terça-feira, 15 de julho de 2014

A lei contra os porcos


A aplicação das primeiras multas para as pessoas que sujam as ruas de Santos reforçou os holofotes sobre a lei do lixo. Apesar da aprovação elevada da população e da importância de colocar o tema em pauta, a lei esconde aspectos culturais, passíveis de reflexão. 

Ele não precisa de lei. Só suja o próprio quintal

A lei se encaixa no comportamento cultural de que é preciso a mão forte e paterna do Estado para que problemas coletivos sejam amenizados ou resolvidos de vez. O pai é sempre provedor, juiz e carrasco e, desta forma, sabe o que desejamos para nós mesmos. A surra vem da mesma mão que acaricia.

Não digo que esta lei é desnecessária. Sabemos, contudo, que o país acolhe os atos jurídicos como leis que pegam e leis que não pegam. É a voz silenciosa, a reação muda de todos os envolvidos, no paradoxo de quem aceitou uma canetada de cima para baixo, excluindo-se da criação da legislação.

Implantar uma lei seria, na visão de muitos políticos, a maneira de mostrar serviço aos eleitores, ainda que não represente mudança na estrutura de fiscalização. Para os eleitores, é o conforto da transferência de responsabilidade, de quem não se vê como elemento essencial no problema.

Por outro lado, a legislação ilumina um comportamento selvagem, independentemente da conta bancária. Falta de educação não está ligada a diploma, local de moradia, classe social ou custo do carro financiado. Jogar lixo na rua significa a ausência de consciência político-cidadã, na qual o indivíduo é capaz de compreender que o espaço público é de todos e deve ser zelado pela coletividade.

A lei do lixo também expõe que certas posturas só podem ser construídas se o bolso fica mais pesado. Multas alteram ações cotidianas. Multas geram medo, fazem o sujeito pensar duas vezes. Mas daí nascem duas ideias. A primeira é que talvez o sujeito não incorpore ou entenda a necessidade de se portar de outro jeito. Apenas o faz porque teme a punição. O outro aspecto é que, sem fiscalização contínua, transgredir seja usual. Dirigir falando ao celular funciona como exemplo.

A nova legislação merece que pensemos sobre outro ângulo. Até que ponto a Prefeitura está preparada para manter um sistema de fiscalização? Por enquanto, as luzes da imprensa, o impacto político imediato e a reação das pessoas no dia a dia mantém acesa a chama que aproxima fiscalização e marketing político. Câmeras acompanham fiscais. Os primeiros infratores vestem o manto da crucificação.

A lei seca se enquadra em ambas as hipóteses. Depois de tanto alarde, entre blitz policiais e comandantes desfilando palavrório na TV, a fiscalização desapareceu. Motoristas bêbados reativaram suas máquinas de matar. Mortes e sobreviventes com sequelas povoam o noticiário todas as semanas. Tragédias que são lamentadas até nas mesinhas de bar.

Numa leitura das entrelinhas, a lei do lixo deveria servir ainda para elevar o nível de consciência ambiental. Mas um passo por vez. Com a leitura consumidora de mundo (traduzindo: “estou pagando”, para lembrar de um bordão humorístico), muitas pessoas encaram meio ambiente como aquele enfeite de decoração na mesa da sala.

Santos segue esta mentalidade. É uma cidade cada vez mais cinza, marcada pelo concreto e ferro dos espigões que se multiplicam como coelhos. A lei do lixo precisa ser enquadrada em um pacote mais extenso e profundo. Caso contrário, vai engrossar a coleção de ações ambientais isoladas, que servem de badulaques eleitorais e sequer arranharam o estilo de vida adotado pelo município nos últimos 20 anos.

Peço desculpas pelo título desta coluna. Não a você, leitor civilizado. Desculpem-me os porcos, que vivem sem aparências e com a coerência de sujar somente a própria casa.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O fator França


A decisão do PSDB em escolher o deputado federal Marcio França como candidato a vice-governador do Estado, ao lado de Geraldo Alckmin, não é para causar espanto. Pelo contrário. França cantava em verso e prosa há seis meses, o que representou, para adversários, mais um blefe do que uma costura política. O tempo confirmou a segunda hipótese.

Marcio França, ao lado do governador Geraldo Alckmin

Depois de um ano e meio, Marcio França prova que aprendeu com a maior derrota política da carreira. O ex-prefeito de São Vicente protagonizou a surpresa da última eleição na Baixada Santista. Ele aprendeu como a soberba afoga um político em águas rasas. Assistiu, nos últimos minutos, a virada de Luiz Cláudio Bili – um ex-aliado – sobre o filho Caio França, na Prefeitura local. E a derrota veio justamente da Área Continental, endereço que a turma no poder considerava um curral sob o cabresto.

Marcio França é um político à moda antiga, excelente aluno dos velhos caciques, até que se tornou um deles. Conhece como poucos a fórmula para alianças, a dança de distribuição de cargos, as palavras e os assuntos que o eleitor costuma ouvir com atenção. Domina também a dinâmica da mesa de cartas, com blefes e exageros na propaganda.

Entre 2012 e 2013, França ficou sete meses fora dos holofotes – quase sem falar com a imprensa. O cenário atual indica que, após digerir o nocaute, ele trabalhou atrás das cortinas, com paciência, conforme reza a cartilha da política tradicional. Fingiu-se de morto enquanto lia com clareza o cenário no horizonte.

Ele estreitou as relações com Eduardo Campos, sem se descuidar do namoro com Geraldo Alckmin. Neste sentido, pôde valorizar – ainda que em demasia – seu papel no casamento entre Campos e Marina Silva. Vendeu um peixe maior dentro de casa e contou com o óbvio: poucos vão até o rio para conferir a história do pescador. Na política e na guerra, propaganda é a chave da sobrevivência.

Desde que Marcio França começou a se destacar na política regional, logo no início da gestão como prefeito, fala-se que o sonho dele é ser governador do Estado. Em 2012, os mais apressados diziam que França se escondeu numa secretaria estadual irrelevante, a de Turismo, argumento reforçado com a derrota em São Vicente. O sonho dele estaria sepultado, em definitivo.

A política ensina que sempre há uma segunda oportunidade, desde que o sujeito compreenda que cargo e poder não são sinônimos. Relacionamentos são bem mais importantes do que plaquinhas na mesa, assessores e carros oficiais.

Para Marcio França, a vida na secretaria serviu para garanti-lo no círculo político de Alckmin, personalidade mais discreta do que ele, mas com doutorado no teatro das sombras, onde o palco somente sela os pactos das coxias.

Ao se candidatar à vice-governador, Marcio França adota relativo risco. Uma derrota – em princípio, improvável – o deixaria sem mandato, o que poderia atrasá-lo na caminhada. A vitória daria a ele tempo (e poder) para se preparar para a eleição seguinte, quando poderia se ver perto do sonho de infância política.

Por outro lado, a proximidade com Eduardo Campos é a segunda canoa onde colocou os pés, o plano para uma surpresa em São Paulo. Perder em âmbito federal é previsível, mas o número de votos é a garantia para reatar o namoro em Brasília, o que arrastaria França de volta para os braços do poder. Um peixe pequeno – é verdade -, mas no aquário com melhor alimentação.

Ver o filho perder a eleição em São Vicente abriu, de fato, os olhos do pai. França compreendeu a real dimensão da cidade e seu provincianismo político. Até o momento, na campanha eleitoral, ele deu o passo para subir a escada, com a vantagem maquiavélica de não jogar as fichas numa só roleta e sem abandonar o quintal de casa.

domingo, 29 de junho de 2014

A Copa e a urna

A Copa do Mundo é quase sempre previsível. As falsas surpresas costumam atender e alimentar as paixões, mas a proximidade das finais confirma que os tubarões dominam o aquário. A cadeia alimentar acaba sempre preservada.

A política-eleitoral adora a festa do futebol. Gols contra, faltas mais duras, mordidas financeiras e mudanças de esquema tático acontecem com a frequência desejada, sem que os torcedores percebam a virada de campo, sem que os juízes apliquem suspensões.

Em tempos de Copa do Mundo, a política-eleitoral assume escandalosamente o futebol de resultados. É hora de definir os elencos que disputarão o campeonato em outubro. Contratações e convocações, cortes por contusão ou naturalizações de última hora movimentam o mercado de seleções partidárias.

Como as partidas ainda não começaram de fato, os treinos abertos servem de aperitivo para a imprensa, políticos locais – que sonham em atuar em clubes de maior visibilidade – e torcedores-eleitores de facções organizadas. Nesta semana, Santos testemunhou o treino aberto de um dos favoritos ao título. A presidente Dilma Rousseff fez sua estreia na cidade e provocou reações sintomáticas dentro de um esporte cada vez mais carnavalesco. Muito barulho, pouco conhecimento, parafraseando Tostão.

Ao contrário deste texto, transformar a política numa partida de futebol é pouco saudável. Culpar, por exemplo, a presidente pelo trânsito em Santos é tão infantil quanto responsabilizar a tia-avó do interior pela cerveja quente no churrasco. É previsível, evidentemente, que esta reação aconteça, diante da metamorfose da política eleitoral em um Flamengo e Fluminense. Se não é culpa do PT, deve ser coisa do PSDB. E vice-versa, como diria o velho atacante filósofo.

Dilma veio para uma solenidade de anúncio de obras, assim como o governador Geraldo Alckmin faz todos os meses. Se as obras vão acontecer, é outro episódio. Quem se lembra da visita do governador, no ano passado, com seis projetos anunciados que não existiam?

O caos no trânsito reforça o delírio que é chamar a Baixada Santista de região metropolitana. Os congestionamentos indicam como Santos e seus vizinhos são mal preparados para qualquer evento que saia do roteiro cotidiano que, aliás, é marcado pela degradação contínua da mobilidade urbana, para usar uma expressão surrada na boca da classe política.

Acusar a visita da presidente de eleitoreira é como dar ouvidos ao comentarista que repete as palavras do narrador após o gol. Nada acrescenta, assassina o contexto, distrai do real objetivo. É óbvio que tem a capitalização eleitoral em qualquer passeio. Ou os eleitores não capazes de discernir a velha tática?

Analisar o jogo significa conhecer a história dele, estudar cada um dos times envolvidos, acompanhar a fundo – bem antes da competição – a trajetória de cada atleta-candidato. Ler um time e seu principal jogador por apenas uma partida significa apostar todas as fichas na Costa Rica como campeã do mundo.

Copa do Mundo e eleições são quase gêmeas. De perto, é possível notar uma pequena diferença entre elas. Se na Copa do Mundo são permitidas surpresas na primeira fase, as eleições costumam ser previsíveis nesta etapa. A irmã eleitoral raramente apronta e, quando o faz, prepara o susto para a decisão. O problema é que, neste tipo de jogo, times milionários geralmente atropelam os nanicos e ganham de goleada.


sexta-feira, 27 de junho de 2014

A bomba-relógio


Cubatão é uma granada. A cidade tem potencial explosivo, seja para se desenvolver economicamente, seja para estilhaçar a política local. Todos sabem onde fica o pino de segurança, capaz de evitar mudanças ou tragédias. O problema é que ninguém se interessa, de fato, em guardar o armamento em segurança.

O atual prefeito, Wagner Moura, testemunha um período de cessar-fogo e talvez consiga fazer a transição sem sobressaltos. Por enquanto, a dança política segue o caminho da obviedade. Moura adapta o governo à imagem e semelhança, com trocas de secretários e outros cargos de confiança. Marcia Rosa luta para retomar o poder, sem entrar para a História do município pela porta dos fundos.

O Poder Legislativo costura em silêncio, com um olho no Paço Municipal e outro, no Tribunal Superior Eleitoral. A Câmara Municipal é parecida com as demais casas da Baixada Santista. Salvo exceções que não fazem verão, os vereadores se agarram ao poder e aos seus privilégios, abandonam o comandante do barco ao primeiro sinal de naufrágio e não se incomodam em saltar em outra embarcação, mesmo que o estilo de navegar seja distinto.

Cubatão é politicamente predestinada. Nenhuma gestão conhece a paz plena. A diferença, aparentemente, é que desta vez os rumos da montanha russa foram resolvidos no Poder Judiciário. Mas Wagner Moura precisa se proteger de estilhaços. Ele ainda é visto como transitório, mas virará alvo se entrar na disputa eleitoral.

Entre franco-atiradores, turistas e velhos coronéis, meia dúzia de pessoas levantaram o braço para se tornar o próximo prefeito. Esta turma heterogênea só se une para torcer pelo enterro político de Marcia Rosa. Entre blefes e acertos, a campanha política fora de hora é como uma Copa do Mundo na cidade.

A calmaria política, contudo, é ilusória. A guerra pelo poder, mesmo que nos bastidores, nunca deixou de existir. Na verdade, as decisões judiciais colocaram a política local em falso ponto morto. Ninguém se arrisca. É hora de se ter paciência, algo incomum na biografia política da cidade.

Se pensarmos na história recente, Cubatão não costuma solucionar problemas com conversa. As decisões são na bala. Assessores e vereadores foram mortos. Falava-se até em lista de procura-se, como no Velho Oeste. Anos antes, o então prefeito Clermont Silveira Castor foi vítima de atentado. Crimes políticos sem solução.

O próprio prefeito interino, Wagner Moura, teve as duas filhas sequestradas por 38 dias, em 2013. Os sequestradores acabaram presos.

Numa encruzilhada político-eleitoral como esta, o que se pode esperar no município? A decisão do TRE será mesmo soberana? Podemos apostar no diálogo como meio para desatar os nós da discórdia?

Enquanto isso, Cubatão permanece desigual e com graves problemas sociais. Os rios de dinheiro que correm pelo ICMS, por exemplo, nunca desaguaram em desenvolvimento ou redução das diferenças no município. A economia da cidade é tão cinzenta quanto os muros que nasceram nas vilas operárias.

A área da saúde enfrentou, recentemente, denúncias de ambulâncias que viraram sucatas. O déficit habitacional parece insolúvel, quando não acontece gritaria pela revenda ilegal de apartamentos em conjuntos entregues pelo CDHU.

Cubatão, como qualquer peça interessante de não ficção, é um roteiro vivo. É uma história com múltiplos elementos cinematográficos, que envolvem traições, reviravoltas, paixões instantâneas, violência e mortes. Mas é uma combinação explosiva em que o público – parte omisso, parte conivente – é mero espectador da narrativa.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A estação-símbolo


A quem pertence a Estação da Cidadania?
A Estação da Cidadania, encravada na esquina das avenidas Ana Costa e Francisco Glicério, é um símbolo de Santos. Como qualquer endereço histórico, a Estação testemunhou as escolhas feitas pela cidade e assistirá como o município pretende se comportar nos próximos anos.

A antiga Estação da Sorocabana foi um ícone da minha infância. Madruguei no sábado para embarcar no trem que partia às 7 horas em ponto rumo ao Litoral Sul e Vale do Ribeira. Era o início de uma viagem de cinco horas até Juquiá, com dezenas de paradas, muitas delas aos pés da Mata Atlântica.

Com o sucateamento do sistema ferroviário e a opção cristalizada por rodovias e milhares de caminhões, a Estação se reinventou e se tornou um exemplo de cidadania e de combate político, com senso crítico e pluralidade de opiniões. Estive lá inúmeras vezes, de espectador em lançamento de livro sobre o Porto de Santos a palestrante em debate sobre racismo.

O Fórum da Cidadania é morador ilustre da Estação há 12 anos. Mas pode ser despejado, vítima da retórica política. Na semana de aniversário, Pão de Açúcar – responsável pelo espaço -, Polícia Militar e Prefeitura de Santos começaram a empurrar um para o outro a responsabilidade sobre o futuro do Fórum e a nova função da Estação.

Na prática, o Fórum recebeu a notícia de que não poderia mais permanecer lá, assim como a Orquestra Pão de Açúcar, um exemplo de união entre cultura e formação de jovens. A Estação passaria a ser um cobertor de pobre, numa ciranda de ausência de tato político. A Estação passaria a abrigar um posto da PM, que seria desalojada do imóvel na avenida Francisco Glicério, no Campo Grande. O imóvel será demolido por causa das obras – símbolo de falta de planejamento – do VLT. 

O prédio atual foi construído em 1936
A saída do Fórum da Cidadania reforça o caminho que a cidade escolheu nos últimos anos. Santos carrega feridas psicossomáticas de uma cidade que sempre espera um futuro glamouroso. Do turismo de negócios ao maior porto da América Latina. Dos espigões-ostentação aos projetos mirabolantes, o município e seus gestores creem que as demandas sociais somem como mágica. O ilusionismo está gravado nos índices educacionais medianos, nos pronto-socorros lotados e carentes de médicos mal pagos, nos mil moradores de rua que viraram estatísticas.

Despejar o Fórum da Cidadania talvez engrosse a lista de sinais da cidade do futuro. Santos se vende como um lugar pronto para a farra da Copa do Mundo, com museus inacabados e estimativas especulativas de turistas, enquanto vira as costas para um espaço – ainda que tímido – que deveria se espalhar, e não encolher, como centro nervoso de reflexão sobre a vida urbana cada vez mais apertada e cara.

Na última semana, representantes de vários setores da sociedade civil protestaram contra o despejo do Fórum da Cidadania. Gritos e abraços pouco mudam, mas simbolizam a raiva e a frustração de um jogo que não pode parecer perdido, mesmo que os adversários sejam os donos da bola.

Ao contrário de teleféricos e túneis virtuais, a Estação da Cidadania – que um dia simbolizou o sistema de transporte público – é a testemunha real das escolhas que os políticos fazem. Mesmo que o Fórum da Cidadania engrosse a fileira dos sem-teto, a Estação é mais do que um ponto de embarque para o Samaritá, Itanhaém ou Juquiá, mais do que um posto de segurança patrimonial do Estado.

A Estação – Sorocabana ou da Cidadania – está cicatrizada em nós, como um termômetro da cidade que desejamos ser.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Os erros de Marina?


A política não perdoa erros. Na prática, perder representa desaparecer lentamente. Depender da caridade de alianças. Morrer aos poucos, com o cadáver exposto em velório a céu aberto. Erros estratégicos também assassinam aliados que, muitas vezes, pulam ao mar e se arriscam em botes. Um dano colateral em comparação à dor de testemunhar um naufrágio. 


Marina Silva dá sinais de que repetiu decisões equivocadas. Política eleitoral – e os próprios políticos – não são complacentes com a repetição de deslizes. Defender o casamento gay, em princípio, significa outro desvio de rota para quem poderia encabeçar uma chapa presidencial. Renasce a imagem de fogo amigo, em um momento que Eduardo Campos luta para ser conhecido, percorrendo a trilha do politicamente correto. Envolver-se em temas espinhosos não soa como saudável. Na verdade, é mais um capítulo de um processo que se iniciou em 2013.

O primeiro escorregão de Marina Silva foi a lentidão em decidir criar o próprio partido, o que daria mais liberdade a ela para conduzir o caminho da campanha. Juridicamente inexistente, a Rede Sustentabilidade é um fantasma em ano de eleição. Teoricamente, a composição com o PSB poderia nascer do mesmo jeito, mas com a diferença do respaldo institucional partidário – mesmo que banalizado. Um partido forte é capaz, ainda que as siglas estejam corroídas, de segurar aqueles peixinhos ornamentais que saltam de aquário em aquário.

Marina Silva era a mulher de 20 milhões de votos. A dama a ser cortejada em meados de 2013. Mas a fala mansa e a firmeza nas palavras não esconderam a sede de poder. Ao temer também o preço do ostracismo que engoliu Heloisa Helena, Marina assinou o pacto que lhe dá o segundo posto na hierarquia. Escolheu se filiar a um partido que sempre foi mais um a se sentar na roda gigante, multifacetado e com um candidato desconhecido.

O segundo erro – e talvez o mais grave – é se comportar como se fosse candidata. Nesta altura da corrida, vale mais a lealdade ao espírito de equipe do que as pesquisas, que apontam os reservas com melhor desempenho que os titulares, de Lula a José Serra.


Marina fala o que quer e pode provocar efeitos que talvez não deseje. O posicionamento contra o casamento gay é o caso. Por um lado, pode agradar eleitores da classe C, alvo preferencial da campanha de Eduardo Campos. Em compensação, parte do eleitorado de Marina é mais liberal e favorável à leitura social da senadora do Acre, embora releve a opção religiosa dela, o que constrói uma ilusão de discurso.

Se fosse candidata, Marina Silva arcaria com os próprios ferimentos. O sangramento, aliás, seria bem menor, pois estaria sob o controle daqueles que cercam a ex-senadora. É bom repetir: 20 milhões de votos também ajudariam na cicatrização.

Só que Marina, quando fechou o contrato, se submeteu automaticamente à construção de imagem de Eduardo Campos. Ele fica com os louros. Ele sente a dor do tiroteio. Ela deveria somente assistir, muito menos atrapalhar.

Com elevado nível de desconhecimento por parte do eleitorado, Campos precisa equacionar três problemas e ainda ter que lidar com o fogo amigo. Em primeiro lugar, ele precisa navegar em águas previsíveis. Polêmica dentro de casa, jamais. Não há tanto lastro assim para apagar incêndios contínuos.

Depois, o ex-governador de Pernambuco tem que dosar o morde-e-assopra com Aécio Neves. Cedo ou tarde, um matará o outro, mas antes é preciso se unir para trazer Dilma Rousseff a um patamar que permita segundo turno. O terceiro obstáculo é criar uma agenda consistente que consiga reverter a lógica de crédito e consumo, retórica agradável para a maioria dos eleitores das regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste.

Diante de tantas dificuldades, soma-se a falta de fôlego financeiro para sustentar campanha tão cara. Não dá para tapar tantos buracos e ainda ter que pedir para a candidata à vice-presidente falar menos, inclusive porque ela também possui a tendência de personalizar a política.
Se quiser se manter viva, a candidatura Eduardo Campos deve aprender uma das máximas do lulismo. A política não perdoa erros, mas releva blefes e coroa a astúcia. Lição que poderia amordaçar a língua da vice.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Só os loucos sabem


Em 3 de maio de 1989, profissionais de saúde da Prefeitura de Santos interditaram a “Casa dos Horrores”, como era conhecida a Casa de Saúde Anchieta, localizada atrás do Hospital Beneficência Portuguesa. O Anchieta era o principal manicômio do litoral de São Paulo e a interdição o transformou em um símbolo da luta antimanicomial.

Na última semana, dois eventos tentaram manter viva a batalha contra a permanência de hospitais psiquiátricos como depósitos de pessoas. Duas universidades, Unisantos e Unifesp, promoveram uma série de debates e palestras, além de uma manifestação no Centro, com o objetivo de se discutir o cenário atual das políticas públicas de saúde mental.

No Café Rolidei, nas dependências do Teatro Municipal, o projeto TamTam – nascido dentro dos corredores e salas da Casa de Saúde Anchieta também em 1989 – realizou a Semana do Cuidar. De filmes a oficinas, o projeto mantém a chama de quem se tornou exemplo de inclusão social por meio da arte, dentro ou fora das instituições de saúde mental.

A Semana de Luta Antimanicomial é mais do que um conjunto de encontros para se reivindicar o fechamento de hospitais psiquiátricos. Trata-se, no fundo, de iluminar um comportamento paradoxal que permeia a sociedade contemporânea.

Vivemos uma era das pílulas mágicas. Nunca se vendeu tanto, com tanta variedade nas farmácias, as balinhas da felicidade. Desde a década de 60, a indústria farmacêutica conseguiu aumentar a presença de remédios – controlados ou não – no cotidiano das pessoas.

A automedicação se tornou, em muitos endereços, sinal de status, inclusive de pertencimento cultural. O doping autorizado por bulas passou a representar uma maneira de estar dentro de grupos que se queixam da vida inumana exigida deles, mas que não a abandonam porque este estilo os fornece ganhos secundários, principalmente de ordem econômico-financeira.

Outro efeito nocivo da “cultura das pílulas da felicidade” é a patologização do comportamento humano. Termos como depressão, hiperatividade, bipolaridade, stress e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) viraram expressões corriqueiras.

Em certos círculos sociais, é possível testemunhar uma competição velada de quem se dopa mais ou de quem percorreu mais etapas do circuito das pílulas mágicas. Conheci pessoas que falavam de síndromes, transtornos e doenças como se colecionassem figurinhas da Copa do Mundo ou com orgulho de suas aventuras químicas.

O paradoxo reside na ideia de que o glamour das patologias de ordem mental contradiz com a perpetuação do preconceito contra a “loucura”. Na semana passada, o jogador Neymar disse – em uma entrevista – que a seleção brasileira não precisava de psicólogo porque não havia “doidos” no time.

Mais do que outra besteira nas palavras do atacante, é a reprodução da visão vigente de que a psicologia e a loucura são assuntos a serem evitados ou negados. Em outras palavras, temas apenas de ordem privada. Os loucos, a gente esconde. Fazer terapia, para muitos, é sinônimo de eletrochoque e surto.

Enquanto aumentamos a prateleira de medicamentos, realimentamos o preconceito contra os “loucos”. Ainda prevalece o trauma das internações, como forma de tirar os desviantes do olhar de todos. Os loucos também são encarados como incapazes – e pior – como seres inferiores numa escala cruel de (falta de) humanidade.

Neste sentido, pouco vale em termos eleitorais investir em políticas consistentes e duradouras de saúde mental. Em todos os níveis, os investimentos são baixos, no final da fila das secretarias de saúde. Para muitos políticos, loucos não rendem votos, inclusive porque parte deles podem se misturar na multidão das salas de espera.

A ironia é que a loucura jamais se relaciona com conta bancária. A saúde mental (ou ausência dela) funciona de maneira horizontal. Pirâmide social ou status são palavras inócuas, sem significado. E a lógica da loucura costuma ser outra, ainda que muitos carreguem e cultivem uma rotina de impressionar qualquer psiquiatra.

No paradoxo da medicalização, o problema, para os pobres, é a espera nas unidades de saúde. Para a classe média e os mais ricos, é a espera na fila do caixa das farmácias. Só que, no milagre da multiplicação de pílulas e patologias, os remédios (e seus efeitos) são os mesmos.

Em tempo: o título desta coluna é o nome de uma música da banda Charlie Brown Jr. Acredito que Chorão e Champignon, além dos outros integrantes, não se oporiam a este “empréstimo”, inclusive porque a temática interessaria a eles.