terça-feira, 13 de maio de 2014

Fofoqueiros e selvagens


A fofoca mata. Os educados falam em boatos, para reduzir o peso da palavra. A fofoca simboliza – popularmente – a leviandade e a irresponsabilidade nas relações entre as pessoas.

A fofoca assassina reputações, mancha biografias, corrói a credibilidade por meio de ataques psicológicos de quem passou longe do caráter. A fofoca, irmã gêmea da maledicência, se reproduz pela intolerância.

Fabiana Maria de Jesus
A dona-de-casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, não foi linchada pela fofoca. Ela foi espancada no dia 3 de maio, em Morrinhos, no Guarujá, por selvagens. Morreu na terça-feira, dia 6. A fofoca não empunhou os paus ou usou os braços e pernas que viraram armas. Mas a fofoca deu o motivo para o crime, o que a torna cúmplice de homicídio.

A morte de Fabiane tem que nos apontar caminhos para compreender a responsabilidade de viver em sociedade, no mundo real e no mundo virtual. O assassinato desta dona-de-casa nos mostra o quanto se devem rever certezas superficiais, que parecem proteger pessoas atrás de seus computadores ou de seus vizinhos sedentos de sangue alheio.

Fabiane morreu para nos alertar sobre as falsas concepções de civilização. Fingimos ter adormecido nossa bestialidade. Os palcos virtual e real expuseram o descontentamento social com a violência, mas – paradoxalmente – também iluminaram a forma selvagem de protesto.

Parcelas da sociedade usam a decepção com as políticas de segurança pública para invocar a lei do Talião. O olho por olho, dente por dente, que alimenta ativistas de sofás confortáveis, conduz sujeitos ditos normais a extravasar a animalidade mais cruel.

Confusos, estes selvagens acrescentam a expressão “com as próprias mãos” ao termo Justiça. A política do “bandido bom é bandido morto” existe porque também encontra respaldo nas instituições que deveriam nos proteger e em engravatados com mandato que deveriam pensar coletivamente.

A ironia é que aqueles que pedem justiça rápida via linchamento se calaram quando viram que os “justiceiros-assassinos” erraram a mão e o alvo. E agora? Pedir justiceiros para os justiceiros? Ou, cinicamente, falar que “erros acontecem”, como eu li no Facebook?

A morte de Fabiane Maria de Jesus também nos permite pensar sobre o que fazem os jornalistas (e os pseudo-repórteres). A postura de uma página como Guarujá Alerta despertou o espírito de corpo em muita gente da imprensa. A principal defesa, ainda que simplista, foi apontar a lanterna sobre os responsáveis pela página e dizer: “não são jornalistas.” 

O retrato falado do mau Jornalismo

Não são jornalistas porque não possuem diploma? Ou não o são porque desrespeitaram princípios elementares da profissão, como pesquisa, apuração, checagem, entrevista? Sensibilidade e responsabilidade não estão escritas em canudos acadêmicos, e sim tatuadas naqueles que escrevem de olho no outro e cientes de que palavras têm consequências, seja no The NY Times, seja em qualquer postagem de uma rede social.

Agarrar-se ao diploma só reforça o quanto os jornalistas se tornaram frágeis diante das mudanças sociais a partir dos meios de comunicação e as novas tecnologias. Em vez de subir no pedestal da arrogância que exime de responsabilidades, é a hora de rever práticas não tão profissionais que se tornaram cotidianas.

Muitos jornalistas estão habituados a reproduzir conteúdos a partir de páginas como Guarujá Alerta, que – em tese – serviriam como referência para insatisfações da população. Visitar tais páginas e, a partir delas, procurar pessoas e estabelecer contextos é um comportamento responsável.

Outra postura é simplesmente apertar quatro teclas no computador (Ctrl C e Ctrl V) e achar que se fez Jornalismo. Muitos colegas de profissão se queixam de que suas matérias são plagiadas. A reprodução criminosa é recorrente em parte do Jornalismo atual, pouco importa o tamanho e o alcance dos veículos.

A mídia matou Fabiane? Certamente não. Os agressores são justiceiros? Não, são homicidas. Independentemente de quem desceu o porrete ou gritou “mata e esfola”, todos devem desculpas à Fabiane. O resto é torcer pela Justiça dos homens que ainda podem ser chamados de civilizados.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Sou mulher, vivo com medo


O texto abaixo foi escrito pela designer Kitty Yoshioka. É um depoimento que simboliza a vida de muitas mulheres, que sofrem violência nos mais variados níveis. O blog publica o texto com autorização da autora. Não se pode ficar em silêncio!

Kitty Yoshioka

Quando eu tinha 8 ou 9 anos, estava brincando a noitinha na rua com uma amiga, em frente ao prédio em que morávamos. Do nada, apareceu um motoqueiro do outro lado da rua. Ele ficou parado, de frente pra gente. O que ele fez? Mostrou o pau. 


Lembro que, como duas crianças, ficamos mais desesperadas do que com nojo ou algo assim. Corremos para entrar no prédio. Isso aconteceu comigo outra vez também, quando eu estava sozinha. Motoqueiro, pau pra fora, desespero.

Um pouco mais tarde, quando eu devia ter por volta de 13 ou 14 anos, estava voltando da escola para casa. Um cara passou por mim na calçada, andando rápido e apertou o pouco que eu tinha de peito na época. Assim, do nada. Passou, apertou e continuou andando. Eu me lembro de sentir um misto de medo e nojo. Lembro que meu peito ficou dolorido porque o filho da puta apertou com força. Voltei pra casa correndo, desesperada, claro.

Numa outra ocasião (nesse ano mesmo, 2014), fui renovar o contrato de aluguel com o Aloysio no cartório aqui perto de casa, andei com ele até o cartório. Resolvemos as burocracias etc. Ele iria para o trabalho, eu voltaria para casa. Fiz exatamente o mesmo trajeto que fiz quando estava com ele. São 362 metros, do cartório até a minha casa (segundo o maps) e nesse trajeto curtíssimo, quando estava sozinha ouvi cantadas, assobios e mais cantadas. Simplesmente por eu não estar acompanhada por um homem. Como se eu precisasse de um guarda-costas ou um dono para me acompanhar; caso contrário, eu serei alvo de assédios, estarei vulnerável, “pedindo para ser atacada” ou qualquer coisa babaca desse tipo.

Todos os dias da minha vida eu me olho no espelho e (além de ter que me achar bonita, mesmo com esses padrões escrotos de beleza que as pessoas impõem hoje em dia) penso, com medo: “Será que essa roupa tá muito chamativa? Será que vão me comer com os olhos, me julgar? Será que vão mexer comigo? E se mexerem? Acho que eu respondo...Mas se eu responder, será que vão vir atrás de mim? Será que vão tentar fazer alguma coisa comigo?” 


Outro dia, semana passada, deixei de sair para jantar com o Aloysio porque estava de noite e eu teria que andar sozinha e arrumada de casa até o metrô para encontrar com ele em outro lugar. Sabia que eu sentiria medo de sair na rua, sabia que sempre teria um babaca na rua para mexer comigo e já fiquei exausta por antecipação.

Rapazes, vocês já pensaram em como vivem suas esposas, namoradas, irmãs, amigas e mães? Já perguntaram pra elas se já passaram por algo desse tipo? Alguma agressão ou assédio? Quantas cantadas elas ouvem quando andam sozinha, olhares, quantos caras já tentaram agarrá-las na balada? Pela mão, pelo pescoço, pela cintura. Quando ela estava apenas tentando se divertir com algumas amigas ou tentando chegar até o banheiro? Como elas se sentem com tudo isso? Como elas lidam com tudo isso?

Acho que nunca contei todas essas histórias para ninguém (mãe, desculpa se eu não tinha te contado quando eu era pequena, devo ter ficado com medo ou vergonha, sei lá) e acho que estou falando tudo isso aqui porque estou cansada. Cansada de criar paranoias com qualquer sombra que eu vejo atrás de mim na rua, cansada de não ter liberdade pra me vestir como eu quero, quando eu quero. Ir aonde eu quero. Tudo simplesmente por eu ter nascido mulher.

Viver com medo por causa do seu gênero é horrível e cansativo. E eu não desejo isso nem para o homem mais nojento do mundo. Gostaria apenas que eu e todas as outras mulheres pudéssemos andar nas ruas livremente, sem medo de invasões. Sem ter que nos preocuparmos em correr riscos apenas porque somos mulheres. Viver sendo mulher hoje em dia é viver cheia de medos. E ninguém merece isso.


Esse texto é um desabafo, transbordei sem a necessidade de uma “gota d'agua” pra fazer isso. Mas vou dedicá-lo à todas as mulheres que o lerem. Minhas amigas e azinimigas também, por quê não? Por toda a força que a gente precisa ter pra enfrentar sacanagem, escrotisse, julgamentos e violências. E espero que, mesmo que aos poucos, a gente consiga mudar como as coisas funcionam no mundo.

Entre bananas e macacos


A história de racismo em torno da refeição feita pelo jogador Daniel Alves nos indica como brasileiros são hipócritas quando confrontados com o próprio espelho. Casos de discriminação racial no futebol são muito mais comuns do que costumam pregar convencionais fotos em redes sociais.

O racismo está impregnado na biografia do futebol nacional. Dos negros proibidos de vestir as camisas de vários clubes cariocas até o clube de Santos que barrou a entrada de Pelé quando era desconhecido. De juízes humilhados no Rio Grande do Sul a atletas xingados por torcidas e jogadores adversários em torneios continentais.

Bananas não são armamentos novos. Essas bombas de efeito moral foram utilizadas contra brasileiros na Polônia e na Rússia. Tiros simbólicos de intolerância contra desconhecidos e contra estrelas como Roberto Carlos. A reação de Daniel Alves, espontânea, irônica e necessária, recolocou o assunto em questão. Mas ao preço de uma moralidade embananada?

Neymar provou mais uma vez ter o perfil do jogador atual. Mimado, cercado de bajuladores, vendedor de quinquilharias, covarde em falar o que pensa. Mas, desta vez, a orientação ultrapassou a fronteira da estupidez. Racismo é uma cicatriz cultural e histórica para ser tratada como campanha de marketing. 


Como um jogador da importância de Neymar aceita transformar uma violência cotidiana – vista em todo o planeta – em foto para vender a si mesmo? Nada surpreendente para quem choraminga diante da CNN quando critica a diretoria do Santos, em quem aplicou – com cumplicidade ou não – um chapéu financeiro, fora a história fiscal nebulosa.

Por que resolvemos afirmar só agora nossa macaquice? Por que sempre relegamos ao pé de página os episódios quase diários de racismo? O cinismo de mostrar bananas mostra o quanto adoramos comê-las de sobremesa, após engolir sapos como prato principal.

Não somos todos macacos. A campanha, nascida da mediocridade publicitária, expõe o nível de ignorância em torno do racismo no país. Salvo os inocentes, a turma que adora se dizer primata é a mesma que renega práticas racistas. A discriminação sempre pertence aos outros.

A ignorância também resume a violência numa campanha rasteira de tirar fotos de adesão ao vácuo de informação. Vendemos camisetas, cultivamos amigos de rede social, vomitamos indignação até a página 2. Mas não reconhecemos os cadáveres de desigualdade social. Enquanto exalamos rebeldia de shopping, não enxergamos o quanto chamar alguém de macaco significa estigmatizar negros como animais.



A premissa é falsa. Não somos todos iguais. Somos uma nação culturalmente complexa, de múltiplas diferenças. Seríamos mais civilizados e maduros se entendêssemos e respeitássemos as diferenças do que amenizar culpas com o falso discurso da igualdade. E ainda por cima fingirmos cidadania sendo enganados como consumidores bananas.

É triste testemunhar que a crueldade humana, como jogar bananas em uma pessoa por conta da cor da pele e da origem, seja substituída pelo tom carnavalesco de esvaziar – em imagens padronizadas – uma chaga social que contamina o Brasil desde o nascimento colonial.

Somos realmente todos macacos, numa sociedade dividida em gorilas, micos, chimpanzés e orangotangos? De fato, cedo ou tarde, todos comem bananas.

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Em tempo: o racismo virou rotina de tal maneira que dois novos casos brotaram no noticiário esta semana. O primeiro episódio envolveu Donald Sterling, proprietário do time de basquete norte-americano Los Angeles Clippers. O dirigente foi banido da NBA depois de ter feitos comentários racistas com a namorada V. Stiviano.


Donald Sterling 
Uma gravação explica tudo: “me incomoda muito você querer aparecer ao lado de pessoas negras. Por que você faz isso? Você pode dormir com negros, pode trazê-los, pode fazer o que quiser. A única coisa que peço a você é que não divulgue isso. E não os traga aos meus jogos”, declarou Sterling.

Além de banido, ele terá que pagar multa de US$ 2,5 milhões. Se o futebol também fosse assim ...

Dos Estados Unidos para o litoral de São Paulo. Em Bertioga, a vereadora Valéria Bento (PMDB) acusa um servidor público de tê-la chamado de macaca. O acusado é chefe de departamento na Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho e Renda.

A vereadora prestou queixa em delegacia. Segundo a parlamentar, o servidor teria dito: “o serviço está uma bagunça, e a culpa é da Valéria, aquela macacona.” A vereadora pediu também a abertura de inquérito administrativo contra o servidor.

O acusado se defendeu em redes sociais. A alegação é de que ele também seria negro. “(...) todo mundo sabe que amo os animais e jamais compararia um macaco com essa vereadora. Animal não merece ser comparado assim. (...) Eu e minha família já sofremos muito com este tipo de preconceito por sermos negros, mas nunca deixamos nos abalar.”

Pela defesa, um vereador seria pior do que um macaco? Outro ponto: houve protestos na Câmara Municipal, com presença das bananas, a fruta-rei da semana.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A tortura nunca acabou


A morte do tenente-coronel da reserva Paulo Malhães reacendeu o medo em torno dos cadáveres – reais ou simbólicos - que cercam a ditadura militar. O tenente-coronel foi encontrado morto em casa, na zona rural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Malhães foi morto por asfixia. Três homens invadiram a residência dele na sexta-feira, dia 25 de abril. A mulher foi amarrada, enquanto o tenente-coronel era executado. Todas as armas da casa foram roubadas. Os primeiros dados da investigação falam em queima de arquivo.

O tenente-coronel deu um depoimento forte há cerca de um mês na Comissão da Verdade. Paulo Malhães foi agente do Centro de Informações do Exército na ditadura militar. No depoimento, ele reconheceu tortura, mortes e ocultação de cadáveres durante o período. Uma frase dele: “Naquela época, não existia DNA. Quando você vai se desfazer de um corpo, quais partes podem determinar qual é a pessoa? Arcada dentária e digitais. Quebrava os dentes. As mãos cortava daqui para cima (apontando para as falanges)”.

A morte do tenente-coronel levanta suspeita de que ele poderia entregar mais gente da turma verde-oliva. No entanto, o que me chama a atenção é que torturas e mortes por parte de agentes do Estado são vistas como episódios de uma história cada vez mais distante.

A tortura nunca acabou, mesmo com a passagem para a democracia. Apenas mudou a cor do uniforme e a função dos torturadores. E a conivência de uma parte da sociedade permanece, seja pelo silêncio, seja pela construção de argumentos simplórios e individualistas.

A frase feita “bandido bom é bandido morto” é um dos primeiros argumentos que surgem quando se debate tortura no Brasil. Além de embutir a ideia de que todas as vítimas de tortura são culpadas, a proposta vem acompanhada de um segundo elemento frágil. “Quero ver se for com você ou com algum parente seu?”

A recíproca poderia ser verdadeira. E se fosse você o confundido pela polícia ou um parente seu fosse torturado? O que diria? Na verdade, tortura e mortes devem ser responsabilizadas, e não enaltecidas como efeitos colaterais ou como inerentes ao processo de segurança pública. A solução passa, necessariamente, pelo pensamento coletivo e reforço das instituições, que devem expurgar suas laranjas podres, e não promovê-las.

Torturas e mortes somente foram transferidas dos quartéis para viaturas e delegacias. A prática aparece diariamente no noticiário, que empilha casos de pessoas conhecidas ou de casos eleitos. São histórias que, dependendo dos elementos dramatúrgicos, podem gerar surtos de indignação e bodes expiatórios para responder a processos administrativos. Os remédios são pontuais para causas sistêmicas.

Há mais de 20 anos, o jornalista Caco Barcellos denunciou no livro “Rota 66”, o comportamento de policiais que matam em quantidade que deixaram corados de vergonha assassinos em série endeusados pela cultura pop norte-americana. Nós também temos nossos deuses. Muitos destes policiais mantém mandatos políticos até hoje, com o mesmo discurso de “bandido bom é bandido morto.”

O livro, que levou Barcellos a morar na Europa por dois anos por conta das ameaças de morte, indicava que boa parte das vítimas da Rota, em São Paulo, eram negros, com carteira assinada, sem antecedentes criminais e moradores de periferia. Foram mortos com tiros nas costas ou na cabeça; neste caso, o tiro veio de cima para baixo, o que dava contornos de execução.

Os autos de resistência – nome burocrático para execuções – representam um dos sintomas da descrença no sistema de segurança. É uma doença paradoxal. Ao mesmo tempo em que se defende a limpeza social de “bandidos”, a população não confia nos policiais – até porque sabe do que são capazes com a aprovação dela – e sustenta a justiça com as próprias mãos. A “moda” de se amarrar pessoas em postes – culpados ou não – é reflexo cristalino disso.

Mesmo que se fechem as cortinas ou que as luzes sejam apagadas, os esqueletos ainda permanecem sentados na mesa de jantar. A história não virou poeira. Ela está ao lado, viva nas mesmas práticas de uma cultura que mente quando diz ser pacifista.

terça-feira, 22 de abril de 2014

O lixo e os cachorros


Moradores da rua Piauí, no Campo Grande, em Santos, reduziram o risco de pisar em surpresas na calçada. Em um dos postes, instalaram um aro de metal que prende diversos sacos plásticos. Assim, nenhum dono de cachorro pode alegar amnésia e deixar de limpar as fezes de seu animal.

A quatro quilômetros dali, na rua Ricardo Pinto, na Aparecida, um morador colocou uma placa numa árvore. A placa pede que os donos de cachorros se lembrem que são civilizados e não emporcalhem a calçada. 

Suporte instalado no bairro da Aparecida, em Santos

As duas ações se juntam a outras pelas ruas de Santos e simbolizam como comportamentos podem ser alterados sem a necessidade ou “medo” de uma legislação, e sim por pressão, organização social e comportamento cidadão.

No caso, há uma lei que aborda o recolhimento de fezes por parte dos donos de animais de estimação. Mas ninguém nunca foi multado. A lei existe desde 1995 e, obviamente, a Prefeitura não destinou fiscais para multar os porcos (não me refiro aos cachorros, coitados). Até porque não tem pessoal para atender a todas as demandas jurídicas que brotam no plenário do Poder Legislativo.

Uma segunda lei sobre o assunto foi aprovada, em 2001, e revogou a multa como obrigação legal. Ou seja: para que uma lei que não prevê punição aos infratores?

Nesta semana, Santos passou por uma situação semelhante. O prefeito Paulo Alexandre Barbosa sancionou a lei que prevê multa para quem joga lixo na rua. A multa pode chegar a R$ 1 mil, dependendo da quantidade de lixo despejada de forma irregular.

A lei, de autoria do vereador Kenny Mendes (DEM), altera outra lei, de 1968, que tratava do mesmo assunto. Agora, a infração envolve de bitucas de cigarro, cascas de frutas, latas, garrafas até quantidades maiores e objetos como sofás, armários e outros móveis. O prazo para regulamentação é de 60 dias. Só em junho a administração municipal vai definir a fiscalização.

Por melhores que sejam as intenções, os dois episódios acima indicam como funciona a cultura das leis no Brasil. Tanto políticos como a sociedade em geral costumam acreditar que os problemas sociais devem ser resolvidos na base da legislação, vinda de cima para baixo, sem discussões públicas.



Temos leis demais. Muitas são ultrapassadas, em outro contexto histórico. O Código de Posturas de Santos, por exemplo, é de 1968. Muitos dos artigos parecem peças de humor, tamanha a distância da realidade atual.

O excesso de leis também significa a superficialidade no tratamento de questões públicas. É mais cômodo – e gera dividendos políticos – entupir o plenário de leis do que cobrar políticas públicas ou exigir melhorias nos serviços já implantados. Aprova-se a lei e a deixa morrer no esquecimento.

Em muitas situações, parlamentares ainda jogam para a torcida e para a imprensa, diante de assuntos polêmicos. É comum vereadores apresentarem projetos de lei com a consciência de que serão vetados ou modificados na Comissão de Justiça, que analisa a viabilidade jurídica da proposta.

Muitos projetos, mesmo diante das negativas, chegam ao plenário e são votados, o que obriga um malabarismo do Poder Executivo para que a lei seja assinada. Um caso recente foi a lei que proíbe o uso de celulares em salas de aula da rede de ensino de Santos. Alguém foi punido? Houve fiscalização? Claro que não, até porque o problema envolve bom senso e educação dos envolvidos.

A consequência cultural da paranoia jurídica é a expressão “leis que pegam e leis que não pegam”. Na prática, são palavras que provam como sabotamos aquilo que defendemos. Somos cúmplices, em certo sentido, com a impunidade. Lei, deste modo, é boa para os outros. Para nós, sempre existem brechas, liminares, além da própria conivência e incompetência dos poderes.

Parlamentares se aproveitam da cultura das leis também para uso político. Um exemplo é a Câmara do Guarujá, que aprovou lei – e derrubou veto da prefeita Maria Antonieta – que obriga funcionários de primeiro escalão a morar na cidade. Geografia virou competência profissional. O objetivo era atingir um secretário, que pediu demissão. A história virou batalha judicial.

A Câmara de Santos, ainda que alguns vereadores sejam obcecados por legislação, deu um passo positivo. A casa abriu edital de licitação para catalogar a legislação existente no Município. Estima-se que existam 8500 leis diferentes. A promessa é que, depois do levantamento, ocorra uma análise para eliminar leis conflitantes e obsoletas.

Legislar deveria ser um ato horizontal. Os moradores do Campo Grande e da Aparecida se juntaram – sem se conhecer - aos moradores de um prédio na esquina das ruas Vergueiro Steidel e Castro Alves, no Embaré, numa lição cidadã.

Em cinco árvores, foram amarrados pequenos cestos plásticos de lixo. A sujeira ali acabou. Ações valem muito mais do que letra morta.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Os machos vestem saias

Sempre desconfiei da pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) sobre Tolerância social à violência contra as mulheres. Mas, embora sofra críticas por conta da metodologia, a pesquisa nunca me pareceu distante da realidade. Também não pensei que os equívocos na leitura dos dados merecessem tamanha ânsia de desqualificação do trabalho.

As polêmicas dos tempos atuais, na verdade, servem para atrair minha atenção aos detalhes. Os pormenores nos apontam em quais armários moram nossos esqueletos. O que me interessa é o recheio, e não a cereja do bolo.

Na pesquisa, o recheio azedou. O trabalho do Ipea não nos mostra somente o óbvio, que a sociedade brasileira é machista, mas – essencialmente – nos indica a dimensão do machismo no imaginário das mulheres. Justamente elas, que deveriam se proteger da violência simbólica do macho.

As mulheres são dois terços dos 3810 entrevistados. É desproporcional em relação à população brasileira, um erro técnico. Só que os resultados apavoraram quem reflete sobre as desigualdades e os preconceitos de gênero neste país.

As mulheres, em sua maioria, ainda sonham com a família de publicidade de margarina. 87,8% concordam (total ou parcialmente) com a afirmação: “toda mulher sonha em se casar.” Seis em cada dez acreditam que “uma mulher só se sente realizada quando tem filhos”. Neste pacote, entra figura do macho alfa, o macho provedor. Para 63,8% dos entrevistados, “os homens devem ser a cabeça do lar.”

Quando a pesquisa passeia pela sexualidade, fica evidente a presença da relação Casa Grande e Senzala. 55% concordam que “tem mulher que é para casar, tem mulher que é para a cama.” Entre a sinhazinha e a escrava dos tempos modernos, muitas mulheres – conheço várias – se sentiriam ofendidas, inclusive quando rejeitadas porque eram “para casar” e desejavam apenas um relacionamento rápido. 


Neste sentido, percebe-se também o caminho da submissão. Um em cada quatro entrevistados aceita que “a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tenha vontade.” Isso me lembra o coronel Jesuino, personagem de José Wilker na novela Gabriela, que dizia para a esposa: “deite que vou lhe usar”. 

É claro que há ainda a violência sexual. É o ângulo que chamou a atenção da mídia e onde estava localizado o maior erro de avaliação. Mas o escorregão não apaga as manchas sociais. Uma em cada quatro pessoas concorda que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.”

Na Baixada Santista, uma mulher é estuprada por dia. Alguém, com o mínimo de senso de humanidade, acredita na hipótese de que as vítimas desejaram ser violentadas? Três em cada quatro agressores são familiares ou pessoas próximas.

Quem sabe poderíamos aprender com um exemplo extremo? Na Arábia Saudita, nove em cada dez homens acreditam que maquiagem significa que a mulher deseja ser violentada.

Com erro ou não, a pesquisa nos dá o recado: Mulheres, libertai-vos. É melancólico perceber que muitas das vítimas da submissão e da opressão masculina são exatamente aquelas que assinam embaixo na cartilha do macho.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Liberdade para quem?


Nomes de políticos cassados em placa na Câmara
Municipal de Santos (Foto: G1 Santos)

A Câmara de Santos assinou, em 1º de abril, um capítulo histórico. O Poder Legislativo, em parceira com a Comissão da Verdade do município, conduziu a devolução dos mandatos de 16 ex-vereadores e dos ex-prefeitos José Gomes, cassado em 1964, e Esmeraldo Tarquínio, cassado e que não pôde assumir o cargo em 1966. Dos 18 políticos, somente o ex-vereador Luiz Rodrigues Corvo, hoje advogado em São Paulo, está vivo e discursou em plenário.

O ato simbólico serve como mais uma lição de que a ditadura militar de 21 anos – e não uma década, como alguns intelectuais desejam amenizar – deve ser lembrada. Este período histórico merece e exige reflexão, mas jamais comemoração como paradigma de cidadania.

O ato da Câmara de Santos não foi isolado. Em Natal, no Rio Grande do Norte, o Legislativo local restituiu os mandatos do ex-prefeito Djalma Maranhão e do vice Luis Gonzaga dos Santos, também cassados durante o regime militar. 



O processo de reparação teve início em 2012, quando a Câmara dos Deputados, em Brasília, realizou uma cerimônia de devolução dos mandatos de 173 parlamentares. Entre eles, os ex-governadores Leonel Brizola e Mário Covas, além de Plinio de Arruda Sampaio, candidato à presidente pelo PSOL em 2010, e do advogado Gastone Righi, liderança política de Santos.

Em agosto de 2013, 14 parlamentares comunistas também tiveram seus mandatos restituídos na Câmara Federal. Na lista, o escritor Jorge Amado e Carlos Mariguela. Todos haviam sido cassados em 1948, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra.

A devolução dos mandatos não precisa produzir efeito prático, e sim manter acesa a necessidade de se desnudar o que a censura insistiu em esconder por duas décadas. Pensar o regime militar é um ato de educação política, tão frágil neste país quanto à relevância do debate público, que muitas vezes resulta em exercícios de intolerância, tão comuns em tempos de velocidade, construção e difusão de informações.

A Universidade Católica de Santos, por exemplo, abriu as portas para relembrar e gerar a troca de experiências entre aqueles que viveram a ditadura ou a estudaram a fundo. Com auditórios lotados, houve três exibições do documentário “O dia que durou 21 anos”, dirigido por Camilo Tavares e lançado em 2013. Camilo é filho do jornalista Flavio Tavares, um dos 15 presos políticos banidos do país por envolvimento no sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick.

Um exemplo negativo foi a manifestação dentro de uma sala de aula, na Universidade de São Paulo, quando um professor foi impedido de defender a ditadura militar. Alunos invadiram a sala em, encapuzados, impediram o professor de ter a palavra.

É claro que defender a ditadura militar, diante de tanta informação sobre o período, soa como uma opinião deslocada, desinformada e – por que não? – patética. Mas o processo democrático só sobrevive com a pluralidade de pontos de vista e a liberdade de simplesmente ser indiferente a eles. E ver um sujeito em cima do banquinho na praça, pregando ao vento, é mais melancólico. É a voz que grita em silêncio, que nasce morta pelo ridículo. 




Calar alguém na marra porque ele pensa diferente, ainda que defenda um modelo indefensável, significa se tornar irmão gêmeo dele. Calar os diferentes é o que a ditadura militar fez por 21 anos. 

Dar a palavra aos defensores do regime é permitir que eles tenham a chance, num clima de liberdade, de ouvir seus erros e suas bravatas ao som das próprias vozes. É assim, das Câmaras às salas de aula, que talvez se aprenda o valor da liberdade e da democracia.