sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Deus, o candidato



Dizer, hoje, que o Estado brasileiro é laico soa como heresia digna de fogueira. A relação entre política e religião perdeu os pudores como uma pecadora que resolve confessar seus erros diante do sacerdote. As eleições viraram, em várias igrejas, extensão do culto ou da missa, onde se discutem - sem máscaras – projetos de poder.

Não me refiro, claro, aos passeios que os candidatos fazem às instituições religiosas. Pedir votos sempre representou um ato tradicional e ecumênico. É tão comum vermos os políticos sentados na primeira fila de igrejas, templos e até terreiros quanto presenciá-los beijando crianças e idosos em feiras livres. Na fé eleitoral, o candidato vê o passeio como protocolo para levar à vitória, com a complacência de quem recebe o visitante indesejado na casa de Deus.

Segundo o jornal Folha de S.Paulo, a Assembleia de Deus, por exemplo, estabeleceu como objetivo eleger um vereador em cada uma das 5565 cidades brasileiras. A liderança da Igreja toma como base o Censo do IBGE. No país, são 42 milhões de evangélicos, sendo 12 milhões e 300 mil da Assembleia de Deus, a maior entre as pentecostais.

Política e religião nunca se uniram por missões altruístas, por questões públicas, no sentido literal da palavra. O namoro é sempre permeado pela rigidez moral, sempre genérica no discurso. Moral que esconde a intolerância dos moralistas, soldados de primeira ordem em apontar como os outros devem se comportar socialmente.

O moralismo que contamina a relação entre política e religião disfarça entendimento e preocupação pela coisa pública. Por trás da retórica de português correto e de fala mansa, nasce o olhar segregador que torna a instituição religiosa do candidato um microcosmo essencial para os benefícios quase que exclusivos das medidas sociais.

O suporte para o projeto de poder é a mídia eletrônica. Rádio e televisão, que antes atendiam às grandes instituições, de várias crenças, estão disponíveis para qualquer igrejinha que aluga um galpão ou compra uma antiga oficina mecânica. Entre os gigantes da fé, a Igreja Mundial do Poder de Deus, liderada pelo pastor Valdomiro, arrenda 22 horas diárias de programação televisiva na Rede 21.

O tamanho da casa de Deus não provoca diferenças na condução da palavra. O discurso político é padronizado e misturado à rigidez de comportamento, à batalha contra os assuntos que não se encaixam na doutrina e ao fortalecimento da família, não apenas o núcleo social mais básico, mas também a igreja como extensão do projeto eleitoral.

O Congresso Nacional, por exemplo, serve como termômetro da relação íntima entre política e religião. A Frente Parlamentar Evangélica é formada por 76 deputados federais e três senadores. Em 2006, eram 32 deputados e quatro senadores. Dependendo da questão envolvida, a Frente se transforma em bancada da fé, ao incluir representantes além do protestantismo.

Na eleição presidencial, em 2010, os parlamentares (e suas igrejas) conseguiram manter o debate medieval sobre aborto na agenda do segundo turno. É claro que sob a ótica do moralismo cristão, e não como política de saúde pública. Dilma e Serra caíram, conscientes, na armadilha, o que esvaziou a discussão sobre economia, educação e outros temas relevantes para a campanha eleitoral. 

Religião sempre será uma ação política porque, quando institucionalizada, se transforma em entidade com interesses que passam longe da pureza. E política não é necessariamente religião, embora seja uma questão de fé.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

4.189 mortes

A Polícia Militar de São Paulo matou, nos últimos sete anos, 4.189 pessoas. Deste total, 3.274 foram registradas como “resistência seguida de morte”, denominação genérica impregnada de suspeitas. Outros 915 casos foram considerados homicídios dolosos.

Dois episódios, esta semana, colocaram novamente a PM como sinônimo de matança. O empresário Ricardo Prudente de Aquino foi morto com dois tiros na cabeça na quarta-feira, em São Paulo, depois de uma perseguição por mais de 10 minutos. Ele levou dois tiros a cabeça. Estava desarmado. Os policiais dizem ter confundido um celular com uma arma.

Bruno Vicente Gouveia e Viana, de 19 anos, foi assassinado em Santos. Outras duas pessoas ficaram feridas. Os policiais atiraram 25 vezes contra o Gol onde estavam as vítimas. O motorista do veículo teria ignorado uma blitz porque estava com a carteira de habilitação vencida.

Digo novamente sinônimo de matança porque a instituição é acusada de excesso de violência em toda sua biografia. Da Rota malufiana ao massacre do Carandiru. Dos índices nos anos 90, média de quatro mortes por dia, ao assassinato de quatro rapazes em Praia Grande, sequestrados após a saída de um baile na vizinha São Vicente.

O Brasil chafurda numa guerra civil, principalmente nas grandes cidades. Não dá para ignorar 50 mil assassinatos por ano no país. Os cínicos (governantes e comandantes incluídos) podem argumentar que a PM mata hoje, em média, entre uma e duas pessoas por dia em São Paulo. Seria a metade de 20 anos atrás.

Por outro lado, poderia desfiar um rosário de dados sobre como a PM mata e prende pouco. Dois exemplos: 1) a Polícia Militar de São Paulo mata mais do que todas as forças de segurança dos Estados Unidos; 2) O número de prisões em SP é, proporcionalmente, 108 vezes menor do que nos EUA, o maior sistema prisional do planeta.

Mas estatísticas não justificam mortes. Reforçam a selvageria de quem as comete, na maioria dos casos. Banalizam e desumanizam vítimas e agressores. Servem de manipulação político-eleitoral. E fornecem um panorama geral, mas não se aproximam do contexto nem esclarecem as deficiências estruturais do sistema de segurança pública.

Os tradicionais obstáculos no cotidiano de um policial militar, de salário a armamento, são incapazes de justificar a mentalidade que contamina as relações deste servidor público com a população. A PM realimentou e preservou o olhar da autoridade, cultivo fértil durante a ditadura militar. E tornou trivial certos privilégios no contato com comerciantes, por exemplo, e nas atividades profissionais paralelas, como segurança privada.

A Polícia Militar é temida pela violência, e muitos acreditam que parte da corporação cede às tentações da criminalidade, fiéis à crença da impunidade. Mas parte da sociedade dá respaldo – a omissão é uma forma de concordância – à postura dos policiais. O senso comum cultua a premissa de que “bandido bom é bandido morto”.

Neste sentido, ainda prevalece a associação de que a marginalidade está concentrada em áreas periféricas e personificada em sujeitos sem escolaridade, de cor negra ou parda e jovem. A visão da polícia solidifica a imagem de que nas favelas só residem bandidos. Por trás deste rascunho de rótulo, escondem-se os preconceitos racial e sócio-econômico, compartilhado pela classe média e reproduzido pelos homens de frente da segurança pública.

Como disse o jornalista Caco Barcelos, por ocasião do livro “Rota 66”, a Polícia Militar tem, em sua mentalidade, a proteção do patrimônio, e não das pessoas. O repórter morou dois anos em Paris por conta das ameaças veladas e explícitas de policiais, alguns deles com cargo eletivo, feitas após a publicação do livro.

O cenário de hipocrisia provoca choque quando os policiais dão azar de matar alguém de dinheiro e/ou prestígio social. Ou quando parentes e amigos das vítimas resolvem rasgar a mordaça do medo e implorar – via imprensa – por justiça. Nasce o fingimento do novo, que luta para acobertar a rotina.

Os dois últimos episódios se encaixam perfeitamente nos dois fatores descritos acima. Uma vítima era empresário. No outro caso, família e amigos não se esconderam. Quantas vezes perseguições resultaram em mortes? Quantas vezes ficou no ar a desconfiança sobre drogas e armas encontradas em veículos? Parentes das vítimas negam com veemência a versão dos policiais presos.

Nem a Polícia Civil acreditou na história dos acusados. 25 tiros contra um carro com seis pessoas, “armadas” com um 22 e uma pistola de brinquedo? Quem pratica um sequestro-relâmpago com outras cinco pessoas dentro de um automóvel, conforme a suspeita dos PMs presos?

O treinamento da Polícia Militar é defendido de arma em punho pelos comandantes. Dentro do previsível espírito de corpo, o comando considerou as operações “tecnicamente corretas”, ao contrário do que declararam vários oficiais da reserva à imprensa. Novas perguntas: por que os PMs não atiraram nos pneus do carro do empresário, conforme se ensina em treinamento? Por que os dois tiros não foram disparados contra áreas não-letais da vítima, em vez dos dois tiros na cabeça, obviamente para matar?

As duas mortes, infelizmente, deverão engrossar um enredo de final clichê. As vítimas serão relembradas nas próximas matanças. Os PMs deverão ser condenados e expulsos da corporação. Mas a questão é que, enquanto a polícia brasileira sofrer de complexo de autoridade, continuaremos a testemunhar uma guerra civil digna de transformar conflitos armados em outros continentes em brincadeira de criança.

domingo, 22 de julho de 2012

Notas sobre uma pesquisa eleitoral


A pesquisa feita pelo Ibope e publicada pelo grupo A Tribuna, neste final de semana, confirmou o que outras duas pesquisas indicavam para a Prefeitura de Santos. Do final de 2011 para cá, Paulo Alexandre Barbosa (PSDB) é o homem a ser batido. Liderando desde o começo da corrida eleitoral, Paulo Alexandre não tem fôlego hoje para ganhar no primeiro turno, mas parece assistir da varanda aos demais adversários brigarem pela segunda vaga no segundo turno.            

O candidato tucano não se envolve em polêmicas, evita debater as feridas do Governo do Estado e insiste em falar sobre os recursos destinados como parlamentar à cidade de Santos quando andava de braços dados com o prefeito João Paulo Tavares Papa. Bem orientado, Paulo Alexandre jamais anunciou o término do namoro político com o prefeito, até porque parte do eleitorado acredita que o tucano é o candidato de Papa à sucessão, fator que ajuda a entender a baixa rejeição em todas as pesquisas eleitorais.            

Se Paulo Alexandre apareceu com 35% no Ibope, Telma de Souza (PT) está com 25%. O percentual assegura com folga o segundo lugar, mas também constrói um castelo de preocupações. A candidata paralisou neste número. Como crescer sem virar vidraça? É o velho problema que Telma enfrenta nas eleições para o Poder Executivo.

Numa analogia futebolística, Telma seria como o Corinthians. Disputa um campeonato de fórmula conservadora, possui uma torcida fiel e com bases populares, mas consegue unir as demais torcidas contra si quando chega às finais. A rejeição de Telma, por exemplo, gira em torno de 30% nas pesquisas. E redutos tradicionais, como morros e Zona Noroeste, não representam mais fidelidade cega, natural após 16 anos em que o PT está afastado da Prefeitura. 

candidato do PP, Beto Mansur, subiu nas pesquisas. Chegou aos 11%, suficiente para colocá-lo no páreo antes do horário eleitoral e há dois meses e meio da eleição. O problema de Mansur é, definitivamente, a rejeição do eleitorado, por volta de 40% em todas as pesquisas. Qualquer dado isolado compromete o olhar sobre a corrida. Porém, quando a rejeição se repete em três pesquisas diferentes, em um patamar tão elevado, é fundamental ligar o sinal de alerta para sobrevivência.

Mansur precisa ir além de listar as realizações de sua administração. Já se passaram oito anos. Ele também não pode mais se agarrar à paternidade política sobre seu sucessor. Papa ganhou vida e prestígio próprios. E não vai empurrá-lo de volta ao Paço Municipal.

A vida em Brasília também é distante demais do eleitor comum. Sem entrar no mérito dos itens acima, o candidato do PP necessita sofisticar a estratégia para reduzir a distância de Telma. Caso contrário, morrerá na praia que tanto adora caminhar nos finais de semana.

No entanto, as dificuldades de Telma de Souza e Beto Mansur parecem peixe pequeno diante do alçapão que se abriu na candidatura de Sérgio Aquino (PMDB). O candidato oficial de Papa chafurda nos 2% da pesquisa Ibope. Nas demais pesquisas, oscila entre 3% e 4%. A pequena diferença escancara uma candidatura que necessita de curativos para estancar o sangue.

Aquino apresenta baixa rejeição, até porque é um ilustre desconhecido. Neste sentido, ele se assemelha ao candidato do PT em São Paulo, Fernando Haddad, não apenas nos índices de intenção de voto. Haddad é apoiado por um padrinho forte, mas 40% dos eleitores pesquisados não o conhecem.

Nas ruas de Santos, multiplicam-se os cartazes lambe-lambe em que o ex-secretário de Assuntos Portuários aparece ao lado de Papa. Nas redes sociais, Aquino também está em fotografias com o prefeito, numa caminhada na orla da praia, por exemplo.

Será que benção de Papa é suficiente para inserir Aquino – de verdade - na disputa? Aguardar o horário eleitoral gratuito, como salvação da lavoura, é aposta de virada de mesa? Repetir a trajetória de Papa não seria rezar para um raio cair duas vezes no mesmo lugar?

Sergio Aquino se encontra atrás de Fabio Nunes, o Fabião (PSB). Ex-secretário de Meio Ambiente e, portanto, ex-base de apoio do prefeito, Fabião teve 5% das intenções de voto. Ele é carismático, possui boa imagem entre os jovens e os ambientalistas de boutique da classe média. O problema é a falta de dinheiro e o próprio partido, em que parte dos militantes adoraria estar em outra canoa.

Até onde vai a candidatura de Fabião? Seria uma nova Marina Silva, de discurso coerente de desenvolvimento sustentável, a ser abandonada pela sigla na discussão de apoios do segundo turno? A única saída para Fabião seria “sequestrar” eleitores dos três candidatos à frente. Como fazê-lo?

As justificativas dos candidatos para os percentuais fingem variar para alcançar a obviedade. Faz parte do jogo em curso. Transitam entre a humildade de quem está na frente à retórica de que “pesquisa é retrato de momento” para quem peleja atrás.

Alguns sonham com mudanças quando o horário eleitoral gratuito chegar. Outros reforçam a conversa de gastar sola de sapato e debater propostas com a população. Nada que manche o figurino pré-determinado para este momento da campanha.

Os demais quatro candidatos, em legendas nanicas e de dinheiro curto, seguem na posição previsível: a lanterna das pesquisas. Eventualmente, um ou outro alcança 1% das intenções de voto, dependendo do instituto. 

Um ou outro demonstra interesse em colocar propostas na mesa. O problema é descobrir se o eleitorado médio está disposto a ouvi-los. Para os nanicos, a trajetória linear parece ser a estação de desembarque no início de outubro. 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

O fim da fraternidade


Santos adora alardear seu pioneirismo. É culturalmente valioso ser o primeiro em alguma coisa, seja no esporte, nas artes ou na política. Um exemplo disso é o projeto República de Idosos, criado há mais de 15 anos e que gerou cópias em várias cidades brasileiras.

A República de Idosos é uma reprodução adaptada das repúblicas universitárias. Os moradores passam por uma triagem antes de residir em um imóvel custeado pela Prefeitura. Lá, dividem as despesas e a administração da casa, supervisionados por uma psicóloga, uma assistente social e uma operadora social.

Antes, os idosos viviam sozinhos e apresentavam dificuldades de relacionamento familiar. Hoje, muitos deles agradecem pela convivência e pela possibilidade de socialização, inclusive em outros projetos da Prefeitura.            

Santos chegou a ter quatro repúblicas, com aproximadamente 40 moradores, todos acima de 60 anos. Mas na última semana, a Prefeitura fechou, em silêncio, a República Fraternidade, localizada na rua Silva Jardim, perto do Mercado Municipal.

A casa, que pertence a uma instituição particular, apresentava sérios problemas estruturais. Infiltrações, rachaduras e comprometimento do telhado eram queixas recorrentes – em outras palavras, uma pilha de ofícios – na Secretaria de Assistência Social. O imóvel abrigava três moradores, mas tinha capacidade para receber quatro vezes mais idosos. O número era reduzido por conta das deficiências da moradia.

A Prefeitura ensaiou mexer no imóvel, mas apenas o conserto do telhado ficaria em R$ 15 mil. Decidiu fechar a casa e não procurar outro endereço, embora haja fila de espera para morar nas repúblicas. Dos três moradores, um se mudou para a residência de uma amiga. Os outros dois foram transferidos para outras repúblicas, que operam no limite da capacidade.

A decisão de fechar uma das quatro repúblicas de idosos, um programa reconhecido nacionalmente, simboliza o clássico comportamento de final de gestão. Por que “inventar” se faltam menos de seis meses para terminar o governo? Por que se preocupar com os próximos quatro anos se não há garantias de continuidade?

É fato que parte da administração está preocupada com a campanha eleitoral, na qual o candidato do governo necessita de uma dose cavalar de recuperação nas pesquisas eleitorais. E, neste sentido, acredita-se que a máquina municipal poderá andar com as próprias pernas, guiadas pelo corpo técnico. Tanto que meia dúzia de secretarias passou para as mãos de profissionais de carreira, em parte servidores concursados.

O fechamento de uma das repúblicas também indica que, nos últimos anos, a assistência social não passou de personagem coadjuvante. O projeto era uma exceção na cidade onde 20% da população têm mais de 60 anos. Na prática, um oásis diante da quantidade de pessoas que necessitam de moradia, mas a Prefeitura preferiu seguir o sentido contrário. O serviço encolheu em vez de se pensar em ampliação.

A Santos da qualidade de vida é uma ilusão de classe média, que mascara outro município que sai da toca depois das 18 horas. Para os idosos mais pobres, clínicas de repouso – para usar o nome politicamente correto – são um sonho distante, salvo as poucas vagas que aparecem por conta dos convênios entre instituições e administração municipal.

Santos envelhece de maneira irreversível, embora não seja um processo exclusivo daqui. É para ontem a necessidade de se melhorar as condições de vida da população mais velha. É uma parcela dos moradores que, de fato, não tem mais tempo a perder. 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Nós, os tubarões e as sardinhas



Depois de dois meses, a indústria do plástico e os supermercados mudaram a estratégia na batalha das sacolinhas. A briga entrou na fase da Guerra Fria, onde as faíscas são abafadas pelo jogo diplomático e pela máquina de propaganda. Embora com mísseis apontados para o adversário, a compostura e o sorriso amarelo são mais importantes para conquistar corações e mentes, como recomenda o clichê da zona de conflito.

Agora, é preciso convencer consumidores e imprensa pela suposta frieza dos números. Nada como adotar a manipulação de dados estatísticos, legitimados por pesquisas de opinião, para confirmar uma tese que flerta com a redundância, enquanto mantém o público em seu papel de coadjuvante.

Na semana passada, o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre o fim da distribuição de sacolas plásticas nos supermercados do Estado. De acordo com o estudo, sete em cada dez entrevistados defendem a retomada da distribuição gratuita de sacolas plásticas.

A pesquisa indica também que quatro em dez entrevistados desistiu da compra por conta da ausência de sacolas para transporte dos produtos. E que dois terços acreditam que o fim da distribuição beneficiou os supermercados, enquanto um terço crê em benefício ambiental com a medida.

A pesquisa do Datafolha pode apontar uma tendência de comportamento, mas um detalhe precisa ser ressaltado. O estudo foi encomendado pelo Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos (Plastivida), que atende aos interesses da indústria do plástico.

É claro que isto não abala a credibilidade do Datafolha. Só reforça o argumento de que o óbvio se transforma em “novidade estatística”. A maioria dos consumidores não se acostumou e, evidentemente, ainda rejeita a mudança nos supermercados.

A Associação Paulista do setor se defende com outros números. Em declaração ao jornal Folha de S.Paulo, o presidente da entidade, João Galassi, cita o exemplo de Jundiaí, no interior do Estado. Na cidade, o consumidor teria entendido os benefícios do fim da distribuição. Em números: 77% dos clientes aprovaram o banimento, explicou Galassi.

A disputa entre a indústria do plástico e os supermercados se assemelha à rivalidade entre dois tubarões no tanque de um aquário. Enquanto os donos do espaço estão distraídos com a demarcação do território, sempre sobra espaço para os peixes pequenos se alimentarem melhor, além de que deixam de ser base da cadeia por algum tempo.

Em Santos, é possível perceber o aumento de vendas em muitas padarias, empórios e mini-mercados. Como estão fora do acordo com o Ministério Público, estes pontos de venda transformaram a distribuição de sacolinhas em sinônimo de atendimento diferenciado e fidelização de clientes. Alguns até criaram promoções diretamente ligadas à distribuição de sacolas.

Infelizmente, o debate está limitado à própria pontualidade do tema. Na verdade, exemplifica como o meio ambiente é somente um enfeite na prateleira, sem uma perspectiva aprofundada de mudança estrutural. Ou seja: os supermercados, sem as sacolas gratuitas, continuam como o paraíso de embalagens, a terra do plástico que garante segurança, beleza, qualidade e pureza aos alimentos. Simbolicamente, claro, assim como a guerra entre tubarões da mesma espécie.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O professor que virou bandido

           
Mochilas se transformaram em objetos criminosos. Cores, tamanhos, marcas diferentes, todas podem transportar armamentos pesados, possivelmente camuflados entre papéis, livros, jornais, notebooks, celulares e agendas. Este arsenal é utilizado por estudantes, professores e outros profissionais quando tem a intenção cristalina de, solitariamente, assaltar um banco. Estes marginais não formam quadrilha. São, na mente dos seguranças, lobos solitários. Ou – para alguns gerentes – iscas para roubos cirúrgicos.

Esta semana, um professor tentou sacar dinheiro no banco. Foi a uma agência, recheada de imagens de gente feliz, segura em situações confortáveis. Cartazes e outros tipos de mensagens publicitárias que repetem um mantra, quase um juramento: o banco foi feito para ele.

Ele não precisava entrar na agência. Faria o saque em um dos caixas eletrônicos, pois pretendia pagar duas contas ainda naquela tarde. Estranhou que o acesso estava concentrado na porta giratória. Quinze minutos antes, havia feito um depósito em um banco público, a uma quadra dali, e as áreas estavam devidamente separadas.

O professor carregava uma mochila. Não sabia que adentrava na zona perigosa do padrão meliante. Talvez as cores cinza e azul indicassem ao segurança o risco de violência. Ou a própria mochila fosse um sinal de perigo, que ressuscitava experiências anteriores de criminalidade no local.

O professor foi barrado pelo detector de metais. Entregou chaves, celular, todos os metais que julgava possuir. Ele o fez de boa vontade, sem duvidar de que havia um olhar determinado a constrangê-lo. Não ele exatamente, nada pessoal, mas o sintoma de periculosidade que carregava preso em um dos ombros.

Depois de barrado por três vezes na porta giratória, o professor informou aos dois seguranças que na mochila só haviam papéis. Agora eram dois seguranças – multiplicados e unidos pela atenção ao suspeito –, que reiteravam ao cliente que não poderia entrar na agência. A máquina indicava que a mochila transportava metais.

Em paralelo, uma fila de dez pessoas se formara no sentido oposto, parte com a cara fechada pelo entrave na porta giratória, parte com aquela expressão de “é assim mesmo, deixa disso”.

O professor, há 15 anos correntista do banco, de quem recebeu o cartão com as estrelinhas brilhantes de taxas abusivas, não teve dúvidas. Ele assumiu o personagem e se comportou como um suspeito. Abriu a mochila e retirou o armamento pesado que traria pânico para clientes e funcionários.

Dali, saíram papéis, uma revista, o jornal do dia, dois livros, agenda de compromissos, agenda de telefones, um fichário e uma caderneta. Artefatos capazes de provocar ferimentos graves e mortes em massa. Se acionasse todos ao mesmo tempo, o homem-bomba seria coroado mártir.

Neste momento, com a fila se reproduzindo como coelhos, a gerente foi chamada. Ela aproximou-se dos seguranças, olhou de lado, mediu o professor e, categoricamente, deu o veredicto, como especialista em situações de constrangimento.

— Ah, deve ser o fichário!

A sentença do processo kafkiano resultou no milagre da liberdade. A porta giratória deixou de detectar substâncias condenáveis na mochila e se moveu como as águas de Moisés. O professor foi liberado e pôde efetuar o saque. Com direito à mochila nas costas.

Na saída, dois minutos depois, ele olhou para um dos seguranças, que tentou desviar o rosto, mas não conseguiu ficar surdo.

— Viu? Ninguém foi assaltado. Pode ficar tranquilo. Nunca quis roubar o banco em 15 anos de correntista. Mas o contrário ...

O segurança agradeceu com o sorriso mais amarelo do que o cartaz solar à esquerda, que retratava uma família correndo feliz pela grama verdinha, amparada pelo texto que insistia: o banco era feito para ele.

Ao compartilhar a história, o professor percebeu que o treinamento anti-guerrilha ganhou contornos humorísticos e patéticos. Uma cliente, por exemplo, foi aconselhada a comprar uma bolsa com menos zíperes. Outra recebeu a dica para ir ao banco acompanhada. O guarda-costas particular ficaria do lado de fora para proteger a mochila. Proteger de quem?

Conselhos, assim, talvez sinalizem a contaminação por metais pesados nas portas giratórias. Metais que provocam problemas neurológicos e psiquiátricos, que infectaram e mataram o discernimento e parte da humanidade de homens de gravata e mulheres de terninho atrás de suas mesas. Afinal, mochilas e bolsas são a prova de que quadrilhas informais podem roubar o segmento que mais lucra no Brasil a qualquer hora, ainda mais no horário de expediente.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O rap vai ao castelo

As duas mulheres cantaram à capela para as 50 pessoas. O refrão “Negra sim, mulata não” paria olhares diversos, da surpresa à admiração. A música Mulata encerrou o ritual de pouco mais de uma hora, que lotou uma sala destinada quase sempre aos debates e exposições acadêmicas. 

Preta Rara e Negra Jack: rap com política

A sala, de número 315 na porta, está acostumada com tons de pele coerentes com a clareza de suas paredes e o ar de higienização hospitalar. Naquela noite de segunda-feira, pela primeira vez, a sala estava dominada por negros, muitos sem a obsessão pelo diploma na parede de casa. Mas todos orgulhosos porque uma deles – assim o sistema universitário os vê, como de outro mundo – chegou ao fim do caminho.

Joyce personificava o regime de exceção. Defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História, na Unisantos, um estudo sobre o movimento hip-hop na Baixada Santista, a partir de 1993, data de nascimento na região. O trabalho foi o mais concorrido do curso. De doutores a gente com ensino fundamental. Universitários de cinco cursos, de Letras a Pedagogia. Parentes, amigos e integrantes do movimento social, cada vez menos uma tribo vista como moda.

Joyce da Silva Fernandes é candidata a uma lista de preconceitos inerentes à sociedade brasileira. Ela tinha várias credenciais para dar errado no país que finge tolerar quem não nasceu europeizado ou não embranqueceu com as benesses do poder econômico ou com a fama das celebridades.

Joyce é negra, mulher e moradora de bairro de periferia. Veste-se com amor pelas raízes africanas. Já foi chamada de macumbeira na rua e quase foi contratada como cartomante. Joyce também é rapper, outro universo dominado pelos homens. Preta Rara, seu nome artístico, também enfrenta problemas por ser caiçara. Ela e Negra Jack formam o grupo Tarja Preta, a primeira dupla de mulheres rappers do litoral de São Paulo. Hoje, apresentam-se mais na Capital e no interior, onde são tratadas com reverência pelo conteúdo politizado e feminista de suas composições.

Naquela noite de segunda-feira, Joyce não era Preta. Joyce era uma professora de História, que se legitimava pelo rigor acadêmico e pela linguagem científica. A força das letras que, por exemplo, denunciam a falsa abolição e a exploração do corpo da mulher se transformou em argumentos para analisar um dos fenômenos culturais da história recente da região.

O rap abriu as portas do castelo, normalmente atento às próprias preocupações da corte. Dentro dele, há mentes resistentes que transgridem ao compreender a necessidade de conversar com o mundo lá fora, de maneira horizontal, sem pedantismo ou arrotos de conhecimento de almanaque. 

O feminismo na rima e na postura artística

A sala 315 serviu de testemunha para um instante único, um ponto de partida para a aproximação da elite educacional com aqueles que dinamizam a cultura na base social, lutam contra os vácuos da era do consumo e constroem novos caminhos de conhecimento sobre o mundo que, inclusive, rodeia os muros do castelo. Naquela noite de segunda-feira, a sala 315 representou a chance concreta de uma sociedade em que brancos e negros, homens e mulheres, possam conviver com senso de coletividade e atenção para os problemas que insistem em permanecer sob o manto da invisibilidade social. 

A sala 315 ainda se constitui como exceção. Abrigará, possivelmente, muitos discursos, por vezes inócuos, por vezes relevantes, mas suas paredes anti-sépticas não conseguirão limpar aquela narrativa, encerrada com duas rappers que, em rimas de indignação, desnudaram a condição da mulher negra, maioria fora do castelo, visitante ocasional dentro dele.