sexta-feira, 21 de junho de 2013

Os cínicos e os violentos


Os protestos contra o aumento nas tarifas de ônibus, em várias capitais brasileiras, são sintomáticos. Servem, acima de tudo, para delinear qual o papel e o limite de cada personagem envolvido no episódio. E reforçam nossa incapacidade de lidar com o processo democrático, quando ressuscitam – via saudade – comportamentos que deveriam estar presentes nos livros sobre a ditadura militar. 

Assim como as greves, manifestações públicas são direito dos cidadãos. Ninguém deve fazer apologia à violência, mas não me parece ser o caso a discutir neste espaço. Os atos violentos escondem, na verdade, as posições de quem adoraria ver o estado de coisas em posição de repouso, adormecido, destinando e assegurando privilégios a quem se considera um degrau acima.

Demorou mais de dois anos, mas assistimos à prova viva e contundente de que a Internet pode colocar na vitrine questões públicas que diversas instituições – inclusive parte da mídia – se esforçaram para calar. O bolso teve que sentir a dor para que muitos se mobilizassem. Embora seja apenas o gatilho, vinte centavos pesam bastante no orçamento de quem conta as moedas para a próxima refeição.

Enquanto os debates virtuais passeavam por assuntos falsamente distantes, como corrupção e meio ambiente, foi possível testemunhar o predomínio dos ativistas de sofá, que prometem aderir a todas as causas, mas não se comprometem sequer a gritar pela janela da sala.

O aumento das passagens de ônibus bateu na porta de muita gente, com ou sem poder de decisão. Os protestos esgarçaram os limites entre a tolerância e a passividade diante de um serviço ruim, nada fiscalizado e caro demais. É preciso reclamar contra um serviço que deveria apresentar o mínimo de qualidade diante de impostos elevados; aliás, cobrados com pontualidade.

O transporte público é mais um elemento de desrespeito às pessoas, que se espremem como gado em coletivos velhos, sacolejantes, conduzidos por motoristas exaustos em jornadas semiescravas.

Os protestos tinham a função de colocar na mesa uma agenda pública em torno dos sistemas de transporte coletivo. Nesta semana, se depender de boa parte da imprensa, perderemos mais uma oportunidade.

Assisti a horas de noticiário, li mais de 20 reportagens em jornais e vejo o quanto os jornalistas podem ser cínicos. Enquanto fingiam ser somente testemunhas, os jornalistas usavam sua muleta da sorte: os rótulos. Os manifestantes eram apenas vândalos que não mereciam voz. Os policiais vestiam a armadura da contenção dos rebeldes sem causa.

É triste ver como os cínicos enterram o próprio passado quando engordam de vaidade. Quando os jornalistas se assumiram personagens pelas bombas da polícia, o espírito de corpo gritou nas redações. Os manifestantes ganharam uma causa. Os policiais viraram truculentos mal preparados. Os políticos correram para dizer que o teatro das investigações estava em cena.

Em ambos os cenários, imprensa e governo – deste não se espera tal atitude - não pensaram em discutir a situação do transporte coletivo. Em São Paulo, o Governo do Estado apenas confirmou o reajuste, com a coerência de sempre na área do transporte. Os pedágios que o digam!

A lição, por vezes, costuma aparecer no passado e merece adaptação ao presente. Nos anos 50, no sul dos Estados Unidos, os negros eram maioria nos ônibus. Eram humilhados por conta da segregação racial. A situação só melhorou quando, a partir de uma mulher chamada Rosa Parks, os negros se recusaram a tomar ônibus. Preferiam andar a pé.

Após 381 dias, as empresas de ônibus cederam, diante dos prejuízos financeiros. É claro que o contexto é outro, mas quando se fala em humilhação diária, talvez seja a hora de pensar numa forma de cobrar por um serviço melhor, recusando-se a comprá-lo ou mexendo nos bolsos das companhias.

Obs.: Texto publicado originalmente nos sites Boqnews e Jornalirismo.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

À procura da rima perfeita

Nos gritos populares, o olhar de um país em poesia, seja serena ou marcada pela dureza.

"Que coincidência: não tem polícia, não tem violência"

"Ih, fodeu! O povo apareceu"

"Ei, perua, saiu do shopping e vem pra rua" (neste caso, em frente ao Shopping Iguatemi, em São Paulo, onde um grupo de mulheres organizava um protesto em recinto fechado, autointitulado de 'manifestação prime')

"Abaixa a tarifa! Põe na conta da Fifa!"

Ô, motorista, ô, cobrador, me diz aí se seu salário aumentou"

"Olha, que legal, Brasil parou e nem é Carnaval" (no mesmo shopping Iguatemi)

Em São Paulo, agora entre os cartazes, o lirismo de quem causou, ainda que simbolicamente, o recuo de muitos engravatados com mandato: "Se vocês não nos deixam sonhar, nós não deixamos vocês dormir."

E, como cartaz de exceção poética, quatro palavras que, sem rima, expõem a crueza do momento: "Copa é o caralho". Nada como ser direto com os cínicos.

 




terça-feira, 18 de junho de 2013

12 frases que explicam um país


“Não é a Turquia, não é a Grécia, é o Brasil saindo da inércia.” (Rio de Janeiro)

“Ei, Neymar, a Copa é pra roubar.” (Fortaleza)

“Mãos ao alto, a passagem é um assalto.” (Rio de Janeiro)

“Não vim brincar, vim protestar.” (São Paulo)

“Da Copa abrimos mão, queremos dinheiro para saúde e educação.” (Brasília)

“Ora, ora, ora, cadê a Dilma agora.” (Brasília)

“Não adianta olhar para o céu e pouco lutar.” (Guarujá)

“O Brasil está acordando. Não é por causa de R$ 0,20.” (Santos)

“O povo unido não precisa de partido.” (São Paulo)

“Brasil, vamos acordar, o professor vale mais do que o Neymar.” (Brasília)

“Essa briga é de quem pode (políticos) com quem não pode (manifestantes) ...” (São Paulo)

“O Congresso é nosso!” (Brasília)

Precisa dizer mais?

sábado, 15 de junho de 2013

Os baderneiros chegaram?


“O povo não sabe o poder que tem”. A estudante de Arquitetura comentava sobre o protesto contra o aumento no preço das passagens de ônibus com outro universitário, de História. Os dois dividiam o mesmo banco e acabaram de se conhecer. Eles dialogavam sobre a decisão do motorista da linha 7, comunicada aos passageiros um minuto antes. “Tem um protesto lá na frente. Vamos cortar caminho”. 

Nenhum passageiro reclamou. Alguns entenderam que a manifestação os beneficiava. Outros preferiram o silêncio. O estudante de História falava com empolgação. “O Brasil finalmente acordou.”

Como sempre, desconfio de quem generaliza o mosaico em que vivemos. Os tantos Brasis são complementares e contraditórios. Desiguais e distantes. Também duvido de um povo que, eventualmente, retoma o estado de hibernação. Assistimos a muitos movimentos que se cansaram de lutar de maneira isolada ou foram absorvidos pelo poder. Santos, minha cidade e dois universitários, se especializou – por exemplo - em enterrar vozes dissonantes desde o final do século passado.

Uma hora antes de entrar naquele ônibus, li numa rede social o comentário de um jornalista que, quando estudante, batia no peito que era progressista, conectado em questões sociais. Pelo que escreveu, parece mastigar a própria soberba, temperada com preconceito. O colega dizia com alarde: “Os baderneiros chegaram em Santos. Caos na cidade!”

Independentemente do passado e dos bairristas do presente, precisamos aproveitar o instante. E uma parte da minha cidade o fez ontem à noite. Cerca de mil pessoas foram às ruas, no Gonzaga e na orla da praia para protestar contra o péssimo serviço de transporte coletivo na Baixada Santista. Não houve conflitos ou vandalismo, o que poderia calar – por um momento – os sussurros que teimam em realimentar o provincianismo inoculado por aqui.

Os manifestantes não deixaram que os partidos políticos, sempre de olho na causa alheia, levantassem suas bandeiras. A procissão era apartidária. Isso derruba o frágil argumento de que os protestos são políticos. Na verdade, o são, como qualquer ação coletiva. O que se confunde é política com política partidária, quase sempre de baixa qualidade e elevado oportunismo.

Infelizmente, sofremos de baixa capacidade de crítica cidadã. Pensamos como consumidores, encarcerados na nossa individualidade de shopping, que mede custos e benefícios por produtividade e dinheiro. Ser cidadão implica em pensar de forma coletiva para compreender as consequências das relações com e entre os diversos poderes. E aceitar os conflitos que nascerem destes relacionamentos.

Discordo do argumento de que quem não anda de ônibus é insensível ao problema. A insensibilidade não está em pegar ônibus. Reside no temor de perderem ou verem reduzidos os pequenos privilégios que se traduzem na segurança ilusória dos carros e outros veículos personalizados.

Qualquer sujeito deveria saber quanto custa o ônibus, quem detém o monopólio do transporte coletivo e as deficiências do serviço prestado. Como disse uma colega jornalista: “Não quero Internet nos ônibus. Quero qualidade e pontualidade.” Ela leva duas horas para sair de Praia Grande e chegar a Santos todas as manhãs.

Eu estava no ônibus da linha 7. Aplicaria prova e receberia trabalhos finais na universidade. Cheguei com meia hora de atraso. Honestamente, não me importei. Os alunos entenderiam. Quando virei no corredor que dá acesso à sala, eles já sabiam o motivo do atraso. Mais do que isso: conversavam sobre transporte coletivo, problema que afeta a todos, para dor dos que crucificam baderneiros.

Cheguei atrasado com orgulho. Vi, pelo menos nesta noite de sexta-feira, minha cidade reagir contra o bairrismo e a arrogância que tanto a contaminam e a transformam na Santos que poderia ter sido, sempre à espera de um milagre econômico. 

Hoje, ela foi uma cidade com sangue nas veias, mesmo que uma parte dela ainda durma em berço esplêndido e de barro.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

As prostitutas são felizes?



Os moralistas se modernizaram. Permanecem, é claro, sentados sobre a própria imagem de superioridade, que escondem a essência de retrocesso. Caso contrário, não seriam moralistas de carteirinha.

A tática, hoje, se apoia na superficialidade de quem avança um pouco além de uma postagem na Internet. E explora a estratégia da invisibilidade do personagem que incomoda ao transformar em alvo a instituição – sem dar nome aos líderes políticos da manada. O trabalho sujo fica com os pistoleiros que usam o nome de Deus em vão e possuem mandato de quatro anos.

O tiroteio da vez envolveu a campanha do Ministério da Saúde sobre DST-Aids, que tinha como um dos pilares as prostitutas. Somos ricos em linguagem na hora de mascarar o que pensamos. Prostitutas, garotas de programa, profissionais do sexo; na prática, nomes variados para uma palavra de quatro letras que a maioria evita dizer, enquanto pensa, por causa do politicamente correto, mas que resume a própria crença no que elas são.

Assim que pousou na Internet, começou o bombardeio. O primeiro tiro de desqualificação foi a piada, aquela que gera risos nervosos. “Por que mulheres tão feias?”, perguntavam os humoristas de ocasião. “Por que não se escolheu uma loira-padrão, como as da TV?, escreveu-se em redes sociais.

Aqui começam os sinais da limpeza social. Numa primeira leitura, prostitutas deveriam, no mínimo, se encaixar nos manuais de estética. Nesta visão preconceituosa, o cartaz do Ministério não criaria o cenário ideal da propaganda. E pouco vale se há distância da realidade. Elas continuam vistas como produtos, mas não podem ser tratadas como público.

A segunda interpretação diz respeito à comparação com a TV. Sutilmente, muitas mulheres na TV são encaradas como prostitutas de luxo. Opa, garotas de programa ou acompanhantes (perdoe-me se apenas me lembrei agora de outro sinônimo).

A beleza e a burrice seriam características inerentes ao biotipo destas mulheres. Tão burras que possuem salários várias vezes maiores do que os machos que apontam seus dedos de desejo. Tão idiotas que abrem griffes e outros tipos de empresas enquanto os viris de sofá sonham com a palavra empreendedorismo, que aprenderam de maneira atravessada.

Mas as prostitutas, para os moralistas, não podem protagonizar campanhas do Ministério. Devem permanecer encarceradas no submundo das subespécies. Devem ficar entre a sombra e as luzes vermelhas para atender justamente aqueles que defendem criminalização ou invisibilidade.

A capital do Planalto Central não seria um dos grandes mercados deste “segmento da economia”? Ou nos esquecemos do escândalo que envolveu ministros, deputados e outras “autoridades” há três anos? Ou acreditamos que eles se reuniam em mansões para jogar gamão e tranca?

Os pistoleiros foram rápidos em fuzilar suas vítimas. Os deputados da bancada “meu Deus é melhor do que o seu” se mobilizaram e crucificaram o ministro Alexandre Padilha. Assim como seu colega que enterrou o kit-gay e venceu uma eleição para prefeito, Padilha temeu que a estrada para o Palácio dos Bandeirantes ruísse antes de ser pavimentada. Sacrificou um subordinado e remodelou a campanha, que perdeu o impacto sobre o problema real.

A Aids ainda é incurável. As mulheres ainda são o maior grupo de risco. A relação sexual ainda é a principal forma de transmissão. Mas pouco importa para os moralistas, muitos dos quais sorriram quando uma empregada doméstica foi atacada por jovens que pensaram ser uma prostituta. Dois por um, na verdade. A primeira inicia sem cobrar. A segunda cobra para iniciar.

Se as prostitutas são felizes? Só no cartaz do Ministério da Saúde, onde talvez pudessem reduzir o abismo que as separa da cidadania.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Vida de gado


Os universitários que saem da Universidade Católica de Santos, na Vila Mathias, por volta das 22h30, costumam demorar cerca de uma hora e meia para chegar em casa. Eles dependem de ônibus da Viação Piracicabana para levá-los à Cidade Náutica e bairros próximos, na vizinha São Vicente. É o mesmo tempo de viagem para os estudantes que tomam ônibus fretados para Peruíbe, a 70 quilômetros da instituição de ensino. 

Na avenida Conselheiro Nébias, ônibus gastam até 10 minutos para percorrer um trecho de duas quadras no mesmo horário. O fluxo de passageiros cresce exponencialmente por conta da saída de universitários. Como agravante, a via é estreita e a empresa disponibiliza os maiores veículos, que travam a avenida e transformam o tráfego em carreata (ou romaria).

Um professor estava no Canal 1, no Marapé, às 18 horas, e precisava estar em sala de aula, no Boqueirão, uma hora depois para trabalhar. Diante de ônibus lotados e trânsito carregado, preferiu ir à pé. Estava em sala 50 minutos depois. Uma aluna, por coincidência no mesmo ponto, esperou pelo ônibus número 7. Chegou ao mesmo lugar meia hora depois que o professor.

Um passageiro me contou que cansou de esperar 30 minutos, em média, por ônibus da Viação Piracicabana na avenida Presidente Wilson, em São Vicente. Ele toma o coletivo às 13 horas e, quase todos os dias, enfrenta veículos lotados até a porta. Não é horário de rush. Nesta semana, tomou uma lotação e pegou um ônibus em Santos para cumprir a tempo um compromisso de trabalho. Ele não conseguia entrar no intermunicipal número 8.

È só parar em qualquer ponto de ônibus para verificar a insatisfação coletiva dos usuários contra a empresa que mantém o transporte coletivo em Santos. O debate sobre a cobrança em dinheiro e o uso de cartões apenas mascara o real cenário. Até porque o prefeito Paulo Alexandre Barbosa, anunciou a alteração na cobrança em fevereiro, naquele passeio de ônibus. Alteração adiada em abril porque a empresa não se preparou no sentido de instalar postos em quantidade suficiente. Lembram-se das filas de duas, até quatro horas, em março?

A discussão desvia o foco sobre a ausência de cobradores nos veículos. Isso sem falar na cortina de fumaça em forma de “benefícios”, como carros novos, ar-condicionado e Internet. É transformar obrigação em mérito.

Com a mudança, os motoristas se tornaram soberanos nos coletivos. Cada um toma a decisão que for mais conveniente. Alguns aceitaram dinheiro. Outros enfatizaram as recomendações pelas novas regras. Um terceiro grupo se recusou a receber pagamentos que não fossem em cartões. Crianças tiveram que descer do ônibus por conta do comportamento do condutor.

A ideia de que os passageiros poderão pagar em dinheiro três vezes ao mês soa ridícula. Os passageiros seriam filmados e as imagens, registradas em banco de dados. Como os motoristas vão verificar quem passou quantas vezes pela catraca? Outra função a acumular? Quem monitora a “lista negra”? A proposta parece piada pronta diante de tantas dificuldades.

O prefeito disse, em várias situações, que vai cobrar da Piracicabana melhor qualidade no serviço. Lembrou, inclusive, que o contrato – herdado por ele, faça-se justiça! – se encerra em 2015. Quando a data chegar, a cidade vai abrir concorrência no transporte coletivo? O passageiro poderá escolher por qual companhia viajar, assim como faz na ponte rodoviária?
Em tempo: os motoristas do ônibus Seletivo estão informando aos passageiros que levem trocados para pagar a passagem de R$ 3,50. As notas maiores serão guardadas nos cofres dos veículos para evitar assaltos. É a política da transferência. Mudam-se os cenários. Mudam-se as vítimas. Persistem os problemas.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Cultura do estupro II



Na semana passada, escrevi neste espaço sobre a violência sexual como epidemia global. Uma doença que não escolhe endereço, cultura ou nível de desenvolvimento econômico. E, em todos os lugares, persiste a sensação de impunidade, seja por conta de leis mal aplicadas ou inexistentes, seja por valores culturais enraizados até a medula. 

A violência sexual é utilizada, inclusive, como instrumento político. O Centro de Jornalismo Women Under Siege denunciou que os estupros contra homens e mulheres se tornou uma arma na guerra civil da Síria. Segundo a pesquisa realizada pelo Centro, oito em cada dez vítimas são mulheres com idade entre 7 e 46 anos. Sete anos! A maioria dos atos violentos são cometidos por soldados. Muitas vítimas afirmaram ter ouvido, enquanto eram estupradas, frases como: "Você quer liberdade? Isso é liberdade".

Mas vamos aproximar o assunto da janela de casa, conforme prometido. No Estado de São Paulo, quase 13 mil estupros em 2012. Um caso a cada 40 minutos. Em 2005, eram 10 estupros por dia no Estado. Hoje, são 35 vítimas. Na Baixada Santista, aconteceram 545 estupros em 2011. Guarujá lidera a lista com 139 casos. Santos registra, em média, quase dez estupros por mês.

Esta doença permite leitura de variados ângulos. Mas tenho a impressão de que aspectos sociais e econômicos soam como transferência de responsabilidade, na qual o sistema – ou qualquer outro nome que pareça uma entidade abstrata – assinaria a culpa por comportamentos individuais, ainda que muitos estupros sejam coletivos.

Prefiro pensar a questão, neste momento, pela perspectiva cultural. A violência sexual está associada à manifestação mais selvagem do machismo. O estupro é a visão asquerosa de uma sociedade dita civilizada quando se olha no espelho. A mulher não é vista como ser inferior, passível de agressão e posse, apenas durante a violência sexual. O corpo não pertence a ela. É do homem que se julga imbatível, inalcançável por causa de seu órgão sexual.

A mulher não possui voz nem condições mínimas de igualdade para ser capaz de contestar. A posição é servil, de submissão, diante de um dominador que necessita satisfazer suas vontades, necessidades que desprezam a existência do humano no outro.

Além de ser vista como coisa, fator que se estende a quase todas as instituições sociais, a mulher também é classificada como vilã, símbolo que perpetua o comportamento cultural e justifica como natural a bestialidade do agressor. Muitos juízes, por exemplo, presumem o consentimento por parte da mulher, que – embora vítima – tenha que provar o contrário.

E se engana quem acredita que o machismo e a defesa da violência sexual sejam exclusividade masculina. Na semana passada, ouvi uma mulher – dentro de uma universidade - dizer que muitas vítimas pedem para ser estupradas. O pedido se traduziria nas roupas curtas e indecentes. Ela não está sozinha. Poderíamos, então, sugerir à indústria do vestuário que fabricasse camisetas com a estampa: “Por favor, me estupre. Sou uma vadia!”

A Marcha das Vadias, um movimento social internacionalizado, surgiu por conta desta reação cínica e intolerante. Uma mulher ouviu algo parecido de um policial, no Canadá, quando foi denunciar um estupro cometido contra ela.

Enquanto não entendermos os danos provocados por uma cultura essencialmente patriarcal, teremos que assinar embaixo das palavras da coordenadora nacional da Marcha Mundial das Mulheres. Segundo Nalu Faria, “o Brasil é teoricamente livre do ponto de vista da sexualidade, mas se utiliza dessa liberdade para desqualificar e culpar as mulheres.”