quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Em terra de cego, quem tem olho é eleito

Se olharmos de longe, a Baixada Santista dá a impressão de que seus eleitores, em linhas gerais, flertaram com novidades políticas. Se enxergarmos de perto, a região nos indica que os eleitores preferiram a continuidade e que o flerte foi apenas isso: um jogo de sedução sem maiores consequências.

Em três cidades, o resultado óbvio nas reeleições de Marcia Rosa, em Cubatão; Mauro Orlandini, em Bertioga; e Paulinho, em Mongaguá. Nestes endereços, a eleição também serviu para enterrar – ainda que vivos - velhos caciques como Nei Serra, Lairton Goulart e Artur Parada Prócida, respectivamente.

Praia Grande se satisfez com uma reeleição “torta”. Alberto Mourão terá seu quarto mandato em 20 anos. Os outros dois prefeitos neste período, Ricardo Yamauti e Roberto Francisco, foram vice-prefeito e chefe de gabinete de Mourão. Ambos governaram a cidade enquanto Mourão cumpria mandato na Câmara Federal.

Guarujá é a única cidade na qual haverá segundo turno. Competem as gestões atual e anterior. De um jeito ou de outro, mais uma terra sem grandes novidades, com tendência à repetição de governante da hora.

São Vicente terá prefeito novo, mas de uma turma antiga. Luis Claudio Bili passou por cinco mandatos de vereador e foi secretário três vezes ao longo das administrações Márcio França e Tércio Garcia. Governará com uma Câmara Municipal de baixa renovação nas cadeiras. É claro que metade de cidade assinou o atestado de insatisfação contra a dinastia França, representada pelo príncipe Caio, mas só os próximos quatro anos dirão até que ponto mudanças políticas serão postas em prática.

Em Peruíbe, a cidade das mulheres, Ana Preto se tornou a primeira prefeita eleita, de fato e de direito. Mas ela já governou por dois anos. E suas adversárias eram a atual prefeita Milena Bargieri e a vereadora Onira, há mais de uma década na Câmara Municipal.

Itanhaém veste a carapuça da incógnita, com a entrada do tucano Marco Aurélio. Ele venceu Marcelo Strama por 2% de diferença. Mas ainda é cedo para dizer se o novo prefeito dará rumos distintos da gestão de João Carlos Forssell.

Em Santos, a cereja do bolo. O prefeito pode ser novo, inclusive em idade, mas o grupo que o cerca transita nos corredores do poder há anos. O PSDB ganhou pela primeira vez em Santos, mas tem o vice do atual governo, além de representantes de segundo escalão e de compor a base de Papa na Câmara Municipal.

Paulo Alexandre sempre representou um dos elos de ligação entre o Governo do Estado e a Prefeitura. Ocupou três secretarias no governo estadual e venceu duas eleições para deputado estadual. Na campanha, aproveitou-se da indecisão de João Paulo Tavares Papa e tomou para si, com sutileza, a ideia de que era o candidato do prefeito. Nas duas semanas anteriores à eleição, confirmou com todas as letras – em resposta a outros candidatos – que seu partido era governo. 

Se olharmos de longe, podemos engolir os discursos de província, que adora desfilar com roupas de vanguarda. Se enxergarmos de perto, veremos que as roupas da política regional não passam de peças de segunda mão, costuradas no brechó eleitoral. Mas não sabemos se o eleitor ficou mais míope ou se fez uma cirurgia de correção. Desconfio que depende de onde ele vê, com ou sem óculos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O tempo e o suor

Apontar as causas para a vitória de Paulo Alexandre Barbosa (PSDB) em primeiro turno – e motivos para o fracasso dos demais – é tarefa que requer tempo para os analistas políticos. Vale, óbvio, para qualquer fenômeno social. É preciso prazo para conectar e pesar na balança fatores que, juntos, não garantem um resultado matemático. Sempre haverá um campo de especulação e subjetividade no olhar sobre o processo eleitoral.

Resolvi, para manter viva a coerência, pensar sobre a escolha que a maioria dos eleitores fez. Por que escolheram o tucano? Por que rejeitaram os concorrentes, alguns com mais experiência para a função? Entenda, leitor, como estradas para a reflexão, somente impressões.

A campanha de Paulo Alexandre foi eficiente. Construiu uma imagem que convenceu uma parcela do eleitorado. Um produto bem embalado, que atende às necessidades do consumidor. Campanhas, a bem da verdade (opa, uma palavra incompatível para o momento), seguem a obsessão de diagnosticar e se comunicar cirurgicamente com os desejos de alguém que mal compreende – até porque desacredita – as entrelinhas da política.

A campanha do candidato tucano preencheu os espaços ignorados ou negligenciados pelos adversários. Expôs – o que é diferente de colocar em debate – ideias dentro de um cardápio de anseios coletivos, mas coletivos apenas por coincidências de necessidades individuais.

Paulo Alexandre se encaixa no modelo que representaria o novo, embora não o veja como tal. Sem personalizar, ele simboliza um rumo de gestão que se conhece do governo do Estado e da própria Prefeitura.

A imagem também funciona pelo oposto. Os ex-prefeitos Beto Mansur e Telma de Souza carregaram nas costas o desgaste de várias eleições, de discursos requentados, do lado negativo de suas administrações, que o tempo fora do Paço Municipal inevitavelmente desenterra.

O candidato do tucano soube capitalizar a popularidade do atual prefeito João Paulo Tavares Papa. Antes de se oficializar a corrida, Paulo Alexandre não fazia questão de se divorciar do governo. Pelo contrário, Alckmin e Papa davam as mãos em solenidades e, dentro da dança política, com o então secretário estadual Paulo Alexandre na mesma foto.

Papa também demorou para definir seu candidato. E Sérgio Aquino pagou o preço da indecisão. As primeiras pesquisas apontavam, por exemplo, que poucos sabiam quem era o apadrinhado do prefeito. Depois, nas rodas de conversa, a desculpa: “quando chegar o horário eleitoral, as pessoas saberão quem é o candidato dele.”

De fato, Aquino chegou a 12% dos votos válidos, mas a poeira no rosto marca o quanto estava atrás, sem fôlego para se aproximar de Paulo Alexandre. O perfil do técnico foi, além de tudo, insuficiente.

O candidato do PSDB contou ainda com as circunstâncias. O eleitor médio está exausto. Não suporta a campanha eleitoral, ignora os debates, ri nervosamente do horário eleitoral. É comum a opinião de que a eleição, resolvida em primeiro turno, significa um fardo cumprido.

Na prática, a cidade optou pela continuidade, pela figura de um gerente, mesmo que a retórica política seja somente um tempero dentro da receita que borbulha no caldeirão de partidos.

O tempo resolve? Quatro anos para sabermos qual a distância entre a imagem e o real. Por hora, impossível confiar em um gerente que não transpira embaixo de sol na feira livre.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Bili e as palavras flexíveis


Com a eleição de Luis Claudio Bili para prefeito, São Vicente se tornou o centro das atenções na política da Baixada Santista. Evito a tentação de usar a palavra surpresa para definir a vitória de alguém que está na política local desde os 21 anos. A palavra daria razão aos analistas políticos e às pesquisas eleitorais, que escorregaram feio nas previsões para a vila mais antiga do país.

Para quem observa à meia distância, o mais interessante das viradas eleitorais é que elas geram um caldeirão de impressões. O eleitor vicentino realmente escolheu o novo? A cidade rejeitou um modelo de dinastia que controlava a política há 16 anos? De que modo a nova (velha) composição da Câmara Municipal vai interferir na vida do prefeito?

Luis Claudio Bili, de saída, não representa novidade alguma no município. O novo prefeito, de 43 anos, está na política desde o século passado, dentro e fora do governo. Bili é dissidente de tempos recentes. Como vereador de cinco mandatos, integrou a base de apoio dos governos de Marcio França e Tércio Garcia. O prefeito eleito foi, inclusive, secretário por três vezes, em três pastas diferentes.

Se Bili já foi da base de apoio, por que o eleitor vicentino não confirmou a continuidade no herdeiro da dinastia França? A resposta não é conclusiva e talvez jamais a seja. Mas o recado apenas confirma uma lei da História: nenhum Império é eterno. E costura outra premissa: a arrogância, em campanhas eleitorais, mata o político pela boca da urna.

Caio França perdeu no voto, mas a maior derrota é de seu pai, o deputado federal e ex-prefeito Marcio França. Ele, aliás, compõe o pacote simbólico de fracassos nesta eleição. Um olhar que nos leva a crer – com a exceção de Alberto Mourão, em Praia Grande – que os velhos coronéis não vencem mais de goleada.

A escolha de Caio França foi um ato presunçoso. Escolher um rapaz de 20 e poucos anos, sem experiência administrativa, enfatizou o que já se sabia há tempos. Marcio França continuaria governando São Vicente à distância. Esta posição, unânime em outros momentos políticos, fortaleceu uma corrente separatista, sedenta por aumentar a parte no bolo de poder em uma cidade que abriu mão da oposição.

A campanha de Caio França montou um tabuleiro com final que julgava previsível. Apenas se esqueceu de avisar os peões. Os eleitores se moveram, em parte, para um movimento anti-França (pai ou filho, pouco importa!), no qual Luis Claudio Bili serviu como válvula de escape. A Área Continental se transformou no centro da mudança, como reação a um modelo que não a colocava entre as principais prioridades.

O próprio prefeito eleito reconheceu, em entrevista ao repórter Victor Miranda, de A Tribuna, que parte dos votos vieram por insatisfação do eleitorado, e não por convicção. O cenário se tornou bipolarizado, de teste para a popularidade de Marcio França e do grupo que gerencia São Vicente há 16 anos. Os nanicos, com outros dois candidatos, ficaram minúsculos neste caso, dilacerados pela implosão dentro de seus próprios partidos.

O eleitor pode ser paradoxal quando encara a campanha municipal – efetivamente - como duas votações. A escolha de vereadores envolve critérios mais individualizados, menos abstratos e amplos sobre a cidade. Em São Vicente, a Câmara Municipal teve pouca renovação.

A única questão é que os papéis dos vereadores se inverteram. Antes, não havia opositores ao Governo no Poder Legislativo. A partir de 2013, a maioria dos vereadores será de oposição. Apesar da aparente dificuldade para Bili, maioria é um termo relativo, pois já teve gente que mudou de lado na festa da vitória.

Como Luis Claudio Bili na Prefeitura, São Vicente provou que tem um modo particular de fazer política, capaz de derrubar analistas e pesquisas. Lá, situação e oposição são palavras bastante flexíveis.
 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O debate morreu


Às vésperas do dia 7 de outubro, o eleitor assinou o atestado de óbito dos debates na TV. A causa da morte, segundo o documento, foi falência múltipla de órgãos, provocada – principalmente – por inanição retórica, uma variação maligna da síndrome das palavras vazias.

A sabedoria popular nos ensina que a diferença entre veneno e cura é a dosagem do remédio. No caso dos debates, uma autópsia deveria investigar a possibilidade de overdose. Em outras palavras, espalhar-se por várias emissoras de TV pode ser um dos fatores que mataram, lentamente, o formato.

Os debates deixaram de ser um momento de expectativa dentro do processo eleitoral. Caíram na vala da banalização. Os candidatos se enfrentam mais de meia dúzia de vezes em frente às câmeras. Repetem os argumentos, desgastam as promessas, ressuscitam o passado tantas vezes que a denúncia anda como morto-vivo, sem provocar cócegas no adversário.

Até os mais engajados se cansaram do volume de conversa fiada. É comum nas rodas de conversa: “Viu um, viu todos!” O debate também deixou de ser atraente em termos de audiência. Não altera o estado de coisas. Padece da inércia para o Ibope.

O debate político-eleitoral se manteve vigoroso desde o início dos anos 60, quando foi realizado pela primeira vez, na TV americana. Na ocasião, a CBS transmitiu o encontro entre o democrata John Kennedy e o republicano Richard Nixon. O impacto foi tão forte, com leituras contrárias sobre vencedor, que as emissoras abandonaram a ideia por uma década.

No Brasil, debates entraram para a história como fatores decisivos para uma eleição. A jornalista Marília Gabriela, no final dos anos 80, tentando controlar os presidenciáveis. A famosa edição do debate entre Collor e Lula, feita pelo jornal Nacional, em 1989. A pergunta de Boris Casoy para Fernando Henrique: “Você acredita em Deus?” A falta de convicção de FHC teria abalado à candidatura para prefeito de São Paulo.

Candidatos na dianteira desprezam os debates, cientes de que pouco ou nada perderão nas pesquisas de opinião. O próprio Lula tomou tal atitude. João Paulo Tavares Papa adotou a versão caiçara de ausência e ganhou sem arranhões, em 2008. Nesta campanha, Alberto Mourão, em Praia Grande, também toma chá de sumiço a cada debate que se desenha na TV.

A última pesquisa divulgada por este jornal reforça que o modelo havia entrado em coma. Menos de 10% dos entrevistados acompanham a campanha eleitoral via debates na TV. Mais do que o dobro disseram acompanhar pelo horário eleitoral gratuito, a noiva negociada a dotes pelos candidatos.

Mas é preciso tomar cuidado! O eleitor é um bicho arisco, como o caipira que finge concordar com os arrotos de presunção do primo da cidade. O eleitor, no geral, se cansou do palavrório e assiste ao horário eleitoral como se fosse um programa de televendas: cai no canal sem querer, vê uma ou outra oferta, mesmo sem dinheiro, e segue a peregrinação por controle remoto. Os debates, que simbolizariam a liberdade democrática, estão presos na própria armadilha. A preocupação em se organizar, em evitar que candidatos falem o que quiser sem controle, deu margem para o excesso de regras.

As emissoras, em muitas situações, se submeteram às amarras dos candidatos, cujos nós são atados pelos assessores e pensadores de marketing. A sobrevivência da burocracia, por meio de regulamentos rígidos, assassinou toda e qualquer chance de se ver alguma espontaneidade política. Os debates, infelizmente, deixaram de ser o antídoto para o tédio de campanhas cada vez mais plásticas e ocas de discursos múltiplos. Tornaram-se tão previsíveis quanto um corpo que acaba de falecer.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Pelo segundo turno


As duas últimas pesquisas eleitorais, incluindo a publicada neste jornal, me deixaram assustado. O medo nasceu por conta das chances reais da eleição para prefeito de Santos ser decidida no primeiro turno. Antes que os apressados ou cínicos distorçam esta coluna em prol de um candidato ou outro, é preciso dizer que nada tenho contra o líder das pesquisas nem apoio ou visto a camisa de quaisquer outros concorrentes.

Nove candidatos à Prefeitura poderiam indicar, teoricamente, uma multiplicidade de ideias sobre o gerenciamento da cidade nos próximos quatro anos. Ao menos, criar alternativas para aqueles que não desejam a mesma turma – que habita a Praça Mauá há quase 16 anos – no poder. Ou permitir ao eleitor confirmar esta opção diante de um leque maior de prefeituráveis, inclusive os que estiveram no poder político nas últimas duas décadas.

Abdicar do segundo turno é virar as costas para o debate político, para a comparação de propostas, para o questionamento concreto sobre projetos de administração pública. Infelizmente, os próprios candidatos colaboram com esta postura conservadora do eleitor santista, demonstrada com maior veemência nos últimos oito anos.

A campanha não fez cócegas na rotina dos eleitores. As opções se mostraram parecidas. As estratégias se comportam como irmãs siamesas. Os discursos esbarram na megalomania das obras improváveis, até porque não dependem do dinheiro da Prefeitura. O horário eleitoral gratuito é a cereja do bolo de formato-padrão, recheado de mesmice e com pitada de humor de mau gosto.

Paulo Alexandre Barbosa (PSDB), que lidera as pesquisas, precisa enfrentar – como qualquer outro candidato – o segundo turno. Uma segunda votação elimina a fumaça que esconde as ideias, os comportamentos e as ações dos candidatos.

O segundo turno extermina os franco atiradores, expõe os concorrentes sedentos de migalhas na administração e enterra os velhos discursos das campanhas viciadas em tempos mortos. O segundo turno coloca na vitrine, de maneira quase crua, o candidato que caminhava mascarado por jingles, imagens plásticas e maquiagem de festa.

Mais do que os enfeites e as alegorias que aproximam a corrida eleitoral do carnavalesco, uma votação em segundo turno obriga – de certa forma – os dois candidatos a conversar com praticidade sobre programa de governo. Neste sentido, os ataques pessoais e as distorções de projetos alheios se transformam em tiros no pé. Quem vai ao segundo precisa ter algo a dizer, com o risco de ficar mudo por não ter ouvidos a acompanhá-lo em promessas e abobrinhas em geral.

O segundo turno é, ainda que sem garantias, o único caminho para provar se alguém possui condições de se sentar na cadeira de prefeito com legitimação popular. Enfrentar e vencer duas votações implica em reconhecimento da maior parcela da população, mesmo com tendências à bipolaridade. Aliás, não é o caso do pleito atual. O cardápio de alternativas, em princípio, indicava vários trajetos. Pena que muitos se mostraram membros do time de iguais.

Santos, para incendiar o processo eleitoral, precisa jogar sete cartas fora da mesa e permanecer com duas nas mãos por mais três semanas em outubro. Entre outras coisas, talvez possa servir de exemplo para cidades vizinhas como São Vicente e Praia Grande, que patinam na mesma receita de poder coronelista há duas décadas.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

A bicicleta e o gato

A ghost bike foi retirada na quinta, 6 de setembro

Santos ganhou um monumento há quase três semanas. E o perdeu há cinco dias. Monumentos, mais que do que enaltecer pessoas ou lugares, dizem quem nós somos ou nos alertam para o passado que não deveríamos mais repetir. Via de regra, os mais importantes são aqueles que brotam de ações anônimas, e não de atos premeditados pelo Estado e seus governantes.

Santos ganhou uma ghost bike. O monumento representou, acima de tudo, o grito contra a selvageria que decidimos adotar no trânsito da cidade. A bicicleta branca, pendurada a dois metros de altura, na esquina das avenidas Conselheiro Nébias e Afonso Pena, expôs o caos sobre rodas, no qual todos os atores tem a sua cota de responsabilidade.     

A bicicleta, enquanto novidade, atraiu a curiosidade de muita gente que, ao menos por um minuto, pisou no freio do próprio cotidiano para refletir sobre as escolhas que fizemos (ou deixamos fazer) no gerenciamento de tráfego e de transporte coletivo em Santos.

A bicicleta escancarou a imagem de que planejamento não é uma de nossas melhores qualidades. Apenas a morte nos tira da inércia. Foi preciso que uma ciclista morresse para que se pensasse sobre o trânsito como um revólver com o dedo no gatilho.

A ciclista tem nome e sobrenome e não é preciso conhecê-la para se lembrar dela, inclusive pelo que passou a representar. Raquel Guimarães Martho tinha 66 anos e levava um gato para castração, em 23 de agosto, quando foi atingida por um caminhão. Possuía outros 13 animais. Era militante na defesa dos animais. Deixou uma filha, grávida de cinco meses.

É fundamental aproveitarmos o momento eleitoral (fase na qual os políticos saem de seus gabinetes e tentam manter contato com os mortais que apertam as teclas das urnas) para cobrar ações efetivas que organizem o trânsito da cidade.

A situação é tão séria que muitas pessoas resolveram, por exemplo, trocar os ônibus por caminhadas. A necessidade que faz a qualidade de vida, diriam os cínicos. O trajeto do Canal 1 até a avenida Conselheiro Nébias pode ser feito, a pé, em 40 minutos. Entre 17 e 19 horas, o mesmo trecho via ônibus leva o dobro do tempo. Daria para chegar à São Paulo pela ponte rodoviária. 

Optamos por digerir a retórica da autobajulação política nas ciclovias, incompletas, que muitas vezes conectam lugar nenhum com o vazio geográfico. Os ciclistas, de fato, são obrigados a abandonar a via para acessar avenidas transversais. E transformar uma das calçadas do Canal 1 em ciclovia não simboliza atitude digna de ser classificada como inteligente. 

Enquanto se mantinha em pé, passei por duas vezes em frente ao monumento. Uma delas, inclusive, para fotografar o lugar. Numa das visitas, cinco operários observavam e tentavam trocar informações sobre a morte de Raquel. O problema entrou na agenda daquele grupo de trabalhadores.

Na outra visita, de dez minutos, foi possível testemunhar ciclistas entre os carros na avenida Afonso Pena, a dois metros da ciclovia. Taxistas rompiam o semáforo para ganhar meia dúzia de segundos a mais. Motoristas paravam seus carros com status em financiamento de 36 vezes (a juros de 0.99%) na faixa de pedestres.

Uma moça saiu do ponto de ônibus e, admirada com as flores que cercavam o monumento, me perguntou detalhes sobre o acidente. Parou para ler o manifesto pregado abaixo da bicicleta branca. Foi neste momento que uma senhora abordou a colega jornalista que estava comigo. A senhora olhou para a bicicleta, virou-se para a jornalista e perguntou:

— Você sabe se o gato se salvou?

Tive a impressão de que, onde vivemos, a bicicleta branca corre o risco de virar uma Torre de Babel. 
 

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O político-pastel


O retorno é discreto, coerente com o desaparecimento por quatro anos. A conversa, de pé de ouvido, nasce amistosa. Quem ressuscitou finge interesse e estimula o interlocutor a conduzir – de maneira ilusória – o diálogo. O tom baixo de voz contrasta com os berros dos vendedores que precisam atrair os desconfiados clientes.

O visitante, tal um elefante em loja de cristais, sabe da má reputação de seus colegas (ele sempre se considera exceção) e, por isso, precisa de paciência para conquistar quem tende a considerá-lo fruta de final de feira.


O estranho no ninho não trabalha como um solitário. O sonho é transparecer onipresença. Um exército de aliados de ocasião foi contratado, devidamente equipado com bandeiras, camisetas e pilhas de papéis cujo nome derivou da religião. Os “santinhos” também estão nas mãos dos que atuam como voluntários. Trabalhar de graça não merece canonização; estes apenas aguardam o melhor momento para cobrar o sagrado esforço.

O visitante não assume responsabilidades. É um bom ouvinte, palpita na hora certa e aproveita a idéia do novo amigo para propor soluções que oferece como inéditas ou criativas. Não se importa em parecer contraditório, pois as palavras se perdem entre as caixas de tomates e alfaces.

O candidato a vereador, este que aparece na feira livre de vez em nunca, pode ser detectado de longe. Bem vestido, ele não carrega os utensílios básicos para a sobrevivência neste local com origem na Idade Antiga. A fantasia pode incluir uma calça social e sapatos – para transmitir elegância – ou um jeans, camiseta e tênis básicos, com ar de casualidade, proximidade com as pessoas que não o conhecem ou não se importaram em reclamar do desaparecimento.

A ordem é chegar como se não houvesse passado. Distribuir “santinhos” é papel dos soldados – educados, por sinal. O candidato distribui “afeto”. Corpo a corpo, apimentado por sorrisos. Beijos, abraços, apertos de mãos indicam um flerte no qual o alvo não precisa ter nome, mas título de eleitor. É importante a disposição para receber um afago na cabeça ou levar um bebê para que o visitante o pegue no colo.

A feira livre é um ponto democrático. Não cobra status. Você pode somente perambular por lá ou conversar com quem quiser sem ser importunado. Os sujeitos folclóricos e criativos nas rimas exalam cultura popular, além de oferecer produtos tradicionais e exóticos e preços a serem barganhados com bom humor. Vendedores e compradores que se conhecem há anos compartilham confidências, sentem falta um do outro quando a ausência é superior a uma semana. Todos assistem com resignação aos visitantes que renascem em períodos eleitorais, conversam, soam (e suam!) preocupação e somem por encanto. 

Com sabedoria, um amigo comparou estes personagens ao pastel da própria feira livre. Compõe o cenário, não representa unanimidade entre feirantes e consumidores e é recheado de vento. Neste último caso, vale o olhar sobre as propostas (promessas) de alguns concorrentes.


Obs.: O texto acima foi publicado no início de setembro de 2008, há exatos quatro anos, no jornal Boqnews e no blog Conversas e Distrações. Infelizmente, não precisei mexer uma vírgula no texto, tamanha a atualidade.