estupro. O sujeito, cujo nome não pode ser divulgado por segredo de Justiça, estuprou a filha durante 18 anos. A sentença foi de dez anos e nove meses de prisão.

Pai e filha moram no Guarujá. Do relacionamento que o desembargador Luis Soares de Mello considerou “verdadeira escravidão sexual”, nasceram três filhos-netos, dois meninos e uma menina, conforme comprovação de paternidade por exame de DNA.

A violência sexual aconteceu entre 1991 e 2008. A defesa do réu pedia prescrição dos crimes. Em parte, conseguiu. Os abusos sexuais entre 1991 e 1995 foram prescritos, como se fizesse alguma diferença. Os estupros, de acordo com relatos da vítima no processo, começaram quando ela estava com 16 anos. O pai alegou também que o relacionamento era consensual.

O horror não terminou aí. O sujeito responde a outro processo, desta vez em 1º instância, no Guarujá. A vítima, neste caso, é a filha-neta. O avô-pai, se é possível denominar assim, responde às acusações em liberdade.

A história descrita acima tem que provocar repulsa por si mesma e jamais ser encarada como uma exceção, como um desvio único no comportamento humano e daí gerar indignação. Este sujeito tem muitos semelhantes no Brasil e em outros endereços pelo mundo. Aqui, em sete de cada dez casos de violência sexual, o agressor é uma pessoa próxima da vítima, seja parente, vizinho ou amigo da família.

Na semana passada, também, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou o balanço da criminalidade no primeiro semestre de 2015. Sabemos que os números, por conta da falta de muitas notificações, tendem a ser maiores. Os casos de estupro, estatisticamente, caíram na Baixada Santista. Foram 114 casos, contra 163 no primeiro semestre do ano passado, redução de 30%.

Das nove cidades da região, apenas Santos registrou crescimento, de 20 para 21 estupros. Guarujá – coincidência? – se mantém na liderança, com 28 casos.

Francamente, os números são tão frágeis quanto necessários para pensarmos sobre esta doença social. 114 casos no primeiro semestre! É um estupro a cada 36 horas, a cada dia e meio. E não nos esqueçamos que muitas histórias de violência sexual são marcadas pelo silêncio do agressor e da vítima, como o exemplo de pai e filha no Guarujá.

O estupro representa mais do que uma epidemia. É uma pandemia, com registros elevados em todos os continentes. O que muda é somente o endereço e o pano de fundo cultural. Índia, por exemplo, com sua sociedade de castas e tolerância em muitos locais. Países escandinavos e o silêncio social. Nações africanas e o estupro como arma, para demonstração de poder contra os adversários em guerras civis. Mulheres simbolizam, de maneira explícita, propriedade e moeda de troca.

As sociedades contemporâneas, com particularidades culturais, fazem vistas grossas para a violência sexual. Em muitos cenários ditos civilizados e desenvolvidos economicamente, as mulheres não são vítimas, e sim encaradas como estímulo ao agressor. As roupas viram argumentos para justificar o estupro, inclusive com conivência e discursos agressivos de outras mulheres.

Não é incomum ouvirmos frases como: “Mas ela estava de shorts curto!”, “Se ela se vestisse melhor, não seria estuprada!” São variações que, na prática, se traduzem numa placa que deveria estar, na opinião dessas pessoas, pendurada no pescoço da vítima: “Por favor, me coma!”

Voltarei ao assunto, por causa da complexidade e também porque o caso de Guarujá acontece mais perto do que nós imaginamos (ou ignoramos).

Obs.: Caro leitor, há outros dois textos sobre tema, escritos por mim em 2013. São eles: Cultura do Estupro I e Cultura do Estupro II

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Onde os fracos não têm vez


Thaís Moraes Macedo

Quantas e quantas vezes não ouvimos a expressão: “Estude, pois a caneta é mais leve do que a pá”? Curiosamente, para aqueles que nos ensinaram durante toda a vida e tentam diariamente nos mostrar o real significado dessa expressão, pode não ser bem assim. Professores estudam, se aprimoram, montam aulas, corrigem provas em casa, comem o pão que o diabo amassou e sentem a caneta, ou melhor, o giz pesar cada vez mais.

Quem quer ser professor?, perguntavam os mestres no Ensino Médio e ninguém levantava a mão. Acredito que pensavam o seguinte: “Estudar muito para ganhar pouco e ainda encarar uns pentelhos feito a gente? Tô fora!”. Para ser professor, tem que ser muito corajoso, pelo menos aqui no Brasil. Essa falta de interesse dos jovens é explicada pela indiferença que os governos dão àqueles que estão na linha de frente dessa batalha chamada educação.

Salários baixíssimos, falta de estrutura e ausência de plano de carreira, na maioria das vezes, deixam a profissão ainda menos atraente. Só os fortes sobrevivem. Enquanto nos países nórdicos, como a Suécia, tornar-se professor é muito mais difícil do que passar no vestibular de medicina e ser a profissão mais respeitada, aqui os mestres são tratados por como meros seres que ensinam as crianças a escrever e decorar a tabuada e devem, segundo muitos pais, dar educação, no sentido familiar da palavra.

A falta de investimento faz com que professores não se dediquem integralmente à profissão, não por opção, mas por mera necessidade. Em Santos, a segunda melhor cidade do país para se criar filhos (???), de acordo com ranking divulgado pelo Exame.com, em levantamento com 100 cidades brasileiras, quase metade (44,5%) dos professores da rede básica são obrigados a ampliar a jornada para conseguir pagar suas contas. Trabalhando com educação ou não. E ainda reclamam quando fazem greve.

Em pleno 2015, na Era do Conhecimento, para muitos a caneta tem sido mais pesada do que a pá.

sábado, 4 de julho de 2015

Somos todos racistas


Não me surpreendo com a comoção urgente em torno dos ataques racistas contra a jornalista Maria Júlia Coutinho. A Internet, com foco nas redes sociais, funciona também como instrumento para exercícios de intolerância, das mais variadas ordens. Ofensas e desqualificação do outro são regras no território onde os valentões de teclado se escondem.

Se a intolerância é um exercício de estupidez, agredir uma apresentadora de TV da maior emissora da América do Sul ultrapassa os limites da imbecilidade. O racismo ganhou, obviamente, contornos de cruzada moral, virou bandeira de ocasião, provocou reações – muitas delas – politicamente corretas e, como historicamente se esperava, atiçou o espírito de corpo de jornalistas e outros profissionais de mídia.

Em dez anos que leio e estudo discriminação racial, que inclui um trabalho de pós-graduação sobre o tema nas escolas públicas, testemunho sempre a mesma ciranda. Vi professores negros usando vocabulário ameno para sobreviver nas redes de ensino. Vi docentes exigindo Dia Nacional da Consciência Branca. Vi professores qualificados como professores negros, e não somente como professores. Ou você já identificou alguém como professor branco, médico branco, dentista branco, amigo branco?

Vejo ainda uma minoria de docentes negros nas instituições privadas. Vejo alunos negros nas salas de aula de cursos de baixo ou médio prestígio acadêmico (ou que dão menos dinheiro). E esbarro diariamente em funcionários negros, quase todos de baixa hierarquia e quase sempre invisíveis aos olhos de quem deveria agradecê-los.

A repetição pós-caso novo de racismo traz, de imediato, os indignados de plantão, que repetem a ladainha de democracia racial e do país mestiço. Em muitos casos, se recorre a argumentos simplistas e de autopreservação, como apontar parentes, amigos, ex-namorados negros como prova de que o sujeito não é racista. Não ser racista é ser humano, independentemente da cor da pele de quem quer que seja!

O segundo passo do espetáculo é criar e difundir a campanha da semana nas redes sociais. “SomostodosMajú” é a bola da vez, como foi com Neymar – um apresentador de TV ganhou dinheiro à beça vendendo camisetas com um slogan. Causa-me fadiga observar mais uma campanha para envolver pessoas em bolhas de plástico, sem efeito político real, com impacto nas instituições.

A mobilização é retórica, no discurso indignado da vida editada do planeta Zuckerberg. No microcosmos cotidiano de cada indivíduo, a vida segue no mesmo ritmo, preconceituosa, de palavras leves para um crime. O quintal do vizinho é sempre mais machista, homofóbico, racista, entre outros adjetivos plantados no solo alheio.

O mundo está muito além das redes sociais e da forma como a televisão o conta, de olho na matemática da audiência. Não desmereço de maneira algumas as reações (caso um sabe onde dói o calo da hipocrisia), mas o passado recente e remoto nos indica que a campanha dará lugar a outra, e à outra, e mais outra.

Continuaremos racistas enquanto sociedade, sem admitir que o somos. Como disse o sociólogo Octávio Ianni, o brasileiro tem preconceito contra o próprio preconceito. Apontamos o dedo para o lado na prática do moralismo burro, incapazes de nos olharmos no espelho e tratarmos nossas feridas culturais.

Por mais que intelectuais, inclusive com cargos importantes em TV, escrevam obras que negam o racismo no país, a rotina diária das relações sociais e trabalhistas escancaram como somos um país que segrega. A crueldade, aliás, reside exatamente neste ponto: negamos que somos uma nação impregnada de preconceitos, creditamos ao outro a construção de estigmas e, quando a situação aperta, preferimos não tocar no assunto.

A própria história da TV brasileira se construiu pelo olhar branco e de costas para a diversidade dos Brasis. Refiro-me a todos os canais, de todas as épocas. Maria Júlia Coutinho é exceção na TV nacional. Os negros são exceções na mídia brasileira, como são na elite educacional, na política, em diversos esportes, entre as lideranças religiosas (tirando as religiões afro-brasileiras).

A TV brasileira, como qualquer linguagem de mídia, é ressonância da dinâmica social brasileira. O centro nervoso – e o olhar cultural decorrente disso – é o eixo Rio-SP e, a partir daí, se tem a criação de um Brasil via TV, com seus padrões estéticos europeus e a redução da diversidade. Um alienígena, caso ligue um aparelho de TV, jurará que se fala português na Dinamarca.

Maria Júlia Coutinho respondeu com elegância, não vestiu o manto de vítima, e a empresa em que trabalha deu a ela respaldo jurídico. O Poder Judiciário saiu com cinismo da inércia e abriu linha de investigação. Teremos réus quase em tempo real, aposta ganha. Mas me fica a dúvida: e os milhares de casos de racismo que ocorrem todos os dias? Por que muitos delegados registram discriminação racial como agressão para evitar o crime inafiançável ou minimizam (quando não tripudiam) a fala das vítimas?

Recentemente, o goleiro Aranha - quando atuava no Santos – acusou a torcida do Grêmio de racismo. As câmeras de TV eram a prova cabal do crime. Uma jovem foi a única indiciada. Aranha foi o herói da semana. Parte da imprensa, cartolas, jogadores e até muito torcedores do Santos tentaram dias depois transformar o goleiro em vilão, buscando apagar ou distorcer suas palavras e atitudes. Sempre os panos quentes.

O racismo no Brasil vai além das fronteiras da TV e de uma de suas apresentadoras. O racismo é um tumor que persiste no organismo social brasileiro. Nasceu com ele, desenvolveu-se com ele e achou um cantinho para viver por mais de cinco séculos. Temos estrutura jurídica para investigar, julgar e condenar os selvagens, porém praticamos a seleção natural, separando quem tem direito à lei e quem tem direito ao não institucionalizado. Discriminação racial e social caminham de mãos dadas.

Azar daqueles que se expuseram seu racismo em redes sociais e produziram provas contra si mesmos. Se fossem mais espertos, teriam se escondido atrás de instituições de todos os poderes, inclusive da imprensa. Nestes lugares, o racismo não é pauta, é tão invisível quanto suas vítimas. Exceto quando uma pessoa famosa é alvo da idiotice inerente ao intolerante.

Só seremos melhores quando etnia e raça deixarem de aparecer na mesa de debates. Não é ignorar o problema, mas desconhecê-lo por que – num Brasil utópico – ele deixou de existir, tornou-se um conceito incompreensível.

Maria Júlia está certa, repito, mas só alcançaremos o patamar descrito acima quando nos indignarmos com Josés, Joaquins, Aparecidos, Severinos e outros nomes, em quaisquer funções sociais.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Em qual Papa acreditar?


O quintal de Eduardo Cunha? 
O deputado federal João Paulo Tavares Papa, quase sempre discreto, ganhou os holofotes por ter votado contra a redução da maioridade penal, ignorando a correnteza indicada pelo PSDB. E permaneceu no foco porque mudou o voto 24 horas depois, no golpe armado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. 

No tribunal de gritos das redes sociais, Papa reuniu elogios e críticas com corpo de ofensa. Passou de traidor a sujeito coerente e vice-versa. Papa, até o momento, nadava junto com a esquadra de partidos conservadores, dominante na Câmara Federal. Ele seguia com os colegas Beto Mansur e Marcelo Squassoni, demais representantes da Baixada Santista no Congresso Nacional, em votações como terceirização e financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Um parênteses: Bruno Covas têm domicílio eleitoral na Capital e sempre foi turista político por estas bandas.

Apenas o tempo e o restante do mandato vão dizer os porquês das duas decisões tomadas pelo ex-prefeito de Santos. Não me arrisco a especular os motivos e tampouco cogito a utopia da convicção ideológica (artigo extinto na política brasileira, salvo os guetos nanicos). No caso de Papa, é preciso paciência, pois seus passos nunca respondem pelo dia de hoje, embora a segunda votação pareça sobrevivência parlamentar.

Afilhado de Oswaldo Justo, Papa aprendeu que a política é a arte de trabalhar em silêncio, sem jogar palavras ao vento. Como aluno de muito bom nível, ele compreendeu que política eficiente é aquela que possui projeto de poder e que os holofotes da mídia devem ser domados, com doses homeopáticas de vaidade.

Apesar de terem perfis diferentes, Papa e Márcio França talvez sejam os peixes grandes que melhor digeriram a dinâmica do aquário político-eleitoral. Papa foi o maior vencedor da eleição municipal em 2012, na região. Adiou a construção de um sucessor – Sérgio Aquino – para confirmar a vitória do sucessor que desejava, de fato.

Foi a cartada para assegurar a própria eleição, dois anos depois. Neste tempo, sumiu por três meses, reapareceu com a saída do PMDB e filiação ao PSDB, manteve-se nas sombras numa diretoria da Sabesp e só retomou o caminho da luz ao se candidatar à deputado federal. Isso sem receber farpas por conta da crise hídrica, na qual a Sabesp representa um dos papéis principais.

A visibilidade controversa por causa da votação em Brasília é um acidente de percurso, perfeita e infelizmente contornável. Acompanho a carreira política de Papa desde a superintendência regional da Sabesp, no início da década de 90. Ele é um político de passos lentos, porém seguros.

Papa se encaixou no perfil de gerente, desejado pelos eleitores a partir do século 21. Nunca perdeu uma eleição e soube deixar outros políticos, que poderiam atrapalhá-lo, no acostamento. Muitos dos problemas atuais da cidade, como trânsito, esquizofrenia imobiliária e população de rua, nasceram ou se agravaram em sua gestão, mas Papa nunca foi associado a eles. E jamais teve o nome aliado à má gestão financeira ou corrupção.

Três fatores vão desviar, em breve, a navalha do pescoço do deputado federal. Seriam golpes de sorte? O primeiro, em caráter nacional, é o comportamento do presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha. Em mais um golpe, o déspota do Legislativo pautou o mesmo projeto com maquiagem, o que tirou de cena a votação anterior, em urgentes 24 horas.

Depois, na região, Papa poderá sofrer um pouco mais com a choradeira concentrada em redes sociais, que não altera o cotidiano da rua que se veste conservadora para se fingir progressista. E, como terceira variável, o eleitorado sofre de amnésia, ainda mais sobre o Poder Legislativo, onde a desinformação é convidada vip da casa.

Todo político precisa de sorte? Talvez. Não sei em qual Papa acreditar, mas os políticos que sobrevivem sabem que informação, planejamento e projeto de poder são o coquetel da vitória nas urnas. Tanto para o deputado que votou SIM como para o deputado que votou NÃO, prefiro esta última hipótese.

sábado, 20 de junho de 2015

A rola e os intolerantes


Ao mandar o pastor Silas Malafaia “procurar uma rola”, o jornalista Ricardo Boechat acendeu uma série de fogueiras inquisitórias. Não me cabe aqui cair na armadilha de fugir do assunto e discutir inutilidades como Boechat baixou o nível, merece ser processado ou perdeu a razão. Boechat falou o que muitos pensam, foi o porta-voz de muita gente e, se for preciso uma palavra forte para mover os acomodados, que se diga rola e que se traga o restante do dicionário!

No entanto, a fogueira que mais arde não é a dos palavrões, mas a da intolerância religiosa. Somos um país que mistura, desde o nascimento, religião e política. Sempre, aliás, em prol de uma ou mais religiões que ditaram moralidade e usufruíram das mamas do poder. Atualmente, parte do Congresso Nacional forma a bancada da Bíblia, nada coesa em termos de doutrina, mas unida para perseguir vozes dissonantes, exalar preconceito, trabalhar contra a cidadania e a favor de benefícios próprios.

A discussão entre o jornalista e o pastor deveria colocar na mesa o fato de que todas as religiões, cedo ou tarde, se defendem a partir do ataque ao outro. É uma guerra pela fé, poder e dinheiro alheio, que transformou as religiões em produtos, empresas e negócios bilionários. Marketing religioso é, hoje, uma área estabelecida e especializada.

Atacar os adversários atende também a duas exigências de um projeto de poder. Para crescer, qualquer religião ou seita precisa roubar fiéis de instituições adversárias. Para que isso aconteça, não valem somente pregações, discursos e intepretações do texto sagrado “que puxam a sardinha” e os outros peixes.

No boxe por Deus, prevalece um dos princípios básicos da Propaganda de Guerra: envolvimento emocional. Este envolvimento se sustenta no amor à alguém ou a uma causa e, de forma simultânea, à criação e personificação de um inimigo, que precisa ser odiado e, se possível, destruído. A simplicidade maniqueísta – expressão que nasce na religião, por sinal – é o motor da desinformação, do desrespeito e da truculência.

A História das Religiões é recheada de prateleiras com exemplos. Das Cruzadas à Jihad Islâmica. Das Igrejas neopentecostais ao Estado Islâmico. Da catequização indígena à perseguição contra judeus. Todas as guerras em andamento no século 21 têm, direta ou indiretamente, fundo religioso, a imposição de fé e doutrina via armas e mortes.

Frequentar uma igreja, templo, terreiro ou outro tipo de imóvel nunca salvou ninguém. Conheço espíritas que sorriem e falam sereno enquanto te prejudicam. Conheço evangélicos que vomitam preconceitos enquanto repetem comportamentos condenáveis entre quatro paredes.

Conheço católicos que falam em Jesus Cristo para, em seguida, prejudicar o próximo e lutar pelas migalhas do poder. Conheço gente que pede proteção aos orixás e, por conveniência, exala segregação e racismo no cotidiano. E conheço pessoas que são adeptas destas e de outras doutrinas e convivem conforme os preceitos que abraçaram, quando colocam a humanidade e o humanismo acima de textos e retóricas. 



A segunda fogueira, menos ardente, é a do politicamente correto. Ô gente chata, sempre disposta a podar pela moral e os bons costumes. A rola, cá entre nós, excita tantos que não conseguem parar de falar nisso. Pouco importa se Boechat chamou Malafaia de homofóbico, tomador de grana, explorador da fé alheia, otário, paspalhão, entre outros qualificativos, a maioria mais relevantes para que se compreender o sentido dado ao pênis em questão. Interessa se comportar como crianças na escola: “olha, tia, ele falou palavrão!”

Além disso, a patrulha também tenta desviar o foco, insinuando que Boechat teria sido homofóbico. Uma pitada de contexto nesta salada pornográfica. Ao mandar o pastor “procurar uma rola”, o jornalista usou um sinônimo para “vá para a casa do caralho”, “vá tomar no cú”. Para as senhorinhas horrorizadas, a legenda: “Malafaia, arruma alguma coisa para fazer. Vai ver se estou na esquina!”

Em vez de se analisar o contexto de um problema social extremamente grave que provocou essa semana casos de violência contra crianças, ficar procurando moralismo em uma palavra é se tornar tão intolerante quanto os líderes religiosos – não apenas neopentecostais – que constroem projetos de poder em cima da alienação, da ingenuidade e da hipocrisia.

A maior ironia desta imbecilidade dos intolerantes que falam em nome de Deus é que não conseguem perceber que vivem em um Brasil misturado pela fé. Basta ver que, quando o calo aperta, se acende vela para todos os santos, entidades, deuses e afins.

Ah, a História das Religiões está infestada de perversões sexuais, de várias maneiras, com e sem rola, mas sempre com o gôzo pelo poder!