sexta-feira, 8 de junho de 2012
Nós, os tubarões e as sardinhas
Depois de dois meses, a indústria do plástico e os supermercados mudaram a estratégia na batalha das sacolinhas. A briga entrou na fase da Guerra Fria, onde as faíscas são abafadas pelo jogo diplomático e pela máquina de propaganda. Embora com mísseis apontados para o adversário, a compostura e o sorriso amarelo são mais importantes para conquistar corações e mentes, como recomenda o clichê da zona de conflito.
Agora, é preciso convencer consumidores e imprensa pela suposta frieza dos números. Nada como adotar a manipulação de dados estatísticos, legitimados por pesquisas de opinião, para confirmar uma tese que flerta com a redundância, enquanto mantém o público em seu papel de coadjuvante.
Na semana passada, o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre o fim da distribuição de sacolas plásticas nos supermercados do Estado. De acordo com o estudo, sete em cada dez entrevistados defendem a retomada da distribuição gratuita de sacolas plásticas.
A pesquisa indica também que quatro em dez entrevistados desistiu da compra por conta da ausência de sacolas para transporte dos produtos. E que dois terços acreditam que o fim da distribuição beneficiou os supermercados, enquanto um terço crê em benefício ambiental com a medida.
A pesquisa do Datafolha pode apontar uma tendência de comportamento, mas um detalhe precisa ser ressaltado. O estudo foi encomendado pelo Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos (Plastivida), que atende aos interesses da indústria do plástico.
É claro que isto não abala a credibilidade do Datafolha. Só reforça o argumento de que o óbvio se transforma em “novidade estatística”. A maioria dos consumidores não se acostumou e, evidentemente, ainda rejeita a mudança nos supermercados.
A Associação Paulista do setor se defende com outros números. Em declaração ao jornal Folha de S.Paulo, o presidente da entidade, João Galassi, cita o exemplo de Jundiaí, no interior do Estado. Na cidade, o consumidor teria entendido os benefícios do fim da distribuição. Em números: 77% dos clientes aprovaram o banimento, explicou Galassi.
A disputa entre a indústria do plástico e os supermercados se assemelha à rivalidade entre dois tubarões no tanque de um aquário. Enquanto os donos do espaço estão distraídos com a demarcação do território, sempre sobra espaço para os peixes pequenos se alimentarem melhor, além de que deixam de ser base da cadeia por algum tempo.
Em Santos, é possível perceber o aumento de vendas em muitas padarias, empórios e mini-mercados. Como estão fora do acordo com o Ministério Público, estes pontos de venda transformaram a distribuição de sacolinhas em sinônimo de atendimento diferenciado e fidelização de clientes. Alguns até criaram promoções diretamente ligadas à distribuição de sacolas.
Infelizmente, o debate está limitado à própria pontualidade do tema. Na verdade, exemplifica como o meio ambiente é somente um enfeite na prateleira, sem uma perspectiva aprofundada de mudança estrutural. Ou seja: os supermercados, sem as sacolas gratuitas, continuam como o paraíso de embalagens, a terra do plástico que garante segurança, beleza, qualidade e pureza aos alimentos. Simbolicamente, claro, assim como a guerra entre tubarões da mesma espécie.
sexta-feira, 27 de abril de 2012
O professor que virou bandido
Mochilas se transformaram em objetos criminosos. Cores, tamanhos, marcas diferentes, todas podem transportar armamentos pesados, possivelmente camuflados entre papéis, livros, jornais, notebooks, celulares e agendas. Este arsenal é utilizado por estudantes, professores e outros profissionais quando tem a intenção cristalina de, solitariamente, assaltar um banco. Estes marginais não formam quadrilha. São, na mente dos seguranças, lobos solitários. Ou – para alguns gerentes – iscas para roubos cirúrgicos.
Esta semana, um professor tentou sacar dinheiro no banco. Foi a uma agência, recheada de imagens de gente feliz, segura em situações confortáveis. Cartazes e outros tipos de mensagens publicitárias que repetem um mantra, quase um juramento: o banco foi feito para ele.
Ele não precisava entrar na agência. Faria o saque em um dos caixas eletrônicos, pois pretendia pagar duas contas ainda naquela tarde. Estranhou que o acesso estava concentrado na porta giratória. Quinze minutos antes, havia feito um depósito em um banco público, a uma quadra dali, e as áreas estavam devidamente separadas.
O professor carregava uma mochila. Não sabia que adentrava na zona perigosa do padrão meliante. Talvez as cores cinza e azul indicassem ao segurança o risco de violência. Ou a própria mochila fosse um sinal de perigo, que ressuscitava experiências anteriores de criminalidade no local.
O professor foi barrado pelo detector de metais. Entregou chaves, celular, todos os metais que julgava possuir. Ele o fez de boa vontade, sem duvidar de que havia um olhar determinado a constrangê-lo. Não ele exatamente, nada pessoal, mas o sintoma de periculosidade que carregava preso em um dos ombros.
Depois de barrado por três vezes na porta giratória, o professor informou aos dois seguranças que na mochila só haviam papéis. Agora eram dois seguranças – multiplicados e unidos pela atenção ao suspeito –, que reiteravam ao cliente que não poderia entrar na agência. A máquina indicava que a mochila transportava metais.
Em paralelo, uma fila de dez pessoas se formara no sentido oposto, parte com a cara fechada pelo entrave na porta giratória, parte com aquela expressão de “é assim mesmo, deixa disso”.
O professor, há 15 anos correntista do banco, de quem recebeu o cartão com as estrelinhas brilhantes de taxas abusivas, não teve dúvidas. Ele assumiu o personagem e se comportou como um suspeito. Abriu a mochila e retirou o armamento pesado que traria pânico para clientes e funcionários.
Dali, saíram papéis, uma revista, o jornal do dia, dois livros, agenda de compromissos, agenda de telefones, um fichário e uma caderneta. Artefatos capazes de provocar ferimentos graves e mortes em massa. Se acionasse todos ao mesmo tempo, o homem-bomba seria coroado mártir.
Neste momento, com a fila se reproduzindo como coelhos, a gerente foi chamada. Ela aproximou-se dos seguranças, olhou de lado, mediu o professor e, categoricamente, deu o veredicto, como especialista em situações de constrangimento.
— Ah, deve ser o fichário!
A sentença do processo kafkiano resultou no milagre da liberdade. A porta giratória deixou de detectar substâncias condenáveis na mochila e se moveu como as águas de Moisés. O professor foi liberado e pôde efetuar o saque. Com direito à mochila nas costas.
Na saída, dois minutos depois, ele olhou para um dos seguranças, que tentou desviar o rosto, mas não conseguiu ficar surdo.
— Viu? Ninguém foi assaltado. Pode ficar tranquilo. Nunca quis roubar o banco em 15 anos de correntista. Mas o contrário ...
O segurança agradeceu com o sorriso mais amarelo do que o cartaz solar à esquerda, que retratava uma família correndo feliz pela grama verdinha, amparada pelo texto que insistia: o banco era feito para ele.
Ao compartilhar a história, o professor percebeu que o treinamento anti-guerrilha ganhou contornos humorísticos e patéticos. Uma cliente, por exemplo, foi aconselhada a comprar uma bolsa com menos zíperes. Outra recebeu a dica para ir ao banco acompanhada. O guarda-costas particular ficaria do lado de fora para proteger a mochila. Proteger de quem?
Conselhos, assim, talvez sinalizem a contaminação por metais pesados nas portas giratórias. Metais que provocam problemas neurológicos e psiquiátricos, que infectaram e mataram o discernimento e parte da humanidade de homens de gravata e mulheres de terninho atrás de suas mesas. Afinal, mochilas e bolsas são a prova de que quadrilhas informais podem roubar o segmento que mais lucra no Brasil a qualquer hora, ainda mais no horário de expediente.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
O rap vai ao castelo
As duas mulheres cantaram à capela para as 50 pessoas. O refrão “Negra sim, mulata não” paria olhares diversos, da surpresa à admiração. A música Mulata encerrou o ritual de pouco mais de uma hora, que lotou uma sala destinada quase sempre aos debates e exposições acadêmicas.
A sala, de número 315 na porta, está acostumada com tons de pele coerentes com a clareza de suas paredes e o ar de higienização hospitalar. Naquela noite de segunda-feira, pela primeira vez, a sala estava dominada por negros, muitos sem a obsessão pelo diploma na parede de casa. Mas todos orgulhosos porque uma deles – assim o sistema universitário os vê, como de outro mundo – chegou ao fim do caminho.
Joyce personificava o regime de exceção. Defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História, na Unisantos, um estudo sobre o movimento hip-hop na Baixada Santista, a partir de 1993, data de nascimento na região. O trabalho foi o mais concorrido do curso. De doutores a gente com ensino fundamental. Universitários de cinco cursos, de Letras a Pedagogia. Parentes, amigos e integrantes do movimento social, cada vez menos uma tribo vista como moda.
Joyce da Silva Fernandes é candidata a uma lista de preconceitos inerentes à sociedade brasileira. Ela tinha várias credenciais para dar errado no país que finge tolerar quem não nasceu europeizado ou não embranqueceu com as benesses do poder econômico ou com a fama das celebridades.
Joyce é negra, mulher e moradora de bairro de periferia. Veste-se com amor pelas raízes africanas. Já foi chamada de macumbeira na rua e quase foi contratada como cartomante. Joyce também é rapper, outro universo dominado pelos homens. Preta Rara, seu nome artístico, também enfrenta problemas por ser caiçara. Ela e Negra Jack formam o grupo Tarja Preta, a primeira dupla de mulheres rappers do litoral de São Paulo. Hoje, apresentam-se mais na Capital e no interior, onde são tratadas com reverência pelo conteúdo politizado e feminista de suas composições.
Naquela noite de segunda-feira, Joyce não era Preta. Joyce era uma professora de História, que se legitimava pelo rigor acadêmico e pela linguagem científica. A força das letras que, por exemplo, denunciam a falsa abolição e a exploração do corpo da mulher se transformou em argumentos para analisar um dos fenômenos culturais da história recente da região.
O rap abriu as portas do castelo, normalmente atento às próprias preocupações da corte. Dentro dele, há mentes resistentes que transgridem ao compreender a necessidade de conversar com o mundo lá fora, de maneira horizontal, sem pedantismo ou arrotos de conhecimento de almanaque.
A sala 315 serviu de testemunha para um instante único, um ponto de partida para a aproximação da elite educacional com aqueles que dinamizam a cultura na base social, lutam contra os vácuos da era do consumo e constroem novos caminhos de conhecimento sobre o mundo que, inclusive, rodeia os muros do castelo. Naquela noite de segunda-feira, a sala 315 representou a chance concreta de uma sociedade em que brancos e negros, homens e mulheres, possam conviver com senso de coletividade e atenção para os problemas que insistem em permanecer sob o manto da invisibilidade social.
Preta Rara e Negra Jack: rap com política |
A sala, de número 315 na porta, está acostumada com tons de pele coerentes com a clareza de suas paredes e o ar de higienização hospitalar. Naquela noite de segunda-feira, pela primeira vez, a sala estava dominada por negros, muitos sem a obsessão pelo diploma na parede de casa. Mas todos orgulhosos porque uma deles – assim o sistema universitário os vê, como de outro mundo – chegou ao fim do caminho.
Joyce personificava o regime de exceção. Defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História, na Unisantos, um estudo sobre o movimento hip-hop na Baixada Santista, a partir de 1993, data de nascimento na região. O trabalho foi o mais concorrido do curso. De doutores a gente com ensino fundamental. Universitários de cinco cursos, de Letras a Pedagogia. Parentes, amigos e integrantes do movimento social, cada vez menos uma tribo vista como moda.
Joyce da Silva Fernandes é candidata a uma lista de preconceitos inerentes à sociedade brasileira. Ela tinha várias credenciais para dar errado no país que finge tolerar quem não nasceu europeizado ou não embranqueceu com as benesses do poder econômico ou com a fama das celebridades.
Joyce é negra, mulher e moradora de bairro de periferia. Veste-se com amor pelas raízes africanas. Já foi chamada de macumbeira na rua e quase foi contratada como cartomante. Joyce também é rapper, outro universo dominado pelos homens. Preta Rara, seu nome artístico, também enfrenta problemas por ser caiçara. Ela e Negra Jack formam o grupo Tarja Preta, a primeira dupla de mulheres rappers do litoral de São Paulo. Hoje, apresentam-se mais na Capital e no interior, onde são tratadas com reverência pelo conteúdo politizado e feminista de suas composições.
Naquela noite de segunda-feira, Joyce não era Preta. Joyce era uma professora de História, que se legitimava pelo rigor acadêmico e pela linguagem científica. A força das letras que, por exemplo, denunciam a falsa abolição e a exploração do corpo da mulher se transformou em argumentos para analisar um dos fenômenos culturais da história recente da região.
O rap abriu as portas do castelo, normalmente atento às próprias preocupações da corte. Dentro dele, há mentes resistentes que transgridem ao compreender a necessidade de conversar com o mundo lá fora, de maneira horizontal, sem pedantismo ou arrotos de conhecimento de almanaque.
O feminismo na rima e na postura artística |
A sala 315 serviu de testemunha para um instante único, um ponto de partida para a aproximação da elite educacional com aqueles que dinamizam a cultura na base social, lutam contra os vácuos da era do consumo e constroem novos caminhos de conhecimento sobre o mundo que, inclusive, rodeia os muros do castelo. Naquela noite de segunda-feira, a sala 315 representou a chance concreta de uma sociedade em que brancos e negros, homens e mulheres, possam conviver com senso de coletividade e atenção para os problemas que insistem em permanecer sob o manto da invisibilidade social.
A sala 315 ainda se constitui como exceção. Abrigará, possivelmente, muitos discursos, por vezes inócuos, por vezes relevantes, mas suas paredes anti-sépticas não conseguirão limpar aquela narrativa, encerrada com duas rappers que, em rimas de indignação, desnudaram a condição da mulher negra, maioria fora do castelo, visitante ocasional dentro dele.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
O chá da tarde na USP
A Universidade de São Paulo se transformou no centro da educação brasileira. Das socialites aos estudantes, dos políticos aos jornalistas, dos com-ar-condicionado aos sem-nada, muitos resolveram incluir a USP na agenda, ainda que não a conheçam, ainda que não a dimensionem dentro do sistema educacional brasileiro.
Com apoio de parte da imprensa, praticante do jornalismo “copia e cola”, pronta para vomitar as versões mais conservadoras ou elitistas, a ocupação da reitoria por universitários se transformou em um circo com uma lona maior do que o esperado. Mas o resultado nos conduziu ao mesmo endereço: a esquina onde a desinformação e o preconceito se encontram.
Estudantes e policiais militares serviram como canais que carregam sintomas de uma sociedade doente, cega como grupo e manca como consciência coletiva. Os estudantes mal são ouvidos. Ouvir com orelhas tortas não é escutar. As premissas indicam que todos ali são maconheiros e filhinhos de papai, frutos de um sistema que privilegia o topo da pirâmide em detrimento da base sócio-econômica.
É claro que muitos universitários se lambuzam com leituras teóricas em diagonal, o que os leva a crer na possibilidade de promover uma revolução sem contexto, como se estivessem congelados na década de 60. No entanto, isso não condena os estudantes que compreendem a natureza ética e social de seus papéis e, acima de tudo, percebem o quanto falta senso de coletividade no meio acadêmico, por vezes afogado em mesquinharias científicas, de costas para o mundo além dos muros e das grades.
Soa irresponsável associar como questão absoluta a vida universitária e o tráfico de drogas. O consumo não representa prerrogativa ou exclusividade do meio universitário. O assunto é questão de saúde pública e permeia todos os segmentos sociais. Associar vida estudantil à compra e venda de drogas lícitas e ilícitas é de um reducionismo ofensivo, máscara de cínicos.
Outro sintoma de uma sociedade fora do eixo é perceber como se distorce o papel e os limites da Polícia Militar. Via de regra, a sociedade teme a polícia e a associa a comportamentos irregulares. Só que, quando precisa de alguém para fazer a faxina indesejável, o mesmo grupo corre para bajular a instituição policial. Na ocupação da reitoria da USP, parte da sociedade – da boca miúda aos gritos histéricos – defendeu que os policiais batessem nos universitários. Que abusassem da autoridade e da violência, tão criticadas na mesa de chá e vibrantes na pele do Capitão Nascimento.
O autoritarismo e a intolerância se misturam com a patrulha do politicamente correto, escravo do pensamento único. A tradução é varrer dos olhos quem pensa ou se manifesta fora do padrão. É marginalizar o alheio, sem direito à defesa ou à voz de reivindicação.
A ocupação do prédio da reitoria da USP, somada aos conflitos com a PM, além dos protestos da última semana importam menos diante de um cenário onde prevalecem a ausência de diálogo e de poder de escuta. Vence o prazer de ouvir os próprios grunhidos de truculência, mesmo que desinformados, superficiais e fragmentados. Neste sentido, PM é guarda de patrimônio, jamais de gente, independentemente da conta bancária.
Alguém se lembrou de aproveitar o calor dos fatos e discutir o sistema universitário, a violência na USP ou a educação brasileira, excludente e formadora de castas? São enredos que não animam a sala de jantar.
Com apoio de parte da imprensa, praticante do jornalismo “copia e cola”, pronta para vomitar as versões mais conservadoras ou elitistas, a ocupação da reitoria por universitários se transformou em um circo com uma lona maior do que o esperado. Mas o resultado nos conduziu ao mesmo endereço: a esquina onde a desinformação e o preconceito se encontram.
Estudantes e policiais militares serviram como canais que carregam sintomas de uma sociedade doente, cega como grupo e manca como consciência coletiva. Os estudantes mal são ouvidos. Ouvir com orelhas tortas não é escutar. As premissas indicam que todos ali são maconheiros e filhinhos de papai, frutos de um sistema que privilegia o topo da pirâmide em detrimento da base sócio-econômica.
É claro que muitos universitários se lambuzam com leituras teóricas em diagonal, o que os leva a crer na possibilidade de promover uma revolução sem contexto, como se estivessem congelados na década de 60. No entanto, isso não condena os estudantes que compreendem a natureza ética e social de seus papéis e, acima de tudo, percebem o quanto falta senso de coletividade no meio acadêmico, por vezes afogado em mesquinharias científicas, de costas para o mundo além dos muros e das grades.
Soa irresponsável associar como questão absoluta a vida universitária e o tráfico de drogas. O consumo não representa prerrogativa ou exclusividade do meio universitário. O assunto é questão de saúde pública e permeia todos os segmentos sociais. Associar vida estudantil à compra e venda de drogas lícitas e ilícitas é de um reducionismo ofensivo, máscara de cínicos.
Outro sintoma de uma sociedade fora do eixo é perceber como se distorce o papel e os limites da Polícia Militar. Via de regra, a sociedade teme a polícia e a associa a comportamentos irregulares. Só que, quando precisa de alguém para fazer a faxina indesejável, o mesmo grupo corre para bajular a instituição policial. Na ocupação da reitoria da USP, parte da sociedade – da boca miúda aos gritos histéricos – defendeu que os policiais batessem nos universitários. Que abusassem da autoridade e da violência, tão criticadas na mesa de chá e vibrantes na pele do Capitão Nascimento.
O autoritarismo e a intolerância se misturam com a patrulha do politicamente correto, escravo do pensamento único. A tradução é varrer dos olhos quem pensa ou se manifesta fora do padrão. É marginalizar o alheio, sem direito à defesa ou à voz de reivindicação.
A ocupação do prédio da reitoria da USP, somada aos conflitos com a PM, além dos protestos da última semana importam menos diante de um cenário onde prevalecem a ausência de diálogo e de poder de escuta. Vence o prazer de ouvir os próprios grunhidos de truculência, mesmo que desinformados, superficiais e fragmentados. Neste sentido, PM é guarda de patrimônio, jamais de gente, independentemente da conta bancária.
Alguém se lembrou de aproveitar o calor dos fatos e discutir o sistema universitário, a violência na USP ou a educação brasileira, excludente e formadora de castas? São enredos que não animam a sala de jantar.
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
O que o diploma não dá
A educação recebeu uma missão tão inglória quanto improvável. Virou o exorcista que nos salva de todos os demônios. A resposta para todos os problemas sociais, que mascara as feridas na infra-estrutura em diversas áreas, como saúde, transporte e segurança pública.
Dentro da fragilidade deste discurso, tão comum na boca de políticos, empresários e até educadores, teóricos de carteirinha ou não, o diploma ressuscita como o cavaleiro que cravará a espada no peito do dragão da ignorância, da miséria e da exclusão. A banalização chega ao nível de que qualquer canudo serve. A iniciação do aprendiz pode ser via presencial, virtual, em instituição de primeiro time ou na quitanda do seu Joaquim.
Ter diploma seria, pelas promessas de campanha, o passaporte para degraus mais altos na montanha da desigualdade social. As armas para sobreviver à travessia seriam conteúdos em grande quantidade, sem conexão entre eles, informações com serventia imediata e conhecimento que ganha importância se for aplicável em tarefas, nunca em reflexão.
Sempre fomos escravos do diploma como instrumento de poder. O papel servia para diferenciar os doutores dos seres humanos mortais. Estabelecia status e acesso a círculos sociais de chave restrita. Esta visão medíocre ainda persiste dentro de muitos segmentos, inclusive na universidade.
O problema mudou, mas a natureza dele não. A expansão do ensino superior levou o diploma para camadas sociais que jamais poderiam sonhar com ele. A ilusão se manifesta quando a aquisição do diploma representa o final da linha. É o momento em que se percebe o engodo após anos de gastos e privações. O mundo lá fora não se adequou ao papel recebido em festa. Em muitos casos, ignora a essência do documento e exige aquilo que o dono dele não pode proporcionar.
Diante de uma educação cada vez mais tecnicista, as deficiências e as limitações simbolizadas pelo diploma soam mais cristalinas. E parte delas não está na estrutura da casa do saber; aliás, denominação arrogante que indica falsa exclusividade.
O diploma jamais trará decência e caráter. Nada mais frágil do que supor que horas em sala de aula vão parir uma mudança de valores. Pelo contrário, é muito mais comum reproduzir o modelo desigual e cruel do lado de fora dos muros. Parece, para muita gente, aceitável e normal vomitar arrogância e frieza, absorvidas de quem deveria combatê-la ou reforçada pelo distanciamento do mundo.
O diploma jamais entregará sensibilidade. Olhar para o outro, compreendê-lo, aceitá-lo e respeitá-lo pelas semelhanças, mas principalmente pelas diferenças, não é uma lição que pode ser ensinada por disciplina alguma. Não está nos teóricos, muito menos nas correntes de pensamento que unem e rechaçam outras ideias. A sensibilidade reside em nós, que se manifesta nas relações entre as pessoas, independentemente da posição e do número de certificados pregados nas paredes da sala.
O diploma jamais dará poesia de presente. Perceber-se dentro de um cenário e buscar em seus detalhes o combustível para prosseguir é consequência dos requisitos anteriores. Como entender o que está além da janela se não se vê a própria casa? Como entender a importância das frutas do quintal se o alimento é a cobiça sobre o que não existe ou só existe sob forma de inveja?
Não me entenda mal. O diploma é crucial e merece defesa, até porque o problema não parte dele. A enfermidade está impregnada nos seres que o enxergam como passe livre para o poder. Que, acima de tudo, o utilizam para separar, para transformar pessoas em robôs ou gado.
Neste sentido, o diploma é sem cor, gosto ou cheiro, se a educação não servir para abrir a porta e libertar, desde que o viajante tenha a consciência de que pode escolher a rota e refletir continuamente sobre outros caminhos, inclusive suspender a viagem e se lambuzar de prazer na inércia.
Dentro da fragilidade deste discurso, tão comum na boca de políticos, empresários e até educadores, teóricos de carteirinha ou não, o diploma ressuscita como o cavaleiro que cravará a espada no peito do dragão da ignorância, da miséria e da exclusão. A banalização chega ao nível de que qualquer canudo serve. A iniciação do aprendiz pode ser via presencial, virtual, em instituição de primeiro time ou na quitanda do seu Joaquim.
Ter diploma seria, pelas promessas de campanha, o passaporte para degraus mais altos na montanha da desigualdade social. As armas para sobreviver à travessia seriam conteúdos em grande quantidade, sem conexão entre eles, informações com serventia imediata e conhecimento que ganha importância se for aplicável em tarefas, nunca em reflexão.
Sempre fomos escravos do diploma como instrumento de poder. O papel servia para diferenciar os doutores dos seres humanos mortais. Estabelecia status e acesso a círculos sociais de chave restrita. Esta visão medíocre ainda persiste dentro de muitos segmentos, inclusive na universidade.
O problema mudou, mas a natureza dele não. A expansão do ensino superior levou o diploma para camadas sociais que jamais poderiam sonhar com ele. A ilusão se manifesta quando a aquisição do diploma representa o final da linha. É o momento em que se percebe o engodo após anos de gastos e privações. O mundo lá fora não se adequou ao papel recebido em festa. Em muitos casos, ignora a essência do documento e exige aquilo que o dono dele não pode proporcionar.
Diante de uma educação cada vez mais tecnicista, as deficiências e as limitações simbolizadas pelo diploma soam mais cristalinas. E parte delas não está na estrutura da casa do saber; aliás, denominação arrogante que indica falsa exclusividade.
O diploma jamais trará decência e caráter. Nada mais frágil do que supor que horas em sala de aula vão parir uma mudança de valores. Pelo contrário, é muito mais comum reproduzir o modelo desigual e cruel do lado de fora dos muros. Parece, para muita gente, aceitável e normal vomitar arrogância e frieza, absorvidas de quem deveria combatê-la ou reforçada pelo distanciamento do mundo.
O diploma jamais entregará sensibilidade. Olhar para o outro, compreendê-lo, aceitá-lo e respeitá-lo pelas semelhanças, mas principalmente pelas diferenças, não é uma lição que pode ser ensinada por disciplina alguma. Não está nos teóricos, muito menos nas correntes de pensamento que unem e rechaçam outras ideias. A sensibilidade reside em nós, que se manifesta nas relações entre as pessoas, independentemente da posição e do número de certificados pregados nas paredes da sala.
O diploma jamais dará poesia de presente. Perceber-se dentro de um cenário e buscar em seus detalhes o combustível para prosseguir é consequência dos requisitos anteriores. Como entender o que está além da janela se não se vê a própria casa? Como entender a importância das frutas do quintal se o alimento é a cobiça sobre o que não existe ou só existe sob forma de inveja?
Não me entenda mal. O diploma é crucial e merece defesa, até porque o problema não parte dele. A enfermidade está impregnada nos seres que o enxergam como passe livre para o poder. Que, acima de tudo, o utilizam para separar, para transformar pessoas em robôs ou gado.
Neste sentido, o diploma é sem cor, gosto ou cheiro, se a educação não servir para abrir a porta e libertar, desde que o viajante tenha a consciência de que pode escolher a rota e refletir continuamente sobre outros caminhos, inclusive suspender a viagem e se lambuzar de prazer na inércia.
domingo, 11 de setembro de 2011
Adeus ao filósofo
Daniel Gonzalez era admirável como escultor. Do Hipupiara ao surfista, a sensibilidade artística se perpetua em peças de fibra, espalhadas por shoppings, prédios e praças em Santos e São Vicente. Na TV, suas obras ressuscitam em Mulheres de Areia, nas mãos do personagem Tonho da Lua. Herança do pai, Serafim, que esculpiu na areia na primeira versão da novela.
Daniel Gonzalez era sensato como entrevistado. Tivemos várias conversas ao longo da minha vida profissional. Ele jamais recusava uma troca de ideias, seja em questões pontuais da cultura, seja quando pedia a ele que olhasse o mundo pela perspectiva filosófica.
Mas Daniel alterou, em definitivo, minha mentalidade quando foi meu professor. Eu tinha 17 anos e atravessava aquela fase de transição do Ensino Médio para a universidade. Descobertas e tentações no mesmo endereço, o extinto prédio da Facos, no bairro da Pompéia.
A missão de Daniel era ingrata: ensinar Filosofia às sextas-feiras, no último horário, tendo como adversária a convidativa vida noturna que cerca a faculdade. Além disso, Filosofia entrava no rol das disciplinas malditas, marcadas pela baixa popularidade entre os alunos.
No primeiro dia de aula, qualquer professor costuma estabelecer as regras de avaliação e, dependendo do caso, de convivência. Daniel ditou apenas uma norma: a ausência de todas as regras. Nada em tom professoral. Nada de anarquia no sentido pejorativo do termo. Nada de inversão ou inexistência de papéis. O relacionamento seria horizontal, com Daniel na função de faroleiro, para iluminar a estrada que se desenhava à frente.
Todos estavam aprovados. Não haveria provas ou faltas. Ficariam os alunos interessados em pensar, refletir sobre sentimentos e ações humanas. Filosofia era, a partir daquele momento, compromisso. Um pacto com o pensamento, solto do maior número possível de convenções sociais. A pauta de cada noite ficava sob responsabilidade dos convidados e tinha como alicerce fatos ou fenômenos que provocaram incômodos durante a semana.
A postura daquele filósofo era diferente, mas - acima de tudo – ultrapassava a retórica e se mostrava coerente com a forma de andar, sem rigidez, e a aparência dele. Cabelo desarrumado e barba por fazer. Camisa de botões para fora da calça; aliás, cheia de bolsos como ditava a moda surf do início dos anos 90. E pés pragmáticos, que vestiam um tênis modelo iate, sem cadarços. O pacote ficava completo com o cigarro aceso na mão direita, durante a aula, o que seria uma heresia nos tempos do politicamente correto.
Aquele professor-filósofo garantiu por palavras e ações a presença deste calouro às sextas-feiras. Apenas 20% dos estudantes compareciam, o que tornava os encontros quase particulares. Únicos.
Doze anos depois de conhecê-lo, tornei-me professor. A morte do filósofo Daniel Gonzalez foi incapaz de encerrar a aula. Continuarei a me lembrar dele quando comento com alunos sobre grandes professores. Mas a gratidão está em absorver seus ensinamentos simbólicos, traduzidos no amor pela reflexão sobre e com seres humanos.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
O grito dos professores
Os professores gritam por socorro. As reclamações saltaram os muros e as grades das escolas e se transformaram em placas, cartazes e sola de sapato gasta nas ruas. Com as marchas em moda, o professorado resolveu, em várias partes do país, expor a própria condição, num ato de desespero, que deseja a mobilização da sociedade.
No Rio de Janeiro, os professores fizeram greve na rede estadual. Em Santa Catarina , protestos contra o Governo, que se recusa a conversar sobre novas condições de trabalho.
É redundante, mas necessário lembrar que os salários dos professores são vergonhosos. A desvalorização da profissão remete ao regime militar há quase 50 anos. Nunca se falou tanto de educação como motor de desenvolvimento, ao mesmo tempo que a contradição do discurso está personificada em profissionais mal pagos e com formação deficiente. Justamente quem deveria colocar o motor para funcionar na potência máxima.
Na Baixada Santista, a condição do professorado também se mostra absolutamente discutível. Santos, a principal cidade da região, enfrenta uma crise de mão-de-obra na rede municipal. O déficit é, no mínimo, de 230 vagas, a ponto de a secretaria dar a partida em um processo de convocação de emergência.
A falta de professores em Santos se deve, entre outras razões, à fragilidade dos salários. Um docente recebe, por hora-aula, de R$ 9 a R$ 10. Muitos profissionais migraram para Cubatão e Guarujá. Encaram viagem maior ao local de trabalho porque a remuneração por lá é melhor. Praia Grande, por sua vez, concederá reajuste de 32% em 15 de julho.
O Ministério da Educação acena com um déficit de 200 mil profissionais no país. A situação é mais grave justamente nos endereços em que os indicadores são mais baixos. Nas regiões Norte e Nordeste, professores entraram na lista de espécies em extinção. Nos grandes centros, a escassez é cristalina nos bairros periféricos, não importa a rede.
Em Santos, por exemplo, é rotineira a ausência de docentes no Caruara, na Área Continental. Até no Gonzaga, bairro nobre, vagas estavam abertas – para mais de uma disciplina – com o ano letivo em andamento.
O protesto dos professores nas ruas (ou via imprensa) é legítimo não apenas pelo aspecto democrático, como forma de contestação ao poder vigente, mas para indicar à sociedade civil como a categoria não tem condições de carregar nas costas o fardo de empurrar, de maneira solitária e idealizada, a educação ladeira acima.
Ser professor não tem relação alguma com sacerdócio ou atividade voluntária. É uma atividade profissional como qualquer outra, que merece um suporte cultural decente e remuneração compatível com os riscos e responsabilidades do ofício. Caso contrário, tende a ser multiplicar o semblante desapontado de alunos universitários que preenchem as cadeiras dos cursos de licenciaturas, numa demonstração de que muitos deles pensam em desistir da profissão antes da ultrapassar os muros da escola.
Infelizmente, o grito está restrito aos professores da rede pública. Os colegas de profissão das escolas privadas, a maioria de pequeno porte, continuam amordaçados. Sob o risco de desemprego, choram em silêncio, no canto da sala de aula, como se pensassem naquilo que poderiam fazer para engrossar o coro dos desvalidos.
Observação: A secretária de Educação de Santos, Suely Maia, concedeu, no final de junho, entrevista ao jornal Boqnews. As declarações dela ajudam a entender o problema.
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