segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Por que estupramos?

Mulheres indianas protestam contra a cultura do estupro

Marcus Vinicius Batista

O Tribunal de Justiça de São Paulo não aceitou recurso e manteve a condenação de um homem, na semana passada, por sucessivos crimes de estupro. O sujeito, cujo nome não pode ser divulgado por segredo de Justiça, estuprou a filha durante 18 anos. A sentença foi de dez anos e nove meses de prisão.

Pai e filha moram no Guarujá. Do relacionamento que o desembargador Luis Soares de Mello considerou “verdadeira escravidão sexual”, nasceram três filhos-netos, dois meninos e uma menina, conforme comprovação de paternidade por exame de DNA.

A violência sexual aconteceu entre 1991 e 2008. A defesa do réu pedia prescrição dos crimes. Em parte, conseguiu. Os abusos sexuais entre 1991 e 1995 foram prescritos, como se fizesse alguma diferença. Os estupros, de acordo com relatos da vítima no processo, começaram quando ela estava com 16 anos. O pai alegou também que o relacionamento era consensual.

O horror não terminou aí. O sujeito responde a outro processo, desta vez em 1º instância, no Guarujá. A vítima, neste caso, é a filha-neta. O avô-pai, se é possível denominar assim, responde às acusações em liberdade.

A história descrita acima tem que provocar repulsa por si mesma e jamais ser encarada como uma exceção, como um desvio único no comportamento humano e daí gerar indignação. Este sujeito tem muitos semelhantes no Brasil e em outros endereços pelo mundo. Aqui, em sete de cada dez casos de violência sexual, o agressor é uma pessoa próxima da vítima, seja parente, vizinho ou amigo da família.

Na semana passada, também, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou o balanço da criminalidade no primeiro semestre de 2015. Sabemos que os números, por conta da falta de muitas notificações, tendem a ser maiores. Os casos de estupro, estatisticamente, caíram na Baixada Santista. Foram 114 casos, contra 163 no primeiro semestre do ano passado, redução de 30%.

Das nove cidades da região, apenas Santos registrou crescimento, de 20 para 21 estupros. Guarujá – coincidência? – se mantém na liderança, com 28 casos.

Francamente, os números são tão frágeis quanto necessários para pensarmos sobre esta doença social. 114 casos no primeiro semestre! É um estupro a cada 36 horas, a cada dia e meio. E não nos esqueçamos que muitas histórias de violência sexual são marcadas pelo silêncio do agressor e da vítima, como o exemplo de pai e filha no Guarujá.

O estupro representa mais do que uma epidemia. É uma pandemia, com registros elevados em todos os continentes. O que muda é somente o endereço e o pano de fundo cultural. Índia, por exemplo, com sua sociedade de castas e tolerância em muitos locais. Países escandinavos e o silêncio social. Nações africanas e o estupro como arma, para demonstração de poder contra os adversários em guerras civis. Mulheres simbolizam, de maneira explícita, propriedade e moeda de troca.

As sociedades contemporâneas, com particularidades culturais, fazem vistas grossas para a violência sexual. Em muitos cenários ditos civilizados e desenvolvidos economicamente, as mulheres não são vítimas, e sim encaradas como estímulo ao agressor. As roupas viram argumentos para justificar o estupro, inclusive com conivência e discursos agressivos de outras mulheres.

Não é incomum ouvirmos frases como: “Mas ela estava de shorts curto!”, “Se ela se vestisse melhor, não seria estuprada!” São variações que, na prática, se traduzem numa placa que deveria estar, na opinião dessas pessoas, pendurada no pescoço da vítima: “Por favor, me coma!”

Voltarei ao assunto, por causa da complexidade e também porque o caso de Guarujá acontece mais perto do que nós imaginamos (ou ignoramos).

Obs.: Caro leitor, há outros dois textos sobre tema, escritos por mim em 2013. São eles: Cultura do Estupro I e Cultura do Estupro II

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Onde os fracos não têm vez


Thaís Moraes Macedo

Quantas e quantas vezes não ouvimos a expressão: “Estude, pois a caneta é mais leve do que a pá”? Curiosamente, para aqueles que nos ensinaram durante toda a vida e tentam diariamente nos mostrar o real significado dessa expressão, pode não ser bem assim. Professores estudam, se aprimoram, montam aulas, corrigem provas em casa, comem o pão que o diabo amassou e sentem a caneta, ou melhor, o giz pesar cada vez mais.

Quem quer ser professor?, perguntavam os mestres no Ensino Médio e ninguém levantava a mão. Acredito que pensavam o seguinte: “Estudar muito para ganhar pouco e ainda encarar uns pentelhos feito a gente? Tô fora!”. Para ser professor, tem que ser muito corajoso, pelo menos aqui no Brasil. Essa falta de interesse dos jovens é explicada pela indiferença que os governos dão àqueles que estão na linha de frente dessa batalha chamada educação.

Salários baixíssimos, falta de estrutura e ausência de plano de carreira, na maioria das vezes, deixam a profissão ainda menos atraente. Só os fortes sobrevivem. Enquanto nos países nórdicos, como a Suécia, tornar-se professor é muito mais difícil do que passar no vestibular de medicina e ser a profissão mais respeitada, aqui os mestres são tratados por como meros seres que ensinam as crianças a escrever e decorar a tabuada e devem, segundo muitos pais, dar educação, no sentido familiar da palavra.

A falta de investimento faz com que professores não se dediquem integralmente à profissão, não por opção, mas por mera necessidade. Em Santos, a segunda melhor cidade do país para se criar filhos (???), de acordo com ranking divulgado pelo Exame.com, em levantamento com 100 cidades brasileiras, quase metade (44,5%) dos professores da rede básica são obrigados a ampliar a jornada para conseguir pagar suas contas. Trabalhando com educação ou não. E ainda reclamam quando fazem greve.

Em pleno 2015, na Era do Conhecimento, para muitos a caneta tem sido mais pesada do que a pá.

sábado, 4 de julho de 2015

Somos todos racistas


Não me surpreendo com a comoção urgente em torno dos ataques racistas contra a jornalista Maria Júlia Coutinho. A Internet, com foco nas redes sociais, funciona também como instrumento para exercícios de intolerância, das mais variadas ordens. Ofensas e desqualificação do outro são regras no território onde os valentões de teclado se escondem.

Se a intolerância é um exercício de estupidez, agredir uma apresentadora de TV da maior emissora da América do Sul ultrapassa os limites da imbecilidade. O racismo ganhou, obviamente, contornos de cruzada moral, virou bandeira de ocasião, provocou reações – muitas delas – politicamente corretas e, como historicamente se esperava, atiçou o espírito de corpo de jornalistas e outros profissionais de mídia.

Em dez anos que leio e estudo discriminação racial, que inclui um trabalho de pós-graduação sobre o tema nas escolas públicas, testemunho sempre a mesma ciranda. Vi professores negros usando vocabulário ameno para sobreviver nas redes de ensino. Vi docentes exigindo Dia Nacional da Consciência Branca. Vi professores qualificados como professores negros, e não somente como professores. Ou você já identificou alguém como professor branco, médico branco, dentista branco, amigo branco?

Vejo ainda uma minoria de docentes negros nas instituições privadas. Vejo alunos negros nas salas de aula de cursos de baixo ou médio prestígio acadêmico (ou que dão menos dinheiro). E esbarro diariamente em funcionários negros, quase todos de baixa hierarquia e quase sempre invisíveis aos olhos de quem deveria agradecê-los.

A repetição pós-caso novo de racismo traz, de imediato, os indignados de plantão, que repetem a ladainha de democracia racial e do país mestiço. Em muitos casos, se recorre a argumentos simplistas e de autopreservação, como apontar parentes, amigos, ex-namorados negros como prova de que o sujeito não é racista. Não ser racista é ser humano, independentemente da cor da pele de quem quer que seja!

O segundo passo do espetáculo é criar e difundir a campanha da semana nas redes sociais. “SomostodosMajú” é a bola da vez, como foi com Neymar – um apresentador de TV ganhou dinheiro à beça vendendo camisetas com um slogan. Causa-me fadiga observar mais uma campanha para envolver pessoas em bolhas de plástico, sem efeito político real, com impacto nas instituições.

A mobilização é retórica, no discurso indignado da vida editada do planeta Zuckerberg. No microcosmos cotidiano de cada indivíduo, a vida segue no mesmo ritmo, preconceituosa, de palavras leves para um crime. O quintal do vizinho é sempre mais machista, homofóbico, racista, entre outros adjetivos plantados no solo alheio.

O mundo está muito além das redes sociais e da forma como a televisão o conta, de olho na matemática da audiência. Não desmereço de maneira algumas as reações (caso um sabe onde dói o calo da hipocrisia), mas o passado recente e remoto nos indica que a campanha dará lugar a outra, e à outra, e mais outra.

Continuaremos racistas enquanto sociedade, sem admitir que o somos. Como disse o sociólogo Octávio Ianni, o brasileiro tem preconceito contra o próprio preconceito. Apontamos o dedo para o lado na prática do moralismo burro, incapazes de nos olharmos no espelho e tratarmos nossas feridas culturais.

Por mais que intelectuais, inclusive com cargos importantes em TV, escrevam obras que negam o racismo no país, a rotina diária das relações sociais e trabalhistas escancaram como somos um país que segrega. A crueldade, aliás, reside exatamente neste ponto: negamos que somos uma nação impregnada de preconceitos, creditamos ao outro a construção de estigmas e, quando a situação aperta, preferimos não tocar no assunto.

A própria história da TV brasileira se construiu pelo olhar branco e de costas para a diversidade dos Brasis. Refiro-me a todos os canais, de todas as épocas. Maria Júlia Coutinho é exceção na TV nacional. Os negros são exceções na mídia brasileira, como são na elite educacional, na política, em diversos esportes, entre as lideranças religiosas (tirando as religiões afro-brasileiras).

A TV brasileira, como qualquer linguagem de mídia, é ressonância da dinâmica social brasileira. O centro nervoso – e o olhar cultural decorrente disso – é o eixo Rio-SP e, a partir daí, se tem a criação de um Brasil via TV, com seus padrões estéticos europeus e a redução da diversidade. Um alienígena, caso ligue um aparelho de TV, jurará que se fala português na Dinamarca.

Maria Júlia Coutinho respondeu com elegância, não vestiu o manto de vítima, e a empresa em que trabalha deu a ela respaldo jurídico. O Poder Judiciário saiu com cinismo da inércia e abriu linha de investigação. Teremos réus quase em tempo real, aposta ganha. Mas me fica a dúvida: e os milhares de casos de racismo que ocorrem todos os dias? Por que muitos delegados registram discriminação racial como agressão para evitar o crime inafiançável ou minimizam (quando não tripudiam) a fala das vítimas?

Recentemente, o goleiro Aranha - quando atuava no Santos – acusou a torcida do Grêmio de racismo. As câmeras de TV eram a prova cabal do crime. Uma jovem foi a única indiciada. Aranha foi o herói da semana. Parte da imprensa, cartolas, jogadores e até muito torcedores do Santos tentaram dias depois transformar o goleiro em vilão, buscando apagar ou distorcer suas palavras e atitudes. Sempre os panos quentes.

O racismo no Brasil vai além das fronteiras da TV e de uma de suas apresentadoras. O racismo é um tumor que persiste no organismo social brasileiro. Nasceu com ele, desenvolveu-se com ele e achou um cantinho para viver por mais de cinco séculos. Temos estrutura jurídica para investigar, julgar e condenar os selvagens, porém praticamos a seleção natural, separando quem tem direito à lei e quem tem direito ao não institucionalizado. Discriminação racial e social caminham de mãos dadas.

Azar daqueles que se expuseram seu racismo em redes sociais e produziram provas contra si mesmos. Se fossem mais espertos, teriam se escondido atrás de instituições de todos os poderes, inclusive da imprensa. Nestes lugares, o racismo não é pauta, é tão invisível quanto suas vítimas. Exceto quando uma pessoa famosa é alvo da idiotice inerente ao intolerante.

Só seremos melhores quando etnia e raça deixarem de aparecer na mesa de debates. Não é ignorar o problema, mas desconhecê-lo por que – num Brasil utópico – ele deixou de existir, tornou-se um conceito incompreensível.

Maria Júlia está certa, repito, mas só alcançaremos o patamar descrito acima quando nos indignarmos com Josés, Joaquins, Aparecidos, Severinos e outros nomes, em quaisquer funções sociais.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Em qual Papa acreditar?


O quintal de Eduardo Cunha? 
O deputado federal João Paulo Tavares Papa, quase sempre discreto, ganhou os holofotes por ter votado contra a redução da maioridade penal, ignorando a correnteza indicada pelo PSDB. E permaneceu no foco porque mudou o voto 24 horas depois, no golpe armado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. 

No tribunal de gritos das redes sociais, Papa reuniu elogios e críticas com corpo de ofensa. Passou de traidor a sujeito coerente e vice-versa. Papa, até o momento, nadava junto com a esquadra de partidos conservadores, dominante na Câmara Federal. Ele seguia com os colegas Beto Mansur e Marcelo Squassoni, demais representantes da Baixada Santista no Congresso Nacional, em votações como terceirização e financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Um parênteses: Bruno Covas têm domicílio eleitoral na Capital e sempre foi turista político por estas bandas.

Apenas o tempo e o restante do mandato vão dizer os porquês das duas decisões tomadas pelo ex-prefeito de Santos. Não me arrisco a especular os motivos e tampouco cogito a utopia da convicção ideológica (artigo extinto na política brasileira, salvo os guetos nanicos). No caso de Papa, é preciso paciência, pois seus passos nunca respondem pelo dia de hoje, embora a segunda votação pareça sobrevivência parlamentar.

Afilhado de Oswaldo Justo, Papa aprendeu que a política é a arte de trabalhar em silêncio, sem jogar palavras ao vento. Como aluno de muito bom nível, ele compreendeu que política eficiente é aquela que possui projeto de poder e que os holofotes da mídia devem ser domados, com doses homeopáticas de vaidade.

Apesar de terem perfis diferentes, Papa e Márcio França talvez sejam os peixes grandes que melhor digeriram a dinâmica do aquário político-eleitoral. Papa foi o maior vencedor da eleição municipal em 2012, na região. Adiou a construção de um sucessor – Sérgio Aquino – para confirmar a vitória do sucessor que desejava, de fato.

Foi a cartada para assegurar a própria eleição, dois anos depois. Neste tempo, sumiu por três meses, reapareceu com a saída do PMDB e filiação ao PSDB, manteve-se nas sombras numa diretoria da Sabesp e só retomou o caminho da luz ao se candidatar à deputado federal. Isso sem receber farpas por conta da crise hídrica, na qual a Sabesp representa um dos papéis principais.

A visibilidade controversa por causa da votação em Brasília é um acidente de percurso, perfeita e infelizmente contornável. Acompanho a carreira política de Papa desde a superintendência regional da Sabesp, no início da década de 90. Ele é um político de passos lentos, porém seguros.

Papa se encaixou no perfil de gerente, desejado pelos eleitores a partir do século 21. Nunca perdeu uma eleição e soube deixar outros políticos, que poderiam atrapalhá-lo, no acostamento. Muitos dos problemas atuais da cidade, como trânsito, esquizofrenia imobiliária e população de rua, nasceram ou se agravaram em sua gestão, mas Papa nunca foi associado a eles. E jamais teve o nome aliado à má gestão financeira ou corrupção.

Três fatores vão desviar, em breve, a navalha do pescoço do deputado federal. Seriam golpes de sorte? O primeiro, em caráter nacional, é o comportamento do presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha. Em mais um golpe, o déspota do Legislativo pautou o mesmo projeto com maquiagem, o que tirou de cena a votação anterior, em urgentes 24 horas.

Depois, na região, Papa poderá sofrer um pouco mais com a choradeira concentrada em redes sociais, que não altera o cotidiano da rua que se veste conservadora para se fingir progressista. E, como terceira variável, o eleitorado sofre de amnésia, ainda mais sobre o Poder Legislativo, onde a desinformação é convidada vip da casa.

Todo político precisa de sorte? Talvez. Não sei em qual Papa acreditar, mas os políticos que sobrevivem sabem que informação, planejamento e projeto de poder são o coquetel da vitória nas urnas. Tanto para o deputado que votou SIM como para o deputado que votou NÃO, prefiro esta última hipótese.

sábado, 20 de junho de 2015

A rola e os intolerantes


Ao mandar o pastor Silas Malafaia “procurar uma rola”, o jornalista Ricardo Boechat acendeu uma série de fogueiras inquisitórias. Não me cabe aqui cair na armadilha de fugir do assunto e discutir inutilidades como Boechat baixou o nível, merece ser processado ou perdeu a razão. Boechat falou o que muitos pensam, foi o porta-voz de muita gente e, se for preciso uma palavra forte para mover os acomodados, que se diga rola e que se traga o restante do dicionário!

No entanto, a fogueira que mais arde não é a dos palavrões, mas a da intolerância religiosa. Somos um país que mistura, desde o nascimento, religião e política. Sempre, aliás, em prol de uma ou mais religiões que ditaram moralidade e usufruíram das mamas do poder. Atualmente, parte do Congresso Nacional forma a bancada da Bíblia, nada coesa em termos de doutrina, mas unida para perseguir vozes dissonantes, exalar preconceito, trabalhar contra a cidadania e a favor de benefícios próprios.

A discussão entre o jornalista e o pastor deveria colocar na mesa o fato de que todas as religiões, cedo ou tarde, se defendem a partir do ataque ao outro. É uma guerra pela fé, poder e dinheiro alheio, que transformou as religiões em produtos, empresas e negócios bilionários. Marketing religioso é, hoje, uma área estabelecida e especializada.

Atacar os adversários atende também a duas exigências de um projeto de poder. Para crescer, qualquer religião ou seita precisa roubar fiéis de instituições adversárias. Para que isso aconteça, não valem somente pregações, discursos e intepretações do texto sagrado “que puxam a sardinha” e os outros peixes.

No boxe por Deus, prevalece um dos princípios básicos da Propaganda de Guerra: envolvimento emocional. Este envolvimento se sustenta no amor à alguém ou a uma causa e, de forma simultânea, à criação e personificação de um inimigo, que precisa ser odiado e, se possível, destruído. A simplicidade maniqueísta – expressão que nasce na religião, por sinal – é o motor da desinformação, do desrespeito e da truculência.

A História das Religiões é recheada de prateleiras com exemplos. Das Cruzadas à Jihad Islâmica. Das Igrejas neopentecostais ao Estado Islâmico. Da catequização indígena à perseguição contra judeus. Todas as guerras em andamento no século 21 têm, direta ou indiretamente, fundo religioso, a imposição de fé e doutrina via armas e mortes.

Frequentar uma igreja, templo, terreiro ou outro tipo de imóvel nunca salvou ninguém. Conheço espíritas que sorriem e falam sereno enquanto te prejudicam. Conheço evangélicos que vomitam preconceitos enquanto repetem comportamentos condenáveis entre quatro paredes.

Conheço católicos que falam em Jesus Cristo para, em seguida, prejudicar o próximo e lutar pelas migalhas do poder. Conheço gente que pede proteção aos orixás e, por conveniência, exala segregação e racismo no cotidiano. E conheço pessoas que são adeptas destas e de outras doutrinas e convivem conforme os preceitos que abraçaram, quando colocam a humanidade e o humanismo acima de textos e retóricas. 



A segunda fogueira, menos ardente, é a do politicamente correto. Ô gente chata, sempre disposta a podar pela moral e os bons costumes. A rola, cá entre nós, excita tantos que não conseguem parar de falar nisso. Pouco importa se Boechat chamou Malafaia de homofóbico, tomador de grana, explorador da fé alheia, otário, paspalhão, entre outros qualificativos, a maioria mais relevantes para que se compreender o sentido dado ao pênis em questão. Interessa se comportar como crianças na escola: “olha, tia, ele falou palavrão!”

Além disso, a patrulha também tenta desviar o foco, insinuando que Boechat teria sido homofóbico. Uma pitada de contexto nesta salada pornográfica. Ao mandar o pastor “procurar uma rola”, o jornalista usou um sinônimo para “vá para a casa do caralho”, “vá tomar no cú”. Para as senhorinhas horrorizadas, a legenda: “Malafaia, arruma alguma coisa para fazer. Vai ver se estou na esquina!”

Em vez de se analisar o contexto de um problema social extremamente grave que provocou essa semana casos de violência contra crianças, ficar procurando moralismo em uma palavra é se tornar tão intolerante quanto os líderes religiosos – não apenas neopentecostais – que constroem projetos de poder em cima da alienação, da ingenuidade e da hipocrisia.

A maior ironia desta imbecilidade dos intolerantes que falam em nome de Deus é que não conseguem perceber que vivem em um Brasil misturado pela fé. Basta ver que, quando o calo aperta, se acende vela para todos os santos, entidades, deuses e afins.

Ah, a História das Religiões está infestada de perversões sexuais, de várias maneiras, com e sem rola, mas sempre com o gôzo pelo poder!

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Terra das tartarugas




Santos se comporta, por vezes, como o retrato do sonho brasileiro. É a terra onde se planta e tudo dá. A cidade do futuro. E outros clichês de um lugar onde suas lideranças políticas insistem em vislumbrar o amanhã, sem pavimentar o presente e aprender com o passado.

Inflacionamos o mercado imobiliário e multiplicamos as placas de vende-se e aluga-se, quando a bolha estourou. Prometemos ser o endereço da sustentabilidade e precisamos de mobilização popular para salvar uma árvore cujo assassinato beneficiaria uma empresa. Juramos ser o CEP do turismo de negócios e seguimos dependentes de veranistas três meses por ano e feriados prolongados.

A megalomania costuma apontar quem somos (ou como pensa a classe política que nos governa). No entanto, são as pequenas ações, as sutis alterações na paisagem e na rotina da cidade que simbolizam – de fato – o que desejamos ou até onde caminha nossa cegueira. E mais: escancara a ausência de compreensão do que significa a palavra Planejamento.

Um dos exemplos de que o microscópio amplia as entrelinhas da doença foi a instalação de um semáforo na esquina da rua Ministro João Mendes com a avenida Siqueira Campos (canal 4). É o quarto semáforo num trecho de quatro quadras. Um semáforo que trava ainda mais o trânsito numa via que deveria ser um corredor.

A faixa de pedestres é a cereja no bolo. A faixa permaneceu onde estava, antes do equipamento ser instalado. Em outras palavras, atravessar nela significa encarar sempre sinal verde para os veículos. Sempre! Das duas, uma: ou quem autorizou a instalação do semáforo está cego ou é mais um exemplo de que se entrega um serviço pela metade, calam-se os críticos, e os ajustes são feitos na base do quando dá?

Ampliando um pouco o problema, andemos pelas ruas do bairro onde fica o semáforo. O Embaré, principalmente nas ruas internas, virou uma salada de política de trânsito. A rua São José é mão para a praia a partir da Frei Francisco Sampaio. A partir da avenida Pedro Lessa, a rua tem duas mãos. Muitas ruas do bairro têm rotatórias, política defendida por gestores passados e que reduziram acidentes na região. Outras receberam semáforos, olhar de quem governa em dias atuais.

Se encostarmos o microscópio e abrirmos o telescópio, veremos que o semáforo novo no canal 4 e a situação do Embaré refletem a cidade em vivemos. Todo mundo sabe que a malha viária é esta aí. Não há como crescer e, por conta disso, uma política pública de trânsito e transporte seria ainda mais necessária.

É claro que a mentalidade de ter carro como objeto de consumo está além das fronteiras do município. Só que vivemos de ações paliativas que apenas adiam o retorno do problema. São aspirinas para um paciente em metástase.

Proibir o estacionamento em avenidas nos horários de pico alivia, mas não corta o efeito do vírus chamado congestionamento. Sair do centro e chegar à Ponta da Praia ou à divisa com São Vicente no final da tarde pode levar uma hora. Na segunda, passam a valer restrições de estacionamento nas ruas Machado de Assis e Lobo Vianna, no Boqueirão. Por que este cronograma não é público para que as pessoas saibam o que ocorrerá mês a mês, por exemplo?

O coração do problema é, todos sabem, o transporte coletivo. Ônibus grandes demais para vias apertadas. Pontos mais distantes que travam os coletivos para beneficiar os carros. Sistema de linhas circulares que ninguém mexe há 30 anos. Um preço de passagem que não condiz com o serviço prestado e o quilômetro rodado.

Diante de todos estes problemas, ainda somos carnavalescos em crer que o VLT será uma saída metropolitana. De nove cidades, virou um projeto para dois municípios e olhe lá! Um projeto refém de interesses empresariais com quem os políticos ficam arrepiados só de ouvir o nome.

Por enquanto, os ciclistas conseguem se salvar. As faixas exclusivas aumentaram, embora as ciclovias mais antigas sofram com buracos e saliências do piso.

Debater transporte e trânsito é perceber, entre outros aspectos: 1) não é possível enxergar uma política de quatro anos, quanto mais de uma década, prazo mínimo em países mais adiantados; 2) que os problemas do setor devem se agravar em prazo curto, como acontece em dezenas de cidades com densidade populacional alta e baixo planejamento; 3) que falar em metropolização é acreditar em Papai Noel.

Santos, realmente, é um símbolo do que assistimos fora daqui e para quem, com cinismo, apontamos o dedo do moralismo rasteiro.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Os donos do amor



O filme publicitário de O Boticário sobre o Dia dos Namorados é um exemplo de criatividade. Não se trata do conteúdo, da narrativa em si, que mostra diversas pessoas se preparando para encontrar seus namorados e namoradas, pessoas de diversas opções sexuais, de idades diferentes.

O filme de O Boticário entrou para a História da Publicidade brasileira pelo circo, e não pelo número de um dos artistas. O filme em si, aliás, é convencional, sutil, discreto até. Nem beijo há! O Boticário somente escapou do clichê tradicional de casais heterossexuais, que representam a família feliz, aquela que depois vai gerar um casal de filhos na publicidade de margarina.

O Boticário não revirou valores, prática coerente com o papel da Publicidade. Esta linguagem sempre se baseia em um cenário idealizado, de venda ilusória de felicidade e de liberdade. Os valores nascem de percepções do público, e não o contrário. Por essas e outras, a Publicidade pouco se arrisca diante de certas certezas, como o Dia dos Namorados.

A grande sacada de O Boticário foi perceber antes uma mudança gradual de comportamento em diversos setores da sociedade. Legislação, mídia, representantes políticos, movimentos sociais, apareceram diversos sinais de que a homofobia (e seus sintomas doentios) e a liberdade sexual ganharam outros olhares nos últimos anos.

A intolerância, um exercício de ignorância, misturado à virulência com pitadas de falta de inteligência, caiu no pulo do gato. As reações foram truculentas e previsíveis. As manifestações de homofobia, apoiadas no moralismo religioso, saltaram como veias alérgicas. Os preconceituosos de Bíblia nas mãos – desconfio que leram, mas não entenderam – fizeram exatamente aquilo que a empresa de cosméticos desejava.

A informação deixou de ser necessária há décadas na Publicidade, salvo certos segmentos como o varejo. Na Era da Imagem, a ordem é envolvimento emocional. Mais do que dados sobre a marca e o produto, a obviedade é fazer com que o consumidor traga as mercadorias para dentro de casa. Defenda-as. Integre-as às próprias lembranças. Chame-as pelo nome a ponto de considerá-las parentes. E, acima de tudo, rejeite a concorrência. Como a Coca-Cola e a campanha pela refeição em família!

O Boticário conseguiu o que queria. Não tinha como medir o tamanho da tempestade, mas poderia prevê-la. Em primeiro lugar, visibilidade para a marca. Depois, o apoio incondicional de consumidores, que elevaram a imagem da empresa ao defendê-la contra os inquisidores medievais. E, por tudo isso, os cifrões deverão se multiplicar em sua conta bancária, no mínimo, até dia 12 de junho. Comprar no Boticário, para os ingênuos, virou ato político.

Os intolerantes, agarrados à escuridão da própria visão de mundo e ao individualismo, são os melhores servos pela incapacidade de se colocar no lugar do outro. São os melhores servos porque tagarelam como matracas as palavras de um líder religioso repleto de interesses político-econômicos. São os melhores servos porque dão visibilidade a uma empresa, que lucrará como poucas vezes em sua história.

Homofóbicos, essa semana seu Deus chamado Mercado se perfumou com O Boticário. Sentiu a fragrância? Feliz Dia dos Namorados!